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Encíclica «Caritas in veritate» - parte 1
2009-07-18 10:25:06

Carta Encíclica «Caritas in veritate» do Sumo Pontífice Bento XVI aos Bispos, aos presbíteros e diáconos às pessoas consagradas aos fiéis leigos e a todos os homens de boa vontade sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade.

INTRODUÇÃO

1. A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. O amor - «caritas» - é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta. Cada um encontra o bem próprio, aderindo ao projecto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, é em tal projecto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre (cf. Jo 8, 22). Por isso, defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade. Esta, de facto, «rejubila com a verdade» (1 Cor 13, 6). Todos os homens sentem o impulso interior para amar de maneira autêntica: amor e verdade nunca desaparecem de todo neles, porque são a vocação colocada por Deus no coração e na mente de cada homem. Jesus Cristo purifica e liberta das nossas carências humanas a busca do amor e da verdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativa de amor e o projecto de vida verdadeira que Deus preparou para nós. Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, uma vocação a nós dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade do seu projecto. De facto, Ele mesmo é a Verdade (cf. Jo 14, 6).

2. A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja. As diversas responsabilidades e compromissos por ela delineados derivam da caridade, que é - como ensinou Jesus - a síntese de toda a Lei (cf. Mt 22, 36-40). A caridade dá verdadeira substância à relação pessoal com Deus e com o próximo; é o princípio não só das micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos. Para a Igreja - instruída pelo Evangelho -, a caridade é tudo porque, como ensina S. João (cf. 1 Jo 4, 8.16) e como recordei na minha primeira carta encíclica, «Deus é caridade» (Deus caritas est): da caridade de Deus tudo provém, por ela tudo toma forma, para ela tudo tende. A caridade é o dom maior que Deus concedeu aos homens; é a sua promessa e a nossa esperança.

Estou ciente dos desvios e esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar, com o risco, daí resultante, de ser mal entendida, de ser excluída da vida ética e, em todo o caso, de impedir a sua correcta valorização. Nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, ou seja, nos contextos mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais. Daqui a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na direcção assinalada por S. Paulo da «veritas in caritate» (Ef 4, 15), mas também na direcção inversa e complementar da «caritas in veritate». A verdade há-de ser procurada, encontrada e expressa na «economia» da caridade, mas esta, por sua vez, há-de ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos não apenas prestado um serviço à caridade, iluminada pela verdade, mas também contribuído para tornar credível a verdade, mostrando o seu poder de autenticação e persuasão na vida social concreta. Facto este que se deve ter muito em conta hoje, num contexto social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezes negligente senão mesmo refractário à mesma.

3. Pela sua estreita ligação com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de importância fundamental nas relações humanas, nomeadamente de natureza pública. Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada, chegando a significar o oposto do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal. Na verdade, a caridade reflecte a dimensão simultaneamente pessoal e pública da fé no Deus bíblico, que é conjuntamente «Agápe» e «Lógos»: Caridade e Verdade, Amor e Palavra.

4. Porque repleta de verdade, a caridade pode ser compreendida pelo homem na sua riqueza de valores, partilhada e comunicada. Com efeito, a verdade é «lógos» que cria «diá-logos» e, consequentemente, comunicação e comunhão. A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas. A verdade abre e une as inteligências no lógos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade. No actual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral. Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito restrito e carecido de relações; fica excluída dos projectos e processos de construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a realização prática.

5. A caridade é amor recebido e dado; é «graça» (cháris). A sua nascente é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo (cf. Jo 13, 1), é «derramado em nossos corações pelo Espírito Santo» (Rm 5, 5). Destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade.

A esta dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta a doutrina social da Igreja. Tal doutrina é «caritas in veritate in re sociali», ou seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade. Esta preserva e exprime a força libertadora da caridade nas vicissitudes sempre novas da história. É ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos. O desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves problemas sócio-económicos que afligem a humanidade precisam desta verdade. Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada e testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a actividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os actuais.

6. «Caritas in veritate» é um princípio à volta do qual gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da acção moral. Destes, desejo lembrar dois em particular, requeridos especialmente pelo compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização: a justiça e o bem comum.

Em primeiro lugar, a justiça. Ubi societas, ibi ius: cada sociedade elabora um sistema próprio de justiça. A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é «meu»; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é «dele», o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso «dar» ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é «inseparável da caridade»[1], é-lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, «a medida mínima» dela[2], parte integrante daquele amor «por acções e em verdade» (1 Jo 3, 18) a que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela empenha-se na construção da «cidade do homem» segundo o direito e a justiça. Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão[3]. A «cidade do homem» não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo.

7. Depois, é preciso ter em grande consideração o bem comum. Amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas: o bem comum. É o bem daquele «nós-todos», formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social[4]. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às suas necessidade reais. Todo o cristão é chamado a esta caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de incidência na pólis. Este é o caminho institucional - podemos mesmo dizer político - da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai directamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina que, agindo no tempo, prepara o eterno. A acção do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações[5], para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras.

8. Ao publicar a encíclica Populorum progressio em 1967, o meu venerado predecessor Paulo VI iluminou o grande tema do desenvolvimento dos povos com o esplendor da verdade e com a luz suave da caridade de Cristo. Afirmou que o anúncio de Cristo é o primeiro e principal factor de desenvolvimento[6] e deixou-nos a recomendação de caminhar pela estrada do desenvolvimento com todo o nosso coração e com toda a nossa inteligência[7], ou seja, com o ardor da caridade e a sapiência da verdade. É a verdade originária do amor de Deus - graça a nós concedida - que abre ao dom a nossa vida e torna possível esperar num «desenvolvimento do homem todo e de todos os homens»[8], numa passagem «de condições menos humanas a condições mais humanas»[9], que se obtém vencendo as dificuldades que inevitavelmente se encontram ao longo do caminho.

Passados mais de quarenta anos da publicação da referida encíclica, pretendo prestar homenagem e honrar a memória do grande Pontífice Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral e colocando-me na senda pelos mesmos traçada para os actualizar nos dias que correm. Este processo de actualização teve início com a encíclica Sollicitudo rei socialis do Servo de Deus João Paulo II, que desse modo quis comemorar a Populorum progressio no vigésimo aniversário da sua publicação. Até então, semelhante comemoração tinha-se reservado apenas para a Rerum novarum. Passados outros vinte anos, exprimo a minha convicção de que a Populorum progressio merece ser considerada como «a Rerum novarum da época contemporânea», que ilumina o caminho da humanidade em vias de unificação.

