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Santa… sexta-feira
2007-04-12 21:56:22

Estou em Ilhas, aldeia próxima de Arraiolos, onde a escola primária vai fechar as portas no próximo ano por decisão governamental, arrastando 9 crianças para a sede de um concelho que, soube-se na semana passada, corre o risco de perder também o tribunal.

Vou digerindo o cenário angustiante deste Alentejo a definhar a meio caminho entre Lisboa e Badajoz, absorvido pela nostalgia de um "best of" de Cat Stevens, o cantor e poeta pacifista que escandalizou os fãs quando nos anos 80 se converteu ao islamismo e passou a chamar-se Yusuf Islam. "Where do the children play" ganha aqui um inesperado e paradoxal enquadramento…



Os velhos consolam-se na rua, em grupos, aproveitando os escassos raios de sol da tarde primaveril, mas fria. Esta melancólica liturgia marca o compasso diário no Alentejo. Como ritual, culto a um deus generoso e acolhedor, que facilita o encontro e ajuda a por a conversa em dia, embora a história contada destes dias alentejanos, tenha cada vez menos páginas escritas ou por escrever.

Joaquim Franco
Jornalista
opiniao@sic.pt




Estou em Ilhas, aldeia próxima de Arraiolos, onde a escola primária vai fechar as portas no próximo ano por decisão governamental, arrastando 9 crianças para a sede de um concelho que, soube-se na semana passada, corre o risco de perder também o tribunal.

Vou digerindo o cenário angustiante deste Alentejo a definhar a meio caminho entre Lisboa e Badajoz, absorvido pela nostalgia de um "best of" de Cat Stevens, o cantor e poeta pacifista que escandalizou os fãs quando nos anos 80 se converteu ao islamismo e passou a chamar-se Yusuf Islam. "Where do the children play" ganha aqui um inesperado e paradoxal enquadramento…

O sol já se esconde no horizonte aberto da planície quando, no centro da aldeia, um veículo de matrícula marroquina, parado junto a uma casa, quase esconde, na tangente da cal, um jovem muçulmano, desenquadrado no ângulo, de joelhos, virado para Meca, que cumpre a obrigação do "mahgrib", a oração do pôr-do-sol. Ora descalço, como dita o "pilar", sem fazer a ablução. Não tem tapete. Apenas um cartão que, após a oração, rapidamente guarda na bagageira do carro, carregado de "mercadoria" - desde máquinas de filmar a óculos de sol - em sacos de plástico preto.

É um dos muitos vendedores que vagueiam pelo Alentejo, na procura persistente de uma oportunidade. Esta sexta-feira é "Santa" no calendário cristão e apenas mais um dia santo da semana muçulmana, o dia em que os fiéis submissos de Alá se juntam nas mesquitas para a oração comunitária.

Muitos aspectos do cristianismo são inadmissíveis aos olhos do Islão. No contexto do Islão, "se Jesus (Issa) é o profeta de uma importante mensagem sagrada (Evangelhos), está sujeito a Deus como todos os outros profetas, não podendo ser o filho de Deus, que, pela sua essência imaterial, não pode engendrar uma encarnação de si próprio", lembra o conservador-chefe da Biblioteca Nacional de França e especialista em civilização muçulmana, Yves Thoraval.

A simbólica coincidência, em pleno coração do Alto Alentejo, traça o perfil da diversidade cultural e religiosa da Europa. A referência a uma exclusiva raiz judaico-cristã no velho continente pode ser justa, mas também é redutora. Apesar dos sobejamente relatados momentos dramáticos da História, por motivações político-religiosas, Portugal é exemplo, no passado e no presente, da boa convivência entre crentes de diferentes religiões.

Na Convenção ACIME 2007, o ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, lembrou que "importa não radicalizar o discurso, importa evitar polarizar o debate em torno de termos demasiado simplistas. Toda a história demonstra que o diálogo entre culturas, civilizações e mesmo religiões, é possível".

Este é um tempo marcado por inéditos dados no contexto da pluralidade, como as migrações, que obrigam a repensar caminhos e estratégias de integração e convivência. A globalização cultural e religiosa já não é só um desafio. É uma inevitabilidade.

Na noite de Sexta-feira Santa, centenas de pessoas, cumprindo a tradição, participam na tradicional procissão do "Senhor morto", do centro da vila de Arraiolos até à igreja do castelo, numa subida pela penumbra, ao som ritmado da marcha fúnebre. A multidão - famílias inteiras - segue, ombro a ombro, em silêncio, mergulhando numa pausa do tempo, retomando uma teimosa herança, onde o que conta é a presença e o encontro na caminhada.
A cerimónia é presidida por um padre africano, que desenrola uma extensa e cansativa abordagem teológica sobre a "morte" e "ressurreição" e entoa, a finalizar, um cântico a "Cristo, Rei da Glória", perante uma assistência que permanece em silêncio. Talvez falte aquele sol que junta os alentejanos e também brilha na noite da maior fragilidade humana.

PS: No Domingo de Páscoa, o Cardeal-Patriarca de Lisboa tentou identificar "as causas das actuais dificuldades em acreditar na ressurreição de Cristo", um tema que volta a estar nos escaparates mediáticos, na sequência de um filme/documentário que insiste na tese segundo a qual Jesus casou, teve um filho e a família foi sepultada em Jerusalém. Ou seja, o "corpo" de Cristo não "ressuscitou".
D. José Policarpo entende que a sociedade contemporânea banaliza o mistério da morte. "Mata-se facilmente, põe-se, imprudentemente, a própria vida em perigo, a morte tornou-se um fenómeno clínico (...)", diz o patriarca de Lisboa acrescentando que "não acreditar na ressurreição de Cristo" é matar "a fé cristã, embora possa permitir a subsistência de uma religiosidade cristã".
O problema não estará, a meu ver, na maior aptidão deste tempo para "matar" com mais facilidade ou pôr "a própria vida em perigo". Outros tempos se revelaram muito mais sanguinários e desumanos, porque era essa a cultura de vida/morte dominante e generalizada nas sociedades, particularmente na Europa. A referida "banalização da morte" é hoje também o resultado da globalização mediática que, para o bem e para o mal, torna o distante próximo e vulgarizado pelo mimetismo. Um fenómeno recente que, de facto, limita a "compreensão da vida, à existência terrestre", mas, por sinal, ainda não foi devidamente compreendido...

Joaquim Franco
Jornalista
opiniao@sic.pt


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