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A Fé e a escuta da Palavra de Deus - Catequese do Cardeal-Patriarca no 3.º Domingo da Quaresma
2008-02-28 22:16:01

1. “A Deus que revela é devida a obediência da fé”[1]. O Concílio, inspirado em São Paulo, para quem a fé é uma obediência a Deus que nos revelou a Sua Palavra, situa assim a relação da nossa fé com a Palavra de Deus.

Já vimos que o desejo de Deus é fazer-nos escutar a Sua Palavra eterna, entrando em comunhão íntima com o Seu mistério. Fá-lo, normalmente, através da Palavra inspirada, a Escritura, a Palavra da Igreja, a sua intervenção nos acontecimentos da nossa vida. A Palavra revelada é sacramento que nos leva à intimidade com Deus, permitindo-nos escutá-l’O, tocando o Seu desígnio a nosso respeito. Através da palavra humana da Escritura ou da Igreja, Deus pode estabelecer, com cada crente, um diálogo de revelação e de intimidade, que apenas explicita e situa na vida de cada um a Palavra de Deus encarnada na Palavra revelada. As revelações privadas não podem, nem afastar-se, nem contradizer, o que Deus nos diz em Jesus Cristo e na Palavra de Deus, Escritura ou Tradição.


Quando acontece na vida de um homem ou de uma mulher sentir essa Palavra íntima de Deus, através de um acontecimento, da Palavra da Escritura ou da palavra da Igreja, fica, num momento, perante a opção mais radical da sua vida: ou escuta o Senhor e deixa que a Sua Palavra lhe transforme a existência, ou a recusa. Essa atitude de escuta e de abandono à Palavra de Deus é a fé. Esta é a resposta humana à Palavra viva de Deus, estabelece um diálogo, sela uma Aliança, desencadeia o seguimento do Senhor, passando o crente a viver com Ele, a vida, segundo a Sua vontade: “seja feita a Vossa vontade, na Terra como no Céu” (Mt. 6,10).

São Paulo chama à fé uma “obediência” (cf. Rom. 16,26;1,5). Isto significa que a fé é um abandono confiante a Deus que nos falou. No hebraico, língua em que pela primeira vez se exprimiu esta resposta do homem a Deus que Se lhe revela, a palavra significa confiança total e sem limites em alguém, confiança que dá segurança. Aquele em quem se confia torna-se o “rochedo” da nossa segurança: o Senhor é o meu rochedo e a minha salvação, canta o salmista. Isto significa que a fé é uma resposta de amor, que responde ao amor. Abandona-se na confiança da fé, aquele que sentiu, ao acolher a Palavra de Deus, que Ele o ama. O Concílio diz que, ao perceber que o Senhor nos ama, esta confiança é devida a Deus. Seria o pecado da ingratidão não responder ao amor de Deus com o nosso amor. A fé é, desde o primeiro momento, uma expressão da caridade, acto de adoração e de louvor.


2. Com o aparecimento de Jesus, que hoje sabemos ser a encarnação da Palavra eterna de Deus, o próprio Filho de Deus, a fé passa a ser a resposta a Jesus Cristo e à Sua Palavra. Aqueles que escutaram e seguiram o Senhor, podiam ainda não ter completa consciência do Seu mistério, mas aceitaram a Sua Palavra como vinda de Deus e confiaram, seguindo-O, acreditando no Seu poder de fazer milagres, vendo n’Ele o Messias prometido. Aliás Jesus pede a fé como resposta à Sua Palavra: Marcos diz: “Ele proclamava a Boa Nova vinda de Deus: os tempos completaram-se e o Reino de Deus está agora muito próximo: arrependei-vos e acreditai na Boa Nova” (Mc. 1,14-15). Deixar o barco e as redes ou a mesa de cobrador de impostos e seguir Jesus, fazendo-se seu discípulo, é uma atitude radical de confiança que envolve e transforma a própria vida.

Esta fé dos discípulos é posta à prova durante toda a vida terrena de Jesus, pelas dúvidas, pelo choque dos acontecimentos, sobretudo a morte ignominiosa do Senhor. Aceitar a Sua ressurreição é a etapa definitiva da Sua fé, onde se inaugura a fé da Igreja. Esta reconhece no Senhor a mais bela Palavra de Deus, a maior manifestação do Seu amor por nós, e responder a Deus, na fé, é comprometer-se com Jesus Cristo, que nos dá o Seu Espírito, é mergulhar n’Ele e no projecto de vida que Ele encerra. Ele revela o grande segredo de Deus acerca da nossa salvação, e escutar Deus é segui-l’O, identificar-nos com Ele, acolher a vida que Ele nos dá. Cristo tornou-se a referência inevitável da nossa fé, no seu início, no seu crescimento, na exigência do modo de viver, no conhecimento do amor de Deus, na esperança da vida em plenitude, a vida eterna.


Todo o itinerário da fé está ligado à Palavra de Deus

3. A fé cristã não é uma fé religiosa qualquer. É o abandono confiante à Palavra de Deus que nos tocou o coração e que hoje podemos ouvir em Jesus Cristo. É um projecto de intimidade e de vida com Cristo.