9. O amor na verdade - caritas in veritate - é um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização. O risco do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interacção ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano. Só através da caridade, iluminada pela luz da razão e da fé, é possível alcançar objectivos de desenvolvimento dotados de uma valência mais humana e humanizadora. A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf. Rm 12, 21) e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades.

A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer[10] e não pretende «de modo algum imiscuir-se na política dos Estados»[11]; mas tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do homem, da sua dignidade, da sua vocação. Sem verdade, cai-se numa visão empirista e céptica da vida, incapaz de se elevar acima da acção porque não está interessada em identificar os valores - às vezes nem sequer os significados - pelos quais julgá-la e orientá-la. A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente. Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que liberta. Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que frequentemente a encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da sociedade dos homens e dos povos[12].



CAPÍTULO I

A MENSAGEM
DA POPULORUM PROGRESSIO

10. A releitura da Populorum progressio, mais de quarenta anos depois da sua publicação, incita a permanecer fiéis à sua mensagem de caridade e de verdade, considerando-a no âmbito do magistério específico de Paulo VI e, mais em geral, dentro da tradição da doutrina social da Igreja. Depois há que avaliar os termos diferentes em que hoje, diversamente de então, se coloca o problema do desenvolvimento. Por isso, o ponto de vista correcto é o da Tradição da fé apostólica[13], património antigo e novo, fora do qual a Populorum progressio seria um documento sem raízes e as questões do desenvolvimento ficariam reduzidas unicamente a dados sociológicos.

11. A publicação da Populorum progressio deu-se imediatamente depois da conclusão do Concílio Ecuménico Vaticano II. A própria encíclica sublinha, nos primeiros parágrafos, a sua relação íntima com o Concílio[14]. Vinte anos depois, era João Paulo II que destacava, na Sollicitudo rei socialis, a fecunda relação daquela encíclica com o Concílio, particularmente com a constituição pastoral Gaudium et spes[15]. Desejo, também eu, lembrar aqui a importância que o Concílio Vaticano II teve na encíclica de Paulo VI e em todo o sucessivo magistério social dos Sumos Pontífices. O Concílio aprofundou aquilo que desde sempre pertence à verdade da fé, ou seja, que a Igreja, estando ao serviço de Deus, serve o mundo em termos de amor e verdade. Foi precisamente desta perspectiva que partiu Paulo VI para nos comunicar duas grandes verdades. A primeira é que a Igreja inteira, em todo o seu ser e agir, quando anuncia, celebra e actua na caridade, tende a promover o desenvolvimento integral do homem. Ela tem um papel público que não se esgota nas suas actividades de assistência ou de educação, mas revela todas as suas energias ao serviço da promoção do homem e da fraternidade universal quando pode usufruir de um regime de liberdade. Em não poucos casos, tal liberdade vê-se impedida por proibições e perseguições; ou então é limitada, quando a presença pública da Igreja fica reduzida unicamente às suas actividades sócio-caritativas. A segunda verdade é que o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões[16]. Sem a perspectiva duma vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro. Fechado dentro da história, está sujeito ao risco de reduzir-se a simples incremento do ter; deste modo, a humanidade perde a coragem de permanecer disponível para os bens mais altos, para as grandes e altruístas iniciativas solicitadas pela caridade universal. O homem não se desenvolve apenas com as suas próprias forças, nem o desenvolvimento é algo que se lhe possa dar simplesmente de fora. Muitas vezes, ao longo da história, pensou-se que era suficiente a criação de instituições para garantir à humanidade a satisfação do direito ao desenvolvimento. Infelizmente foi depositada excessiva confiança em tais instituições, como se estas pudessem conseguir automaticamente o objectivo desejado. Na realidade, as instituições sozinhas não bastam, porque o desenvolvimento humano integral é primariamente vocação e, por conseguinte, exige uma livre e solidária assunção de responsabilidade por parte de todos. Além disso, tal desenvolvimento requer uma visão transcendente da pessoa, tem necessidade de Deus: sem Ele, o desenvolvimento ou é negado ou acaba confiado unicamente às mãos do homem, que cai na presunção da auto-salvação e acaba por fomentar um desenvolvimento desumanizado. Aliás, só o encontro com Deus permite deixar de «ver no outro sempre e apenas o outro»[17], para reconhecer nele a imagem divina, chegando assim a descobrir verdadeiramente o outro e a maturar um amor que «se torna cuidado do outro e pelo outro»[18].

12. A ligação entre a Populorum progressio e o Concílio Vaticano II não representa um corte entre o magistério social de Paulo VI e o dos Pontífices seus predecessores, visto que o Concílio constitui um aprofundamento de tal magistério na continuidade da vida da Igreja[19]. Neste sentido, não ajudam à clareza certas subdivisões abstractas da doutrina social da Igreja, que aplicam ao ensinamento social pontifício categorias que lhe são alheias. Não existem duas tipologias de doutrina social - uma pré-conciliar e outra pós-conciliar -, diversas entre si, mas um único ensinamento, coerente e simultaneamente sempre novo[20). É justo evidenciar a peculiaridade de uma ou outra encíclica, do ensinamento deste ou daquele Pontífice, mas sem jamais perder de vista a coerência do corpus doutrinal inteiro[21]. Coerência não significa reclusão num sistema, mas sobretudo fidelidade dinâmica a uma luz recebida. A doutrina social da Igreja ilumina, com uma luz imutável, os problemas novos que vão aparecendo[22]. Isto salvaguarda o carácter quer permanente quer histórico deste «património» doutrinal[23], o qual, com as suas características específicas, faz parte da Tradição sempre viva da Igreja[24]. A doutrina social está construída sobre o fundamento que foi transmitido pelos Apóstolos aos Padres da Igreja e, depois, acolhido e aprofundado pelos grandes Doutores cristãos. Tal doutrina remonta, em última análise, ao Homem novo, ao «último Adão que Se tornou espírito vivificante» (1 Cor 15, 45) e é princípio da caridade que «nunca acabará» (1 Cor 13, 8). É testemunhada pelos Santos e por quantos deram a vida por Cristo Salvador no campo da justiça e da paz. Nela se exprime a missão profética que têm os Sumos Pontífices de guiar apostolicamente a Igreja de Cristo e discernir as novas exigências da evangelização. Por estas razões, a Populorum progressio, inserida na grande corrente da Tradição, é capaz de nos falar ainda a nós, hoje.

