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Quem quer matar Deus?
2008-12-28 22:33:15

"Deus provavelmente não existe, de modo que deixe de se preocupar e goze a vida". O inusitado slogan vai decorar 30 autocarros de Londres, no Reino Unido, durante todo o mês de Janeiro próximo.

Conscientes de que na era da imagem até as guerras de religião podem ser travadas em cartazes publicitários, os ateus britânicos apelaram ao lema para tentar convencer as pessoas de que Deus é uma invenção. Por iniciativa da British Humanist Association (BHA) e do seu presidente, o professor Richard Dawkins - reconhecido teórico da evolução, catedrático na Universidade de Oxford e autor de vários livros de divulgação científica, como "A Desilusão de Deus" (Casa das Letras) -, numa iniciativa sem precedentes mas que reflecte o aparente regresso do ateísmo militante, tão vigoroso na época das Luzes (século XVIII), ao Ocidente.

Em Portugal, país de tradições católicas tão antigas que o mito fundador do país atribui à inspiração divina a vitória de D. Afonso Henriques sobre um exército muçulmano muito maior do que o seu nos campos de Ourique, em 1139, o ateísmo é ainda pouco visível. Não obstante, foi já constituída, em Maio, a primeira Associação Ateísta Portuguesa (AAP), que não enjeita adoptar "uma campanha semelhante à de Dawkins", segundo Carlos Esperança, presidente daquela organização.

Todavia, mais do que a campanha londrina - que poderá estender-se a outros países europeus e até aos EUA -, interessa questionar a que se deve esse fulgor de recusa do divino. Porquê agora? E quais os seus objectivos? E estará de facto a religião em declínio no Mundo Ocidental, ou assume novas configurações? A quatro dias do Natal, essa festa maior da Cristandade que celebra o parto da criança que seria Deus tornado homem, é o tempo ideal para reflectir sobre as razões que movem os novos assassinos Dele. E das demais divindades.

É possível não acreditar no divino?

O problema de fundo assinalado por Carlos Esperança é, pelo contrário, o maior êxito da BHA: propondo-se angariar os 8064 dólares necessários a um mês de anúncios em 30 autocarros, levou só duas horas para amealhá-los, numa campanha que, iniciada a 21 de Outubro, chegou a Dezembro com mais de 190 mil dólares.

“Os doadores sentem que não têm voz, que o Governo e a sociedade prestam demasiada atenção à religião e aos seus líderes, enquanto ignoram os que não são religiosos”, diz Hanne Stinson, directora da BHA, para justificar a surpreendente adesão.

A iniciativa soma-se a outras manifestações de um ateísmo mais activo na Europa, como a proliferação de ensaios contra a religião e o aumento dos pedidos de apostasía em Espanha e Itália, por exemplo – em Portugal não há dados. Inclusivamente nos EUA, cujas notas de dólar trazem o lema “in God we trust”, nos últimos anos as associações de não-crentes observaram um crescimento sustentado. E a Secular Coalition for America conseguiu, até, contratar um lóbista no Congresso, Lori Lipman Brown, visando contrariar a influência da religião na arena política. Radical, Dawkins chega a dizer, no seu “best-seller” (1,5 milhões de exemplares vendidos) que “a situação actual dos ateus nos EUA é comparável à que enfrentavam os homossexuais há 50 anos”. Só que, ao contrário dos grupos religiosos, sustenta, o problema dos ateus é que não estão organizados.

Mas começam a ficar. Para o teólogo Anselmo Borges, que acabou de publicar uma colectânea de artigos (”Janela do (In)finito”, Campo das Letras) onde debate também o ateísmo, a nova investida dos ateus e respectivo ensejo organizativo “deve-se ao materialismo e o hedonismo actuais”. Sugere, porém, que “as principais motivações estão, por um lado, no avanço da Ciência, designadamente da genética e das neurociências, que já fornecem muitas respostas sobre o Homem”, e, por outro lado, “no Mal do Mundo”, isto é, “face à violência e à guerra que são geradas em nome de Deus, as pessoas tendem a advogar que seria melhor que esse Deus não existisse. Essa é, aliás, a tese central de Dawkins”, assinala.

No entanto, a militância renovada dos ateus, reflectida na abundância de obras que defendem o ateísmo – por autores tão ilustres como Christopher Hitchens (”Deus não é Grande”, Dom Quixote), Sam Harris (“O Fim da fé”, Tinta-da-China), Michael Onfray (”Tratado de Ateologia”) e John Dupré (”Darwin’s Legacy”) –, não parece ser tanto uma reacção ao terrorismo integrista islâmico, mas antes um ataque às igrejas do Ocidente. A campanha de Dawkins nos autocarros será uma resposta, diz a BHA, “às operações agressivas de grupos cristãos fundamentalistas, que usam os espaços promocionais dos transportes públicos para proselitismo”.

Em Portugal, os objectivos globais da AAP são os mesmos: além de uma “aceitação social do ateísmo”, pretende “erradicar a influência da religião, designadamente da Igreja Católica, sobre o Estado, e o regresso à ética republicana, que é urgente”, diz Esperança, assinalando que no último estudo sobre a matéria em Portugal, de 2002, “cerca de 400 mil pessoas declararam-se ateias ou não-crentes, e não chocaria que hoje fossem cerca do dobro”. Aqui ao lado, Espanha será o caso de maior radicalismo. Após 40 anos de franquismo com apoio da Igreja Católica, a reacção anticlerical dos jovens é muito mais virulenta, e as solicitações de apostasía multiplicaram-se: no primeiro semestre deste ano foram 529, superando o total de 2007 (287) e de 2006 (47).

As estatísticas parecem contrariar, porém, a ideia de que o ateísmo militante estará a crescer na Europa: só um quarto da população é que se declara “não religiosa” e apenas 5% se afirma ateu convicto. De resto, ser ateu é muito mais do que a recusa do Estado confessional ou a indiferença, quiçá o abandono, da prática religiosa: para o teólogo alemão Hans Küng, “o autêntico ateísmo nega todo o tipo de Deus e todo o divino, tanto entendidos em sentido mitológico como concebidos de forma teológica ou filosófica”. Neste sentido, o próprio ateísmo, enquanto experiência espiritual, estará a perder terreno. “A maioria dos não-crentes diz-se, na realidade, agnóstica, pois o ateísmo implica uma profunda convicção sobre uma questão: a não existência de Deus. E a verdade é que todos duvidam”, realça o filósofo francês Michel Eltchannoff.

Essa natureza dubitativa em torno do divino poderá explicar, até, o ressurgimento contemporâneo das superstições, seitas e ocultismos. Em França, país de Descartes e dos Enciclopedistas, as artes divinatórias geram um volume de negócios de 4200 milhões de dólares anuais, isto é, cerca de 15 milhões de consultas por ano, repartidas entre uns 100 mil “profissionais” da bola de cristal, mais os livros de profecias, astrologia e ciências ocultas… Em Portugal, embora falte estatística, a proliferação de anúncios de videntes e quejandos é suficiente para perceber que o negócio prospera, autorizando a tese de que vivemos num Mundo onde o irracional é a norma e grande parte da Humanidade crê em Deus, ainda que cada qual o defina a seu modo.

Aliás, neste contexto torna-se pertinente a pergunta sugerida por Anselmo Borges: “Porque é que a campanha publicitária dos autocarros londrinos declara que Deus ‘provavelmente’ não existe? Porque não dizer logo que ‘Deus não existe’, se há essa certeza?”. Segundo a BHA, porque o “provavelmente” evita ferir susceptibilidades e violar as leis britânicas da publicidade. Mas a melhor explicação talvez radique, afinal, na advertência formulada na Grécia pelo matemático Euclides, 300 anos antes de Cristo: “O que é afirmado sem provas pode ser refutado sem provas”.

Fonte JN

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