Os Seus ensinamentos, os relatos da Sua vida e o que significaram para nós a Sua morte e ressurreição também se tornaram Escritura, palavra revelada que nos pode levar ao encontro vivo com Cristo vivo, através dos Evangelhos e dos ensinamentos dos Apóstolos. Mas Cristo Palavra é mais do que a Escritura. Ele veio e ficou, na Sua Igreja, na Eucaristia; Ele está connosco e só não O ama e não O escuta quem não quer. Ele dá-nos o Espírito Santo que torna viva a Palavra de Deus em nós, e faz da nossa fé uma experiência de comunhão com o Pai e com o Seu Filho Jesus Cristo (cf. 1Jo. 1,3).

A fé é, assim, a atitude decisiva do cristão. Escutar Deus, em Jesus Cristo, preside a toda a caminhada da fé durante a nossa vida neste mundo. Ao seu início: escutar a Palavra, o anúncio cristão, é o início da fé. São Paulo exprime bem este itinerário da fé ligado à Palavra: referindo-se aos judeus, também eles chamados a reconhecer em Cristo a Palavra definitiva de Deus, escreve: “Mas como hão-de invocá-l’O sem primeiro acreditar n’Ele? E como hão-de acreditar sem primeiro ouvirem? E como hão-de ouvir sem pregador? E como pregar sem primeiro ser enviado? Como diz a Escritura, Oh! como são belos os pés dos mensageiros de boas novas! Mas nem todos obedeceram à Boa Nova. O próprio Isaías o disse: Senhor, quem acreditou na nossa pregação? Assim a fé nasce da pregação e desta pregação a Palavra de Cristo é o instrumento” (Rom. 10,14-17).

Está aqui claramente afirmado que a Igreja se identifica com a Sua missão de proclamar a Palavra e anunciar Jesus Cristo. A Igreja só subsiste e será fiel ao desígnio de Deus se os que já são crentes crescerem na fé e os que ainda não são crentes se converterem à fé, através do testemunho da Igreja. A pregação é um dever primordial da Igreja.

Mas a escuta da Palavra preside igualmente ao aprofundamento da fé, ou seja, à fidelidade. Quem abandona a Palavra dificilmente será fiel. O justo vive da fé e esta alimenta-se da escuta da Palavra. Ouçamos mais uma vez o Apóstolo Paulo: o Evangelho “é uma força de Deus para a salvação de todo o crente (…), porque nele a justiça de Deus revela-se da fé à fé, como está escrito: o justo viverá da fé” (Rom. 1,16-17). A expressão “da fé à fé” significa, precisamente, o aprofundamento da fé inicial, sempre através do acolhimento da Palavra, até se manifestar completamente em nós a justiça de Deus.

Manifestação deste aprofundamento da fé, continuamente alimentado pela Palavra, é uma intimidade amorosa com Deus, que gera um conhecimento luminoso sobre o sentido da revelação de Deus. Deus é luz e ao homem que acolheu a Sua Palavra, na fé, Ele comunica essa luz que revela mais profundamente o Seu desígnio de amor. “Serão todos ensinados por Deus”, prometeu Jesus. E São João relaciona este ensinamento com a atracção que Deus exerce sobre aqueles que acolheram a Sua Palavra: “Ninguém pode vir a Mim se o Pai, que Me enviou, não o atrair (…) Todo aquele que escuta este ensinamento do Pai e se instrui com ele, vem a Mim” (Jo. 6,44-45). Segundo Paulo, a sua palavra de Apóstolo leva a que “os corações sejam estimulados e estreitamente unidos no amor, para que cheguem ao pleno desabrochar da inteligência, que lhes permitirá penetrar no mistério de Deus, onde se encontram, escondidos, todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Col. 2,2-3).

Este desabrochar da inteligência que a torna capaz de um conhecimento místico, que brota do próprio dinamismo da fé, supõe a purificação da própria inteligência, que não é dispensada de acolher a revelação de Deus. A esta purificação da inteligência, Santo Agostinho chama o alargamento do coração ou a valorização do desejo, como se exprime Bento XVI, na sua recente Encíclica sobre a esperança, para quem a oração é um exercício do desejo. “O ser humano foi criado para uma realidade grande, ou seja, para o próprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas o seu coração é demasiado estreito para a grande realidade que lhe está destinada. Tem de ser dilatado”. E cita Santo Agostinho: “Assim procede Deus: diferindo a sua promessa, faz aumentar o desejo; e com o desejo, dilata a alma, tornando-a mais apta a receber os seus dons”. O grande Bispo e doutor exprime este dilatar do coração com uma imagem: “Supõe que Deus queira encher-te de mel, que é símbolo da ternura de Deus e da Sua bondade. Se tu, porém, está cheio de vinagre, onde vais pôr o mel?”[2].