13. Além da sua importante ligação com toda a doutrina social da Igreja, a Populorum progressio está intimamente conexa com o magistério global de Paulo VI e, de modo particular, com o seu magistério social. De grande relevo foi, sem dúvida, o seu ensinamento social: reafirmou a exigência imprescindível do Evangelho para a construção da sociedade segundo a liberdade e a justiça, na perspectiva ideal e histórica de uma civilização animada pelo amor. Paulo VI compreendeu claramente como se tinha tornado mundial a questão social[25] e viu a correlação entre o impulso à unificação da humanidade e o ideal cristão de uma única família dos povos, solidária na fraternidade comum. Indicou o desenvolvimento, humana e cristãmente entendido, como o coração da mensagem social cristã e propôs a caridade cristã como principal força ao serviço do desenvolvimento. Movido pelo desejo de tornar o amor de Cristo plenamente visível ao homem contemporâneo, Paulo VI enfrentou com firmeza importantes questões éticas, sem ceder às debilidades culturais do seu tempo.

14. Depois, com a carta apostólica Octogesima adveniens de 1971, Paulo VI tratou o tema do sentido da política e do perigo de visões utópicas e ideológicas que prejudicavam a sua qualidade ética e humana. São argumentos estritamente relacionados com o desenvolvimento. Infelizmente, as ideologias negativas florescem continuamente. Contra a ideologia tecnocrática, hoje particularmente radicada, já Paulo VI tinha alertado[26], ciente do grande perigo que era confiar todo o processo do desenvolvimento unicamente à técnica, porque assim ficaria sem orientação. A técnica, em si mesma, é ambivalente. Se, por um lado, há hoje quem seja propenso a confiar-lhe inteiramente tal processo de desenvolvimento, por outro, assiste-se à investida de ideologias que negam in toto a própria utilidade do desenvolvimento, considerado radicalmente anti-humano e portador somente de degradação. Mas, deste modo, acaba-se por condenar não apenas a maneira errada e injusta como por vezes os homens orientam o progresso, mas também as descobertas científicas que entretanto, se bem usadas, constituem uma oportunidade de crescimento para todos. A ideia de um mundo sem desenvolvimento exprime falta de confiança no homem e em Deus. Por conseguinte, é um grave erro desprezar as capacidades humanas de controlar os extravios do desenvolvimento ou mesmo ignorar que o homem está constitutivamente inclinado para «ser mais». Absolutizar ideologicamente o progresso técnico ou então afagar a utopia duma humanidade reconduzida ao estado originário da natureza são dois modos opostos de separar o progresso da sua apreciação moral e, consequentemente, da nossa responsabilidade.

15. Outros dois documentos de Paulo VI, embora não estritamente ligados com a doutrina social - a encíclica Humanæ vitæ, de 25 de Julho de 1968, e a exortação apostólica Evangelium nuntiandi, de 8 de Dezembro de 1975 -, são muito importantes para delinear o sentido plenamente humano do desenvolvimento proposto pela Igreja. Por isso é oportuno ler também estes textos em relação com a Populorum progressio.

A encíclica Humanæ vitæ sublinha o significado conjuntamente unitivo e procriativo da sexualidade, pondo assim como fundamento da sociedade o casal de esposos, homem e mulher, que se acolhem reciprocamente na distinção e na complementaridade; um casal, portanto, aberto à vida[27]. Não se trata de uma moral meramente individual: a Humanæ vitæ indica os fortes laços existentes entre ética da vida e ética social, inaugurando uma temática do Magistério que aos poucos foi tomando corpo em vários documentos, sendo o mais recente a encíclica Evangelium vitæ de João Paulo II[28]. A Igreja propõe, com vigor, esta ligação entre ética da vida e ética social, ciente de que não pode «ter sólidas bases uma sociedade que afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas se contradiz radicalmente aceitando e tolerando as mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada»[29].

Por sua vez, a exortação apostólica Evangelium nuntiandi tem uma relação muito forte com o desenvolvimento, visto que «a evangelização - escrevia Paulo VI - não seria completa, se não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, do homem»[30]. «Entre evangelização e promoção humana - desenvolvimento, libertação - existem de facto laços profundos»[31]: partindo desta certeza, Paulo VI ilustrava claramente a relação entre o anúncio de Cristo e a promoção da pessoa na sociedade. O testemunho da caridade de Cristo através de obras de justiça, paz e desenvolvimento faz parte da evangelização, pois a Jesus Cristo, que nos ama, interessa o homem inteiro. Sobre estes importantes ensinamentos, está fundado o aspecto missionário[32] da doutrina social da Igreja como elemento essencial de evangelização[33]. A doutrina social da Igreja é anúncio e testemunho de fé; é instrumento e lugar imprescindível de educação para a mesma.

16. Na Populorum progressio, Paulo VI quis dizer-nos, antes de mais nada, que o progresso é, na sua origem e na sua essência, uma vocação: «Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é vocação»[34]. É precisamente este facto que legitima a intervenção da Igreja nas problemáticas do desenvolvimento. Se este tocasse apenas aspectos técnicos da vida do homem, e não o sentido do seu caminhar na história juntamente com seus irmãos, nem a individuação da meta de tal caminho, a Igreja não teria motivo para falar sobre ele. Mas Paulo VI, como antes dele Leão XIII na Rerum novarum[35], estava consciente de cumprir um dever próprio da sua missão quando iluminava com a luz do Evangelho as questões sociais do seu tempo[36].

Dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce de um apelo transcendente e, por outro, que é incapaz por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último. Não é sem motivo que a palavra «vocação» volta a aparecer noutra passagem da encíclica, onde se afirma: «Não há, portanto, verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exacta do que é a vida humana»[37]. Esta visão do desenvolvimento é o coração da Populorum progressio e motiva todas as reflexões de Paulo VI sobre a liberdade, a verdade e a caridade no desenvolvimento. É também a razão principal por que tal encíclica ainda aparece actual nos nossos dias.

