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A irracionalidade dos racionais
2008-01-23 22:28:07

São dois acontecimentos incomparáveis, mas ambos no fio de uma discussão civilizacional. Sob o argumento - que carece ainda de um claro esclarecimento - da prudência, o mundo ocidental cedeu à (i)lógica do medo e cancelou o Lisboa-Dakar. Sob a desculpa - esta oficial - de não estarem reunidas condições para um "acolhimento digno e tranquilo", Bento XVI cancelou a visita à prestigiada universidade romana "La Sapienza", criada no século XIV por iniciativa do Papa Bonifácio VIII.

Embora em diferentes comprimentos de onda, os dois casos resultam de dois "acontecimentos" que acabaram por… não ser.

Se no caso Lisboa-Dakar, um primeiro olhar nos diz que os prejuízos são financeiros e políticos, no caso "La Sapienza" os prejuízos são essencialmente culturais. Em comum, podem representar um revés irreparável.

Paris podia alegar muitas razões, desde uma birra pelos negócios do petróleo à violação de direitos humanos na Mauritânia. Ao colocar a fasquia no estrito lugar da nebulosa terrorista, abriu um precedente com consequências imprevisíveis.

Ao dizer que o Papa adiou a visita à "La Sapienza" por correr o risco de ser mal acolhido por uma minoria de professores e alunos, a Santa Sé sustenta inadvertidamente uma visão de laicidade sem liberdade de expressão e opinião.

Bento XVI é também bispo de Roma e nesse contexto tem responsabilidades acrescidas. Mas ao evitar "manifestações que se teriam revelado desagradáveis para todos", dá simultaneamente força a uma corrente de pensamento que, embora legítima, tende a desencadear intoleráveis radicalismos, pouco propícios ao diálogo de culturas que sustentará a civilização pós-moderna.

Alegaram os universitários subscritores do abaixo-assinado anti-Papa que Joseph Ratzinger é um "teólogo retrógrado que põe a religião à frente da ciência". Parece-me normal que se discorde do pensamento teológico de Bento XVI e da estrutura eclesiástica por ele preconizada. Afinal, Ratzinger, enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi responsável pela ostracização de brilhantes teólogos do nosso tempo, cujos pensamentos, aos poucos, se vão revelando importantes para a discussão sobre o cristianismo e o diálogo entre religiões. Mas encostar Bento XVI ao debate sobre o "heliocentrismo" e aos julgamentos por "heresia" do século XVII é um bolorento exagero.

Embora subsistam pontuais excepções em textos constitucionais, há muito que a Europa se livrou das teocracias. Os poderes eclesiásticos têm hoje o adequado registo numa desejável plataforma de diálogo cultural, onde deve prevalecer a supremacia do indivíduo e o respeito pela consciência inviolável de cada um. Estados e religiões aprofundam agora a laicidade com respeito mútuo e não valorizar esta dinâmica só facilita o reaparecimento de fundamentalismos.

O incidente de "La Sapienza" revela um equívoco. Embora alicerçada no contexto da fé - do credo -, a religião é também um dinâmico instrumento científico. De modernidade. Enquadrado nas mais básicas e irresolúveis - e, até por isso, renovadamente pertinentes - questões da(e) humanidade. Diminuir a religião ao "bafio" de tempos sombrios é voltar atrás numa jogada de "má fé"…

Curiosa coincidência. Por um lado, o Lisboa-Dakar foi cancelado pouco depois de Europa e África organizarem uma cimeira para promover a aproximação entre os dois continentes. Por outro, o Papa recua perante protestos anti-clericais numa altura em que se aprofundam plataformas de diálogo ecuménico e inter-religioso.

Nem os povos africanos, apanhados por uma galopante e perigosa estrutura radical de poder político-religioso, mereciam ser abandonados pela Europa "todo-o-terreno"; nem o Ano Europeu do Diálogo Intercultural, que deve começar dentro de casa, podia começar pior.

Joaquim Franco
Sic


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