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O inferno ainda mexe
2008-03-04 21:47:45

O Papa Bento XVI disse que não podemos esquecer
o inferno. Ele está diferente. Pode estar vazio,
dizem uns. Já não tem caldeirão, dizem outros.
É um espaço que traduz a liberdade, a possibilidade
de fazer algo contra Deus.


Chamas, caldeirões, almas a arder, diabos com forquilhas, gritos eternos. O inferno, tal como nos chegou representado pela arte, ainda mexe? Tem ele alguma coisa a ver com a liberdade? E os papas andam a contradizer-se uns aos outros?
Há dias, em Roma, o Papa Bento XVI referiu-se ao tema, dizendo que "o inferno, de que se fala tão pouco neste tempo, existe e é eterno". A história da arte está cheia de representações do inferno, mas o Papa não falou de imagens.
A frase remetia para um aspecto complementar do que afirmara João Paulo II, no Verão de 1999: o inferno não é "um lugar físico entre as nuvens", mas a "situação de quem se afasta de Deus", disse então o Papa Wojtyla. Aliás, o Catecismo da Igreja Católica, promulgado por João Paulo II, defende que é esse "estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados que se designa por "inferno"".
Juntando teologia e arte, Dante descrevia assim, no início do canto III do poema A Divina Comédia, a porta do inferno: "Por mim vai-se à cidade que é dolente,/ por mim se vai à eterna dor,/ por mim se vai entre a perdida gente.// [...] Antes de mim não houve cousas mais/ do que as eternas e eu eterna duro./ Deixai toda a esperança, vós que entrais."
O inferno de Dante, escrito no início do século XIV, foi inspiração para muitos artistas, que se centraram nos nove círculos que compõem o vestíbulo do inferno ou então nas portas, "mais aterradoras" ainda, recorda Rowena Loverance, em Christian Art. O fogo é o elemento de eleição de muitos artistas, como se pode ver em O Juízo Final de Fra Angelico. Muito conhecidas também são as representações do pintor Hieronymus Bosch (c. 1450-1516).
O inferno pode ter caldeirões, além do fogo, cavernas, diabos e variados instrumentos de tortura e foi sobretudo representado até aos séculos XVII e XVIII na pintura religiosa. "Os infernos são sempre uma caverna ou uma sala muito escura iluminada por labaredas. Às vezes há um caldeirão com os condenados, outras vezes uma espécie de mesa onde os diabos estão a castigar os condenados", diz Dagoberto Markl, do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. No famoso quadro do museu, exactamente intitulado O Inferno, lá está o caldeirão, com as vítimas do pecado da inveja e da preguiça a serem cozinhadas. No quadro, de que não se conhece o autor, Lúcifer está no trono e é representado neste início do século XVI como um índio do Brasil.
Esta é uma das pinturas preferidas do artista plástico Pedro Calapez, o autor dos painéis dos mistérios do Rosário da nova Igreja da Santíssima Trindade, em Fátima. Ele, que já pintou duas portas do inferno, diz que "estas referências iconográficas, que remetem para o sofrimento, nos fazem pensar".
Calapez, que pintou as duas portas para uma exposição na Galeria Diferença, no Porto (1985), intitulada As Palavras Seladas, cita também Fra Angelico como referência. "As grutas com porta são a primeira ambiguidade sobre o inferno. O que está para lá? Não há chamas, mas também poderiam lá estar. A porta do inferno está nessa zona de ambiguidade que deixa a cada um adivinhar o que está para lá. E são essas ambiguidades que os artistas cultivam e que a Igreja por vezes tem dificuldade em aceitar."
Recusar Deus
A eterna dor, o fim de toda a esperança, o lugar do sofrimento, do desespero e da condenação? João Duque, professor de Teologia Fundamental em Braga, na Universidade Católica, explica: "O inferno afirma-se na tradição católica como uma possibilidade que se deve manter em aberto. Não como um lugar físico, de condenação, mas como algo que traduz o modo de conceber o ser humano em relação com a sua liberdade como questão fundamental e da seriedade da vida humana."
A vida, acrescenta o autor de Dizer Deus na Pós-Modernidade, "é suficientemente séria para ter um peso eterno". Incluindo a opção de "prescindir de Deus ou querer estar contra Deus", de o ser humano dizer "não ao projecto de criação de Deus". Só essa possibilidade "garante a liberdade do ser humano", insiste Duque - ou seja, o inferno retrata também essa possibilidade de recusar Deus.
Teólogo e pintor, pelos vistos, estão de acordo em que o caldeirão pertence ao passado. "Pode ser hoje uma imagem menos credível", admite Pedro Calapez. "É mais credível que a preparação para o Paraíso se faça com a vida na terra."
Em Eretica - The Transcendent and the Profane in Contemporary Art, Demetrio Paparoni, tal como João Duque, toma a vida como uma questão séria: "O ponto fulcral da nossa relação com a divindade é a questão da vida antes e depois da nossa morte na terra: o ímpeto vital, e não o medo do que nos espera depois da morte, foi o que levou artistas no passado a apropriar-se de imagens religiosas."
Essa apropriação continua, embora de forma diversa. Filipa Oliveira, curadora de arte, diz que "ultimamente aparece nas feiras e bienais uma arte escabrosa, muito cruel, que representa o homem em decadência, que pode ser relacionado com a ideia de inferno". E explica: "Não com o inferno da doutrina católica, mas com o inferno em que transformámos o nosso mundo, com a maldade - e esse é um tema contemporâneo."
Talvez se possa ler nesta chave um conjunto de esculturas de Anthony Gormley, que em 2004 esteve na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Contrastando com as figuras colocadas nos jardins e em espaços cheios de luz, o artista britânico tinha depois vários conjuntos expostos em salas mais escondidas e escuras. Moldados em ferro, eram corpos amontoados, pendurados, voltados contra a parede. "Eram posições infernais", é a expressão utilizada por Paulo Vale, professor de Cristianismo e Cultura na Universidade Católica Portuguesa, numa leitura da exposição.
Há outros nomes que podem remeter para este tipo de representação. Paulo Vale recorda os irmãos Jake and Dinos Chapman ou Mike Kelly. George Steiner também escrevia em O Castelo do Barba Azul que o inferno desapareceu, tendo-se tornado uma metáfora do "inferno" contemporâneo.
Filipa Oliveira lembra ainda o artista plástico Santiago Sierra ou Leon Ferrari, que, na última Bienal de Veneza, apresentou um foguetão em formato de cruz com Jesus Cristo pregado e recortes do L"Osservatore Romano, com notícias religiosas misturadas com pinturas antigas para afirmar "a falência do que tradicionalmente a Igreja Católica propunha" e que esta tinha causado muitos males do mundo.
Sim, admite João Duque. O cristianismo assumiu o ambiente apocalíptico do judaísmo do século I. A imagem do Sheol, ou morada dos mortos, conduzira a uma "interpretação directa" do que poderia ser a condenação eterna. "O problema foi quando o inferno levou à ideia de castigo."
A verdadeira liberdade
Hoje, a leitura teológica da questão prefere sublinhar outros aspectos. Um teólogo muito citado por João Paulo II, Hans Urs von Balthasar, dizia que o inferno poderia ser um lugar vazio, pois a misericórdia de Deus é mais forte que o pecado humano.
Uma perspectiva simpática, mas que levanta outros problemas. "Em última instância, a vida humana seria um jogo aparente, porque Deus acabaria por nos salvar a todos", explica João Duque. Para os que defendem esta perspectiva, "a força dos que querem a salvação é tal que ela irradia para outros". E Deus, neste caso, pode ser uma opção implícita: "Ao agir pelo bem, a pessoa estaria a fazer, em certo sentido, uma opção por Deus."
E o que é a salvação? E quem se salva? O professor de Teologia Fundamental diz que há vários marxistas e não crentes que têm feito esta pergunta: "Devemos admitir que os algozes e vítimas da história humana fiquem assim para sempre?" Para os que fazem tal pergunta, "o julgamento da História não é suficiente, pois nunca conseguirá restituir a verdade às vítimas".
Nesse sentido, "só Deus pode trazer a verdade ao de cima", diz João Duque. Questão diferente é saber se esse reconhecimento "implica ou não uma condenação eterna". Será esta, enfim, uma questão como a de saber o sexo dos anjos? "Tudo o que é um discurso sobre o além é para estar calado", afirma o teólogo. "A única questão é o efeito que isto tem ou não sobre a vida real. Joga-se aí a perspectiva que cada um de nós tem sobre o que é ser humano."
João Duque insiste: "Se não existe possibilidade de fazer algo contra Deus, então não há verdadeira liberdade. O tempo que vivemos é o tempo em que jogamos algo de verdadeiramente importante."

António Marujo

Fonte Público

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