17. A vocação é um apelo que exige resposta livre e responsável. O desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos: nenhuma estrutura pode garantir tal desenvolvimento, prescindindo e sobrepondo-se à responsabilidade humana. Os «messianismos fascinantes, mas construtores de ilusões»[38] fundam sempre as próprias propostas na negação da dimensão transcendente do desenvolvimento, seguros de o terem inteiramente à sua disposição. Esta falsa segurança converte-se em fraqueza, porque implica a sujeição do homem, reduzido à categoria de meio para o desenvolvimento, enquanto a humildade de quem acolhe uma vocação se transforma em verdadeira autonomia, porque torna a pessoa livre. Paulo VI não tem dúvidas sobre a existência de obstáculos e condicionamentos que refreiam o desenvolvimento, mas está seguro também de que «cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam, permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso»[39]. Esta liberdade diz respeito não só ao desenvolvimento que usufruímos, mas também às situações de subdesenvolvimento, que não são fruto do acaso nem de uma necessidade histórica, mas dependem da responsabilidade humana. É por isso que «os povos da fome se dirigem hoje, de modo dramático, aos povos da opulência»[40]. Também isto é vocação, um apelo que homens livres dirigem a homens livres em ordem a uma assunção comum de responsabilidade. Viva era, em Paulo VI, a percepção da importância das estruturas económicas e das instituições, mas era igualmente clara nele a noção da sua natureza de instrumentos da liberdade humana. Somente se for livre é que o desenvolvimento pode ser integralmente humano; apenas num regime de liberdade responsável, pode crescer de maneira adequada.

18. Além de requerer a liberdade, o desenvolvimento humano integral enquanto vocação exige também que se respeite a sua verdade. A vocação ao progresso impele os homens a «realizar, conhecer e possuir mais, para ser mais»[41]. Mas aqui levanta-se o problema: que significa «ser mais»? A tal pergunta responde Paulo VI indicando a característica essencial do «desenvolvimento autêntico»: este «deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo»[42]. Na concorrência entre as várias concepções do homem, presentes na sociedade actual ainda mais intensamente do que na de Paulo VI, a visão cristã tem a peculiaridade de afirmar e justificar o valor incondicional da pessoa humana e o sentido do seu crescimento. A vocação cristã ao desenvolvimento ajuda a empenhar-se na promoção de todos os homens e do homem todo. Escrevia Paulo VI: «O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira»[43]. A fé cristã ocupa-se do desenvolvimento sem olhar a privilégios nem posições de poder nem mesmo aos méritos dos cristãos - que sem dúvida existiram e existem, a par de naturais limitações[44] -, mas contando apenas com Cristo, a Quem há-de fazer referência toda a autêntica vocação ao desenvolvimento humano integral. O Evangelho é elemento fundamental do desenvolvimento, porque lá Cristo, com «a própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo»[45]. Instruída pelo seu Senhor, a Igreja perscruta os sinais dos tempos e interpreta-os, oferecendo ao mundo «o que possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade»[46]. Precisamente porque Deus pronuncia o maior «sim» ao homem[47], este não pode deixar de se abrir à vocação divina para realizar o próprio desenvolvimento. A verdade do desenvolvimento consiste na sua integralidade: se não é desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, não é verdadeiro desenvolvimento. Esta é a mensagem central da Populorum progressio, válida hoje e sempre. O desenvolvimento humano integral no plano natural, enquanto resposta a uma vocação de Deus criador[48], procura a própria autenticação num «humanismo transcendente, que leva [o homem] a atingir a sua maior plenitude: tal é a finalidade suprema do desenvolvimento pessoal»[49]. Portanto, a vocação cristã a tal desenvolvimento compreende tanto o plano natural como o plano sobrenatural, motivo por que, «quando Deus fica eclipsado, começa a esmorecer a nossa capacidade de reconhecer a ordem natural, o fim e o "bem"»[50].

19. Finalmente, a concepção do desenvolvimento como vocação inclui nele a centralidade da caridade. Paulo VI observava, na encíclica Populorum progressio, que as causas do subdesenvolvimento não são primariamente de ordem material, convidando-nos a procurá-las noutras dimensões do homem. Em primeiro lugar, na vontade, que muitas vezes descuida os deveres da solidariedade. Em segundo, no pensamento, que nem sempre sabe orientar convenientemente o querer; por isso, para a prossecução do desenvolvimento, servem «pensadores capazes de reflexão profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo»[51]. E não é tudo; o subdesenvolvimento tem uma causa ainda mais importante do que a carência de pensamento: é «a falta de fraternidade entre os homens e entre os povos»[52]. Esta fraternidade poderá um dia ser obtida pelos homens simplesmente com as suas forças? A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna. Ao apresentar os vários níveis do processo de desenvolvimento do homem, Paulo VI colocava no vértice, depois de ter mencionado a fé, «a unidade na caridade de Cristo que nos chama a todos a participar como filhos na vida do Deus vivo, Pai de todos os homens»[53].

20. Abertas pela Populorum progressio, estas perspectivas permanecem fundamentais para dar amplitude e orientação ao nosso compromisso a favor do desenvolvimento dos povos. E a Populorum progressio sublinha repetidamente a urgência das reformas[54], pedindo para que, à vista dos grandes problemas da injustiça no desenvolvimento dos povos, se actue com coragem e sem demora. Esta urgência é ditada também pela caridade na verdade. É a caridade de Cristo que nos impele: «caritas Christi urget nos» (2 Cor 5, 14). A urgência não está inscrita só nas coisas, não deriva apenas da rápida sucessão dos acontecimentos e dos problemas, mas também do que está em jogo: a realização de uma autêntica fraternidade. A relevância deste objectivo é tal que exige a nossa disponibilidade para o compreendermos profundamente e mobilizarmo-nos concretamente, com o «coração», a fim de fazer avançar os actuais processos económicos e sociais para metas plenamente humanas.



