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O padre da física quântica
2007-04-12 21:27:47

Corta a direito no que diz, critica a instituição eclesiástica, acredita na originalidade profunda de Jesus, não vê que a física que sabe coloque problemas à fé que professa. Um dia, alguém lhe pediu para escrever as homilias que fazia e que entusiasmavam quem o escutava. O pedido deu origem a dois livros - o segundo acaba de sair (A Palavra no Tempo II, ed. Entrelinhas). Nascido em 1930, João Manuel Resina Rodrigues licenciou-se em Engenharia Química no Instituto Superior Técnico em 1953, onde leccionaria durante três décadas. Investigador do Centro de Física da Matéria Condensada, tem várias obras sobre Física e História e Filosofia das Ciências. Ordenado padre em 1959, doutorou-se em Filosofia na Bélgica em 1969. É o responsável da catequese da paróquia do Campo Grande (Lisboa) e pároco da Cruz Quebrada, na periferia da capital. O livro serve de pretexto para uma conversa onde o padre Resina conta episódios do seu percurso sem fugir a qualquer tema.

PÚBLICA - Um padre que ensinou física durante 30 anos sabe se, afinal, Deus não joga aos dados?
P. JOÃO RESINA RODRIGUES - Sou discípulo de Kant. Ele diz que há três questões fundamentais: o que posso saber, o que devo fazer, o que me é lícito esperar. E achou que a primeira depende da ciência. As más catequeses tiveram sempre a mania de misturar essa questão com a apologética. Kant achava que não, eu também.
Uma coisa é tentar compreender o universo. Para isso há a física e a biologia. Se quero saber se houve ou não big bang, se a vida evoluiu ou não, não pergunto à Bíblia, não pergunto à Igreja, que não tem competências nessa matéria.
A segunda questão é o que devo fazer, como se deve viver para se ser homem. Pergunto à história, às culturas, às religiões. A terceira pergunta é o que me é lícito esperar, qual o sentido de fundo disto tudo. Aí, encontro a questão de Deus.
Em suma, questões relativas a como é feito este mundo são da ciência. O sentido da vida diz respeito à religião, à filosofia, às culturas. Nós aprendemos com todas as culturas. Eu, em particular, aprendi e acreditei em Jesus Cristo.
P. - É isso o que significa quando diz, numa das suas homilias: "Cavar batatas, construir pontes ou tratar doenças é do domínio da ciência"?
R. - Lembro-me que escrevi esse texto e dei-o a um dos meus colegas do Técnico, que era ateu. Ele achou muito curiosa a frase e pareceu-me que estava de acordo.
A condição humana tem que fazer essas coisas. Depois, todos os seres humanos têm questões de fundo. São duas coisas diferentes que se completam: há quem trabalha em ciência e tem fé, outros que não têm; sei que há gente que anda no mundo e se preocupa com o sentido da vida, outros não. São duas questões que se unem no homem. Kant dizia que as duas se resumem numa, que é o homem.
P. - Facto é que essas duas questões levaram a conflitos imensos, sobretudo nos últimos séculos.
R. - Por culpa dos dois lados: por culpa da Igreja, que quis ter argumentos fáceis e fez apologéticas baseadas na ciência; que, durante muito tempo, querendo defender a cosmologia de Aristóteles, atacou estupidamente a ciência moderna; e que, querendo manter teologias perfeitamente arcaicas - por exemplo, a Terra no centro do Universo -, condenou a evolução da Física, que estava a descobrir o contrário.
Por culpa também dos homens de ciência e de filosofia que, não acreditando em Deus, acharam que se faziam apóstolos dessa sua posição e que a maneira mais simples era começar por embirrar com as religiões e, nomeadamente, com a Igreja Católica.
P. - Era um conflito entre duas verdades.
R. - Não diria de duas verdades, diria de duas maluqueiras. A verdade, para o ser humano, tem muitas facetas. Quem viu isso pela primeira vez foi Kant. Antes, o grande racionalismo de Descartes e as grandes filosofias englobantes, a começar pelo tomismo, tinham tendência para resolver tudo. Isso não pode ser.
P. - Mas o cristianismo tomou-se, toma-se como verdade absoluta.
R. - Continuo a pensar que o cristianismo é verdade absoluta no seu campo. A ciência pensou, no século XIX, que era verdade absoluta, hoje já não pensa isso. Mas pensa que não há verdade absoluta e que a melhor que há, é ela.
P. - Escreveu que a ciência não é um conjunto de verdades definitivas, porque é baseada em hipóteses. Mas não há ainda uma atitude de arrogância de alguns cientistas?
R. - Isso foi verdade no século XIX. No século XX, toda a gente passou a ser mais modesta, porque se sabe isso. Sabe-se que a ciência se baseia em hipóteses, que as hipóteses são falíveis, só que são muito boas! Enquanto não há melhor, fica com essas.
P. - A Igreja evoluiu da mesma maneira ou ainda tem receios?
R. - Evoluiu de outra maneira. Se a Igreja acredita, como acredito, que Deus é Deus e que Jesus Cristo é Senhor, aí não vai tocar. Mas há coisas que aprendeu: a maneira de pensar e ensinar a religião varia na história; há teologias, baseadas numa verdade que não muda, mas que tentam comunicar essa verdade a homens que mudaram. Usam linguagens diferentes e servem-se de conceitos e estruturas mentais diferentes.
O cristianismo começou por nascer num ambiente judaico, rapidamente se converteu à mentalidade grega - foi uma grande mudança. Na Idade Média, houve uma ligeira variação de paradigma. Há um texto muito interessante de Hans Küng sobre isto, em que ele fala de cinco mudanças de paradigma [O Cristianismo, ed. Círculo de Leitores].
P. - A ciência toca questões que, para muitos crentes, são vistas como atingindo as bases da sua fé: a criação, o big bang, a evolução, as questões éticas...
R. - