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Homilia do Cardeal-Patriarca de Lisboa na Missa de Quarta-Feira de Cinzas - A Beleza da Conversão
2008-02-07 22:52:07

1. Com esta celebração na Sé Catedral a Igreja de Lisboa inicia a Quaresma, tempo de intensa preparação da celebração da Páscoa neste ano da graça de 2008. A Páscoa é o acontecimento decisivo da nossa fé, manifestação máxima do amor misericordioso de Deus por nós, garantia decisiva da nossa salvação. Celebrar a Páscoa é reencontrar-se com a nossa identidade cristã, com a exigência libertadora do seguimento de Jesus Cristo, com a consolação da esperança que nela encontramos, com a alegria da caridade, de nos sentirmos amados e de amarmos, porque Deus nos amou, com a ousadia do testemunho, dessa experiência libertadora, no meio da cidade dos homens. Se queremos celebrar bem a Páscoa, não percamos tempo, ponhamo-nos a caminho, como Povo do Senhor e deixemos que Ele nos converta o coração. Para vos atrair para esta caminhada, que quero percorrer convosco, decidi meditar sobre a beleza da conversão.

Esta significa, na realidade, uma experiência de rara beleza e densidade; é a surpresa da descoberta da verdadeira vida, como se nascesse de novo.

2. A conversão não é, primariamente, uma correcção moral; esta acontecerá naturalmente como expressão de um amor reencontrado. A conversão é a abertura do coração a um amor esquecido, atraiçoado. Trata-se de recuperar uma fidelidade de amor, supõe uma experiência feita de ser amado e de amar: a conversão é, necessariamente, uma mudança do coração. O seu contexto primordial é o amor de Deus pelo Seu Povo, mistério de predilecção e de Aliança. Por isso a Palavra do profeta, que é a mensagem de Deus através dele, é: “Convertei-vos a Mim de todo o coração”; “Convertei-vos ao Senhor vosso Deus”. “Nós vos pedimos, em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus”, escreve Paulo aos Coríntios. Foi o apelo de João Paulo II no início do seu Pontificado: Abri, de par em par, as portas do vosso coração a Cristo! Mesmo humanamente, a beleza de um amor reencontrado é mais intensa que a do primeiro amor.

Situemos este desafio na vida concreta dos cristãos: quantos momentos intensos com Cristo, de intimidade experimentada, de fidelidade jurada, de projectos de vida assumidos, no Baptismo, na Confirmação, na Eucaristia, a que fomos depois infiéis, como se os tivéssemos esquecido. Quantos sentiram o apelo à oração, experimentaram a doçura da intimidade, viveram a relação com Deus como uma experiência de amor e depois não alimentaram essa intimidade, não foram fiéis a esse chamamento. Quantos experimentaram a alegria do amor fraterno e depois se foram tornando indiferentes, demasiadamente ocupados consigo mesmos. Outros viveram momentos de entusiasmo pela evangelização, manifestaram disponibilidade de partir para onde o Senhor os enviasse, e depois foram ficando, desanimados com os resultados ou incapazes de manter toda a vida a chama de um momento. Foram chamamentos a que não respondemos com radicalidade, experiências de fidelidade e de comunhão interrompidas pela nossa fragilidade ou pelo nosso pecado.

E se nos situarmos no campo do amor humano, aquele que une as pessoas em projectos comuns de partilha e sustentáculo mútuo: promessas de amor eterno apaixonadamente juradas, projectos de serviço da comunidade entusiasticamente construídos e que morreram pela desistência ou infidelidade. Converter-se é rasgar o coração, purificando-o na dor e tornando-o capaz de desejar regressar ao amor perdido ou atraiçoado. Os braços abertos de Deus nosso Pai, fonte de todo o verdadeiro amor, mais propenso à misericórdia do que ao castigo, porque deseja mais do que nós, o nosso reencontro com Ele, é a fonte de uma alegria indescritível. Realmente, converter-se é regressar ao amor perdido, é sempre e em todas as circunstâncias, converter-se ao Senhor nosso Deus.

3. A conversão enquanto regresso confiante ao amor de Deus, faz-nos sentir que Ele, na Sua misericórdia, não só desiste do castigo merecido pelos nossos pecados, mas transforma estes em força, de certo modo, em graça, dando realismo àquela verdade que aprendemos no catecismo: “Deus é um Ser perfeitíssimo… que sabe tirar o bem até do mal”. É o sentido da misteriosa afirmação do Apóstolo Paulo: “A Cristo, que não conhecera o pecado, identificou-O Deus com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos justiça de Deus”. Cristo faz-Se pecado e identifica-Se com o nosso pecado, no acto mesmo em que o redime, na intensidade do Seu amor. Cristo, que não conheceu o pecado, só se pode identificar com o pecado se este se transformar em graça, em força de amor e justiça de Deus.

Na nossa conversão, os nossos pecados não são apenas esquecidos, são transformados. Podem, até, nem ser esquecidos, porque serão lembrados como experiência de caridade, na humildade. Recordar os nossos pecados é tomar consciência da misericórdia, é sentir mais profundamente a gratuidade do amor de Deus. Transformados em graça, fazem-nos abandonar numa confiança renovada e sem limites, percebendo que nenhuma fraqueza será obstáculo ao amor, se soubermos que o único amor que redime e transforma é o amor de Deus. Essa foi a intuição de Lutero ao afirmar: “peca fortiter, crede fortius” – se pecares muito, acredita ainda mais – afirmação enfraquecida por não ter percebido que o pecado tem de ser convertido em graça, não nos bastando que Deus Se esqueça dele, e que para essa transformação não basta a intensidade humana da nossa fé, mas é precisa a acção recriadora de Deus através do poder sacramental da Igreja.

4. A beleza da conversão exprime-se, também, na sua simplicidade e discrição. “Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes”. É o ensinamento de Jesus, no Evangelho de São Mateus. O silêncio da verdade e da autenticidade. Só interessa ser e não parecer. A conversão não é espectáculo, é momento de intimidade. Ela só deve tornar-se notória aos outros, através dos frutos de um coração renovado. Isto sugere que a conversão é um momento de forte intimidade com Deus. “O Teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa”. E é da intensidade desta intimidade que brota a sua beleza.

Esta verdade do silêncio com Deus deve exprimir-se também na nossa vida pública, na comunidade, na missão que desempenhamos, nos projectos que protagonizamos, nos meios que propomos para servir a Igreja. Só não cairemos na auto-procura e auto-afirmação, se for muito forte a relação com Deus, o único que queremos servir. Neste aspecto há na nossa Igreja tanta ocasião de conversão.

5. E se fosse possível viver a Quaresma como um tempo de busca de verdade e de autenticidade para todos os homens e mulheres rectos, com um desejo autêntico de servir, mas que não são capazes de ser coerentes com os seus propósitos e fiéis aos compromissos que assumiram? Há muito egoísmo a vencer, muita superficialidade a colmatar, muita vaidade a corrigir. Mas o primeiro campo da conversão é o regresso ao amor amado, à fidelidade interrompida, ao ideal desiludido. Venham todos connosco, façamos em conjunto um caminho de regresso á liberdade e, quem sabe, talvez nesse regresso encontremos a ternura de Deus. É que a Páscoa, sendo celebrada pela Igreja, é sempre uma festa de toda a humanidade.

Sé Patriarcal, 6 de Fevereiro de 2008
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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