CAPÍTULO II

O DESENVOLVIMENTO HUMANO
NO NOSSO TEMPO

21. Paulo VI tinha uma visão articulada do desenvolvimento. Com o termo «desenvolvimento», queria indicar, antes de mais nada, o objectivo de fazer sair os povos da fome, da miséria, das doenças endémicas e do analfabetismo. Isto significava, do ponto de vista económico, a sua participação activa e em condições de igualdade no processo económico internacional; do ponto de vista social, a sua evolução para sociedades instruídas e solidárias; do ponto de vista político, a consolidação de regimes democráticos capazes de assegurar a liberdade e a paz. Depois de tantos anos e enquanto contemplamos, preocupados, as evoluções e as perspectivas das crises que foram sucedendo neste período, interrogamo-nos até que ponto as expectativas de Paulo VI tenham sido satisfeitas pelo modelo de desenvolvimento que foi adoptado nos últimos decénios. E reconhecemos que eram fundadas as preocupações da Igreja acerca das capacidades do homem meramente tecnológico conseguir impor-se objectivos realistas e saber gerir, sempre adequadamente, os instrumentos à sua disposição. O lucro é útil se, como meio, for orientado para um fim que lhe indique o sentido e o modo como o produzir e utilizar. O objectivo exclusivo de lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e criar pobreza. O desenvolvimento económico desejado por Paulo VI devia ser capaz de produzir um crescimento real, extensivo a todos e concretamente sustentável. É verdade que o desenvolvimento foi e continua a ser um factor positivo, que tirou da miséria milhões de pessoas e, ultimamente, deu a muitos países a possibilidade de se tornarem actores eficazes da política internacional. Todavia há que reconhecer que o próprio desenvolvimento económico foi e continua a ser molestado por anomalias e problemas dramáticos, evidenciados ainda mais pela actual situação de crise. Esta coloca-nos improrrogavelmente diante de opções que dizem respeito sempre mais ao próprio destino do homem, o qual aliás não pode prescindir da sua natureza. As forças técnicas em campo, as inter-relações a nível mundial, os efeitos deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com frequência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração desregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a reflectir sobre as medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade. Os aspectos da crise e das suas soluções bem como de um possível novo desenvolvimento futuro estão cada vez mais interdependentes, implicam-se reciprocamente, requerem novos esforços de enquadramento global e uma nova síntese humanista. A complexidade e gravidade da situação económica actual preocupa-nos, com toda a justiça, mas devemos assumir com realismo, confiança e esperança as novas responsabilidades a que nos chama o cenário de um mundo que tem necessidade duma renovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais para construir sobre eles um futuro melhor. A crise obriga-nos a projectar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e elaboração de nova planificação. Com esta chave, feita mais de confiança que resignação, convém enfrentar as dificuldades da hora actual.

22. Actualmente, o quadro do desenvolvimento é policêntrico. Os actores e as causas tanto do subdesenvolvimento como do desenvolvimento são múltiplos, as culpas e os méritos são diferenciados. Este dado deveria induzir a libertar-se das ideologias que simplificam, de forma frequentemente artificiosa, a realidade, e levar a examinar com objectividade a espessura humana dos problemas. Hoje, a linha de demarcação entre países ricos e pobres já não é tão nítida como nos tempos da Populorum progressio, como aliás foi assinalado por João Paulo II[55]. Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de super-desenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora. Continua «o escândalo de desproporções revoltantes»[56]. Infelizmente a corrupção e a ilegalidade estão presentes tanto no comportamento de sujeitos económicos e políticos dos países ricos, antigos e novos, como nos próprios países pobres. No número de quantos não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se às vezes grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local. As ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficiários. Também no âmbito das causas imateriais ou culturais do desenvolvimento e do subdesenvolvimento podemos encontrar a mesma articulação de responsabilidades: existem formas excessivas de protecção do conhecimento por parte dos países ricos, através duma utilização demasiado rígida do direito de propriedade intelectual, especialmente no campo sanitário; ao mesmo tempo, em alguns países pobres, persistem modelos culturais e normas sociais de comportamento que retardam o processo de desenvolvimento.

23. Temos hoje muitas áreas do globo que - de forma por vezes problemática e não homogénea - evoluíram, entrando na categoria das grandes potências destinadas a jogar um papel importante no futuro. Contudo há que sublinhar que não é suficiente progredir do ponto de vista económico e tecnológico; é preciso que o desenvolvimento seja, antes de mais nada, verdadeiro e integral. A saída do atraso económico - um dado em si mesmo positivo - não resolve a complexa problemática da promoção do homem, nem nos países protagonistas de tais avanços, nem nos países economicamente já desenvolvidos, nem nos países ainda pobres que, além das antigas formas de exploração, podem vir a sofrer também as consequências negativas derivadas de um crescimento marcado por desvios e desequilíbrios.

Depois da queda dos sistemas económicos e políticos dos países comunistas da Europa Oriental e do fim dos chamados «blocos contrapostos», havia necessidade duma revisão global do desenvolvimento. Pedira-o João Paulo II, que em 1987 tinha indicado a existência destes «blocos» como uma das principais causas do subdesenvolvimento[57], enquanto a política subtraía recursos à economia e à cultura e a ideologia inibia a liberdade. Em 1991, na sequência dos acontecimentos do ano 1989, o Pontífice pediu que o fim dos «blocos» fosse seguido por uma nova planificação global do desenvolvimento, não só em tais países, mas também no Ocidente e nas regiões do mundo que estavam a evoluir[58]. Isto, porém, realizou-se apenas parcialmente, continuando a ser uma obrigação real que precisa de ser satisfeita, talvez aproveitando-se precisamente das opções necessárias para superar os problemas económicos actuais.

24. O mundo que Paulo VI tinha diante dos olhos registava muito menor integração do que hoje, embora o processo de sociabilização se apresentasse já tão adiantado que ele pôde falar de uma questão social tornada mundial. Actividade económica e função política desenrolavam-se em grande parte dentro do mesmo âmbito local e, por conseguinte, podiam inspirar recíproca confiança. A actividade produtiva tinha lugar prevalentemente dentro das fronteiras nacionais e os investimentos financeiros tinham uma circulação bastante limitada para o estrangeiro, de tal modo que a política de muitos Estados podia ainda fixar as prioridades da economia e, de alguma maneira, governar o seu andamento com os instrumentos de que ainda dispunha. Por este motivo, a Populorum progressio atribuía um papel central, embora não exclusivo, aos «poderes públicos»[59].

Actualmente, o Estado encontra-se na situação de ter de enfrentar as limitações impostas à sua soberania pelo novo contexto económico, comercial e financeiro internacional, caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais financeiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo contexto alterou o poder político dos Estados.