Este dilatar-se do coração significa e exige purificação. Em tudo isso somos conduzidos pela Palavra revelada, lida com fé, em Igreja. Toda esta abertura ao mistério de Deus, no conhecimento e no amor, é fruto da Palavra de Deus na nossa vida. A Palavra de Deus encarna o itinerário da nossa fé. Isto pode significar um longo caminho de escuta persistente da Palavra revelada, em Igreja, aceitando o que Deus diz nela; supõe deixarmo-nos conduzir pelo Espírito, para que ela nos diga, cada vez mais profundamente, tudo o que Deus nos comunica através dela. Humanamente, a vida litúrgica da Igreja é feita de repetições da palavra da Escritura. Mas verdadeiramente a Palavra de Deus nunca se repete, escuta-se sempre de novo, porque o alargamento progressivo do coração faz-nos ouvi-la como se fosse a primeira vez.

Obediência da fé é também obediência da inteligência

4. O Concílio Vaticano II ensina-nos que a obediência da fé supõe uma completa homenagem da inteligência e da vontade ao que Deus nos revela, e um assentimento voluntário aos conteúdos dessa revelação”[3].

A palavra revelada da Escritura tem conteúdo. Nela, palavra humana, Deus revela-nos a Sua Palavra divina. Quem a ler com inteligência e em espírito de acolhimento, tem uma primeira compreensão do que Deus nos quer dizer. E na medida em que ela é carregada de mensagem, de revelação do mistério, de indicação de caminhos de vida e das exigências do amor, ela exige de nós, desde o primeiro momento, o assentimento da nossa inteligência e da nossa vontade. Esta sinceridade de atitude na escuta da palavra revelada, põe-nos em situação de poder progredir, pelo referido alargamento do coração, no acolhimento cada vez mais completo da Sua mensagem. O progresso na recepção da Palavra coincide com o dinamismo do aprofundamento da fé. É fruto da acção do Espírito em nós este poder escutar, sempre de novo e sempre melhor, a revelação de Deus na sua palavra humana. A fé, sendo a resposta do homem é, também, um dom de Deus, porque nasce e cresce ao ritmo do Espírito. “Afim de tornar sempre mais profunda a inteligência da revelação, o Espírito Santo não cessa, pelos seus dons, de tornar a fé mais perfeita”[4].

A Palavra e a fé são um único dom de Deus

5. Voltemos aos ensinamentos do Concílio: “para existir, esta fé requer a graça proveniente e adjuvante de Deus, bem como o socorro interior do Espírito Santo que toca o coração e o volta para Deus, abre os olhos do espírito e dá a todos a doçura de consentir e de acreditar na verdade”[5].

O que é que este texto nos diz? O homem tem nas suas riquezas naturais, nas capacidades da sua inteligência e do seu coração, capacidade de acolher os conteúdos da revelação, na palavra revelada. Mas essas capacidades naturais são ajudadas e fortalecidas pela acção do Espírito de Deus. Sem esta intervenção do amor de Deus, poderíamos ficar ao nível da simples leitura humana, sem mergulharmos em Deus, na intimidade do Seu Verbo. Deus valoriza as nossas capacidades humanas, mas é o Seu amor que nos leva à resposta da fé, ou seja, a fazer da nossa fé um acto de amor. O próprio amor de Deus que O leva a revelar-se, convida-nos a responder-lhe na confiança e no amor.

Quem acredita, num abandono confiante a Deus que revela o Seu amor, sente bem que a sua fé é um dom de Deus e não apenas uma atitude humana realizada só com a vontade humana. O sentimento que essa fé gera é a humildade, a acção de graças e o louvor e não o sentimento de auto-satisfação e valentia. A fé comporta, no seu dinamismo profundo, a gratuidade da salvação e o desejo da fidelidade, manifestada no desejo de viver de acordo com o amor de Deus. Nós não ganhamos a salvação com a nossa fé; ambas são um dom gratuito, fruto do amor de Deus. É esse dom gratuito de Deus que fortalece a nossa vontade para agir de acordo com a vontade de Deus. A fé e as “obras da fé”, que nos merecem a salvação, são dom gratuito de Deus (cf. Rom. 4,4-8). É o ensinamento de Paulo aos Filipenses: “Bem-amados, com esta obediência (da fé), de que tendes sempre dado provas (…) trabalhai com temor e tremor na realização da vossa salvação. Deus está presente, Ele realiza o querer e o agir, em favor dos seus benévolos desígnios” (Fil. 2,12-13).

Esta graça da salvação, pela fé, é fruto sacramental da Palavra acolhida, rezada e meditada. Já o dissemos, na Igreja a Palavra tem a força de um sacramento. Ela faz parte do conjunto dos meios de graça de que a Igreja foi enriquecida para ser sacramento de salvação.

Sé Patriarcal, 24 de Fevereiro de 2008

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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[1] Concílio Vaticano II, Dei Verbum, nº 5
[2] In Bento XVI, Spe Salvi, nº 33
[3] Cf. Dei Verbum, nº 5
[4] Ibidem
[5] Ibidem

Fonte Ecclesia

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