Hoje, aproveitando inclusivamente a lição resultante da crise económica em curso que vê os poderes públicos do Estado directamente empenhados a corrigir erros e disfunções, parece mais realista uma renovada avaliação do seu papel e poder, que hão-de ser sapientemente reconsiderados e reavaliados para se tornarem capazes, mesmo através de novas modalidades de exercício, de fazer frente aos desafios do mundo actual. Com uma melhor definição do papel dos poderes públicos, é previsível que sejam reforçadas as novas formas de participação na política nacional e internacional que se realizam através da acção das organizações operantes na sociedade civil; nesta linha, é desejável que cresçam uma atenção e uma participação mais sentidas na res publica por parte dos cidadãos.

25. Do ponto de vista social, os sistemas de segurança e previdência - já presentes em muitos países nos tempos de Paulo VI - sentem dificuldade, e poderão senti-la ainda mais no futuro, em alcançar os seus objectivos de verdadeira justiça social dentro de um quadro de forças profundamente alterado. O mercado, à medida que se foi tornando global, estimulou antes de mais nada, por parte dos países ricos, a busca de áreas para onde deslocar as actividades produtivas a baixo custo, a fim de reduzir os preços de muitos bens, aumentar o poder de compra e deste modo acelerar o índice de desenvolvimento centrado sobre um maior consumo pelo próprio mercado interno. Consequentemente, o mercado motivou novas formas de competição entre Estados, procurando atrair centros produtivos de empresas estrangeiras através de variados instrumentos, tais como impostos favoráveis e a desregulamentação do mundo do trabalho. Estes processos implicaram a redução das redes de segurança social em troca de maiores vantagens competitivas no mercado global, acarretando grave perigo para os direitos dos trabalhadores, os direitos fundamentais do homem e a solidariedade realizada pelas formas tradicionais do Estado social. Os sistemas de segurança social podem perder a capacidade de desempenhar a sua função, quer nos países emergentes, quer nos desenvolvidos há mais tempo, quer naturalmente nos países pobres. Aqui, as políticas relativas ao orçamento, com os seus cortes na despesa social, muitas vezes fomentados pelas próprias instituições financeiras internacionais, podem deixar os cidadãos impotentes diante de riscos antigos e novos; e tal impotência torna-se ainda maior devido à falta de protecção eficaz por parte das associações dos trabalhadores. O conjunto das mudanças sociais e económicas faz com que as organizações sindicais sintam maiores dificuldades no desempenho do seu dever de representar os interesses dos trabalhadores, inclusive pelo facto de os governos, por razões de utilidade económica, muitas vezes limitarem as liberdades sindicais ou a capacidade negociadora dos próprios sindicatos. Assim, as redes tradicionais de solidariedade encontram obstáculos cada vez maiores a superar. Por isso, o convite feito pela doutrina social da Igreja, a começar da Rerum novarum[60], para se criarem associações de trabalhadores em defesa dos seus direitos há-de ser honrado, hoje ainda mais do que ontem, dando antes de mais nada uma resposta pronta e clarividente à urgência de instaurar novas sinergias a nível internacional, sem descurar o nível local.

A mobilidade laboral, associada à generalizada desregulamentação, constituiu um fenómeno importante, não desprovido de aspectos positivos porque capaz de estimular a produção de nova riqueza e o intercâmbio entre culturas diversas. Todavia, quando se torna endémica a incerteza sobre as condições de trabalho, resultante dos processos de mobilidade e desregulamentação, geram-se formas de instabilidade psicológica, com dificuldade em construir percursos coerentes na própria vida, incluindo o percurso rumo ao matrimónio. Consequência disto é o aparecimento de situações de degradação humana, além de desperdício de força social. Comparado com o que sucedia na sociedade industrial do passado, hoje o desemprego provoca aspectos novos de irrelevância económica do indivíduo, e a crise actual pode apenas piorar tal situação. A exclusão do trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual. Queria recordar a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados em dar um perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: «com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social»[61].

26. No plano cultural, as diferenças, relativamente aos tempos de Paulo VI, são ainda mais acentuadas. Então, as culturas apresentavam-se bastante bem definidas e tinham maiores possibilidades de se defenderem das tentativas de homogeneização cultural. Hoje, cresceram notavelmente as possibilidades de interacção das culturas, dando espaço a novas perspectivas de diálogo intercultural; um diálogo que, para ser eficaz, deve ter como ponto de partida uma profunda noção da específica identidade dos vários interlocutores. No entanto, não se deve descurar o facto de que esta aumentada transacção de intercâmbios culturais traz consigo, actualmente, um duplo perigo. Em primeiro lugar, nota-se um ecletismo cultural assumido muitas vezes sem discernimento: as culturas são simplesmente postas lado a lado e vistas como substancialmente equivalentes e intercambiáveis umas com as outras. Isto favorece a cedência a um relativismo que não ajuda ao verdadeiro diálogo intercultural; no plano social, o relativismo cultural faz com que os grupos culturais se juntem ou convivam, mas separados, sem autêntico diálogo e, consequentemente, sem verdadeira integração. Depois, temos o perigo oposto que é constituído pelo nivelamento cultural e a homogeneização dos comportamentos e estilos de vida. Assim perde-se o significado profundo da cultura das diversas nações, das tradições dos vários povos, no âmbito das quais a pessoa se confronta com as questões fundamentais da existência[62]. Ecletismo e nivelamento cultural convergem no facto de separar a cultura da natureza humana. Assim, as culturas deixam de saber encontrar a sua medida numa natureza que as transcende[63], acabando por reduzir o homem a simples dado cultural. Quando isto acontece, a humanidade corre novos perigos de servidão e manipulação.

27. Em muitos países pobres, continua - com risco de aumentar - uma insegurança extrema de vida, que deriva da carência de alimentação: a fome ceifa ainda inúmeras vítimas entre os muitos Lázaros, a quem não é permitido - como esperara Paulo VI - sentar-se à mesa do rico avarento[64]. Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25, 35.37.42) é um imperativo ético para toda a Igreja, que é resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus. Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalização, também um objectivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra. A fome não depende tanto de uma escassez material, como sobretudo da escassez de recursos sociais, o mais importante dos quais é de natureza institucional; isto é, falta um sistema de instituições económicas que seja capaz de garantir um acesso regular e adequado, do ponto de vista nutricional, à alimentação e à água e também de enfrentar as carências relacionadas com as necessidades primárias e com a emergência de reais e verdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pela irresponsabilidade política nacional e internacional. O problema da insegurança alimentar há-de ser enfrentado numa perspectiva a longo prazo, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres por meio de investimentos em infra-estruturas rurais, sistemas de irrigação, transportes, organização dos mercados, formação e difusão de técnicas agrícolas apropriadas, isto é, capazes de utilizar o melhor possível os recursos humanos, naturais e sócio-económicos mais acessíveis a nível local, para garantir a sua manutenção a longo prazo. Tudo isto há-de ser realizado, envolvendo as comunidades locais nas opções e nas decisões relativas ao uso da terra cultivável. Nesta perspectiva, poderia revelar-se útil considerar as novas fronteiras abertas por um correcto emprego das técnicas de produção agrícola, tanto as tradicionais como as inovadoras, desde que as mesmas tenham sido, depois de adequada verificação, reconhecidas oportunas, respeitadoras do ambiente e tendo em conta as populações mais desfavorecidas. Ao mesmo tempo, não deveria ser transcurada a questão de uma equitativa reforma agrária nos países em vias de desenvolvimento. Os direitos à alimentação e à água revestem um papel importante para a consecução de outros direitos, a começar pelo direito primário à vida. Por isso, é necessário a maturação duma consciência solidária que considere a alimentação e o acesso à água como direitos universais de todos os seres humanos, sem distinções nem discriminações[65]. Além disso, é importante pôr em evidência que o caminho da solidariedade com o desenvolvimento dos países pobres pode constituir um projecto de solução para a presente crise global, como homens políticos e responsáveis de instituições internacionais têm intuído nos últimos tempos. Sustentando, através de planos de financiamento inspirados pela solidariedade, os países economicamente pobres, para que provejam eles mesmos à satisfação das solicitações de bens de consumo e de desenvolvimento dos próprios cidadãos, é possível não apenas gerar verdadeiro crescimento económico mas também concorrer para sustentar as capacidades produtivas dos países ricos que correm o risco de ficar comprometidas pela crise.

28. Um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento actual é a importância do tema do respeito pela vida, que não pode ser de modo algum separado das questões relativas ao desenvolvimento dos povos. Trata-se de um aspecto que, nos últimos tempos, está a assumir uma relevância sempre maior, obrigando-nos a alargar os conceitos de pobreza[66] e subdesenvolvimento às questões relacionadas com o acolhimento da vida, sobretudo onde o mesmo é de várias maneiras impedido.

Não só a situação de pobreza provoca ainda altas taxas de mortalidade infantil em muitas regiões, mas perduram também, em várias partes do mundo, práticas de controle demográfico por parte dos governos, que muitas vezes difundem a contracepção e chegam mesmo a impor o aborto. Nos países economicamente mais desenvolvidos, são muito difusas as legislações contrárias à vida, condicionando já o costume e a práxis e contribuindo para divulgar uma mentalidade anti-natalista que muitas vezes se procura transmitir a outros Estados como se fosse um progresso cultural.

Também algumas organizações não governamentais trabalham activamente pela difusão do aborto, promovendo nos países pobres a adopção da prática da esterilização, mesmo sem as mulheres o saberem. Além disso, há a fundada suspeita de que às vezes as próprias ajudas ao desenvolvimento sejam associadas com determinadas políticas sanitárias que realmente implicam a imposição de um forte controle dos nascimentos. Igualmente preocupantes são as legislações que prevêem a eutanásia e as pressões de grupos nacionais e internacionais que reivindicam o seu reconhecimento jurídico.

A abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento. Quando uma sociedade começa a negar e a suprimir a vida, acaba por deixar de encontrar as motivações e energias necessárias para trabalhar ao serviço do verdadeiro bem do homem. Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social[67]. O acolhimento da vida revigora as energias morais e torna-nos capazes de ajuda recíproca. Os povos ricos, cultivando a abertura à vida, podem compreender melhor as necessidades dos países pobres, evitar o emprego de enormes recursos económicos e intelectuais para satisfazer desejos egoístas dos próprios cidadãos e promover, ao invés, acções virtuosas na perspectiva duma produção moralmente sadia e solidária, no respeito do direito fundamental de cada povo e de cada pessoa à vida.

29. Outro aspecto da vida actual, intimamente relacionado com o desenvolvimento, é a negação do direito à liberdade religiosa. Não me refiro só às lutas e conflitos que ainda se disputam no mundo por motivações religiosas, embora estas às vezes sejam apenas a cobertura para razões de outro género, tais como a sede de domínio e de riqueza. Na realidade, com frequência hoje se faz apelo ao santo nome de Deus para matar, como diversas vezes foi sublinhado e deplorado publicamente pelo meu predecessor João Paulo II e por mim próprio[68]. As violências refreiam o desenvolvimento autêntico e impedem a evolução dos povos para um bem-estar sócio-económico e espiritual maior. Isto aplica-se de modo especial ao terrorismo de índole fundamentalista[69], que gera sofrimento, devastação e morte, bloqueia o diálogo entre as nações e desvia grandes recursos do seu uso pacífico e civil. Mas há que acrescentar que, se o fanatismo religioso impede em alguns contextos o exercício do direito de liberdade de religião, também a promoção programada da indiferença religiosa ou do ateísmo prático por parte de muitos países contrasta com as necessidades do desenvolvimento dos povos, subtraindo-lhes recursos espirituais e humanos. Deus é o garante do verdadeiro desenvolvimento do homem, já que, tendo-o criado à sua imagem, fundamenta de igual forma a sua dignidade transcendente e alimenta o seu anseio constitutivo de «ser mais». O homem não é um átomo perdido num universo casual[70], mas é uma criatura de Deus, à qual quis dar uma alma imortal e que desde sempre amou. Se o homem fosse fruto apenas do acaso ou da necessidade, se as suas aspirações tivessem de reduzir-se ao horizonte restrito das situações em que vive, se tudo fosse somente história e cultura e o homem não tivesse uma natureza destinada a transcender-se numa vida sobrenatural, então poder-se-ia falar de incremento ou de evolução, mas não de desenvolvimento. Quando o Estado promove, ensina ou até impõe formas de ateísmo prático, tira aos seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenharem no desenvolvimento humano integral e impede-os de avançarem com renovado dinamismo no próprio compromisso de uma resposta humana mais generosa ao amor divino[71]. Sucede também que os países economicamente desenvolvidos ou os emergentes exportem para os países pobres, no âmbito das suas relações culturais, comerciais e políticas, esta visão redutiva da pessoa e do seu destino. É o dano que o «super-desenvolvimento»[72] acarreta ao desenvolvimento autêntico, quando é acompanhado pelo «subdesenvolvimento moral»[73].

30. Nesta linha, o tema do desenvolvimento humano integral atinge um ponto ainda mais complexo: a correlação entre os seus vários elementos requer que nos empenhemos por fazer interagir os diversos níveis do saber humano tendo em vista a promoção de um verdadeiro desenvolvimento dos povos. Muitas vezes pensa-se que o desenvolvimento ou as medidas sócio-económicas com ele relacionadas necessitam apenas de ser postos em prática como fruto de um agir comum, ignorando que este agir comum precisa de ser orientado, porque «toda a acção social implica uma doutrina»[74]. Vista a complexidade dos problemas, é óbvio que as várias disciplinas devem colaborar através de uma ordenada interdisciplinaridade. A caridade não exclui o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o a partir de dentro. O saber nunca é obra apenas da inteligência; pode, sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a experiência, mas se quer ser sapiência capaz de orientar o homem à luz dos princípios primeiros e dos seus fins últimos, deve ser «temperado» com o «sal» da caridade. A acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor. De facto, «aquele que está animado de verdadeira caridade é engenhoso em descobrir as causas da miséria, encontrar os meios de a combater e vencê-la resolutamente»[75]. Relativamente aos fenómenos que analisamos, a caridade na verdade requer, antes de mais nada, conhecer e compreender, no respeito consciencioso da competência específica de cada nível do saber. A caridade não é uma junção posterior, como se fosse um apêndice ao trabalho já concluído das várias disciplinas, mas dialoga com elas desde o início. As exigências do amor não contradizem as da razão. O saber humano é insuficiente e as conclusões das ciências não poderão sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integral do homem. Sempre é preciso lançar-se mais além: exige-o a caridade na verdade[76]. Todavia, ir mais além nunca significa prescindir das conclusões da razão, nem contradizer os seus resultados. Não aparece a inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor.

31. Isto significa que as ponderações morais e a pesquisa científica devem crescer juntas e que a caridade as deve animar num todo interdisciplinar harmónico, feito de unidade e distinção. A doutrina social da Igreja, que tem «uma importante dimensão interdisciplinar»[77], pode desempenhar, nesta perspectiva, uma função de extraordinária eficácia. Ela permite à fé, à teologia, à metafísica e às ciências encontrarem o próprio lugar no âmbito de uma colaboração ao serviço do homem; é sobretudo aqui que a doutrina social da Igreja actua a sua dimensão sapiencial. Paulo VI tinha visto claramente que, entre as causas do subdesenvolvimento, conta-se uma carência de sabedoria, de reflexão, de pensamento capaz de realizar uma síntese orientadora[78], que requer «uma visão clara de todos os aspectos económicos, sociais, culturais e espirituais»[79]. A excessiva fragmentação do saber[80], o isolamento das ciências humanas relativamente à metafísica[81], as dificuldades no diálogo entre as ciências e a teologia danificam não só o avanço do saber mas também o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se verifica, fica obstaculizada a visão do bem completo do homem nas várias dimensões que o caracterizam. É indispensável o «alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma»[82] para se conseguir sopesar adequadamente todos os termos da questão do desenvolvimento e da solução dos problemas sócio-económicos.

32. As grandes novidades, que o quadro actual do desenvolvimento dos povos apresenta, exigem em muitos casos novas soluções. Estas hão-de ser procuradas conjuntamente no respeito das leis próprias de cada realidade e à luz duma visão integral do homem, que espelhe os vários aspectos da pessoa humana, contemplada com o olhar purificado pela caridade. Descobrir-se-ão então singulares convergências e concretas possibilidades de solução, sem renunciar a qualquer componente fundamental da vida humana.

A dignidade da pessoa e as exigências da justiça requerem, sobretudo hoje, que as opções económicas não façam aumentar, de forma excessiva e moralmente inaceitável, as diferenças de riqueza[83] e que se continue a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para todos, ou da sua manutenção. Bem vistas as coisas, isto é exigido também pela «razão económica». O aumento sistemático das desigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo país e entre as populações dos diversos países, ou seja, o aumento maciço da pobreza em sentido relativo, tende não só a minar a coesão social - e, por este caminho, põe em risco a democracia -, mas tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do «capital social», isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil.

E é ainda a ciência económica a dizer-nos que uma situação estrutural de insegurança gera comportamentos anti-produtivos e de desperdício de recursos humanos, já que o trabalhador tende a adaptar-se passivamente aos mecanismos automáticos, em vez de dar largas à criatividade. Também neste ponto se verifica uma convergência entre ciência económica e ponderação moral. Os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam sempre também custos humanos.

Há ainda que recordar que o nivelamento das culturas à dimensão tecnológica, se a curto prazo pode favorecer a obtenção de lucros, a longo prazo dificulta o enriquecimento recíproco e as dinâmicas de cooperação. É importante distinguir entre considerações económicas ou sociológicas a curto prazo e a longo prazo. A diminuição do nível de tutela dos direitos dos trabalhadores ou a renúncia a mecanismos de redistribuição do rendimento, para fazer o país ganhar maior competitividade internacional, impede a afirmação de um desenvolvimento de longa duração. Por isso, há que avaliar atentamente as consequências que podem ter sobre as pessoas as tendência actuais para uma economia a curto senão mesmo curtíssimo prazo. Isto requer uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins[84], bem como uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento, para se corrigirem as suas disfunções e desvios. Na realidade, exige-o o estado de saúde ecológica da terra; pede-o sobretudo a crise cultural e moral do homem, cujos sintomas são evidentes por toda a parte.

33. Passados mais de quarenta anos da publicação da Populorum progressio, o seu tema de fundo - precisamente o progresso - permanece ainda um problema em aberto, que se tornou mais agudo e premente com a crise económico-financeira em curso. Se algumas áreas do globo, outrora oprimidas pela pobreza, registaram mudanças notáveis em termos de crescime

Fonte Ecclesia

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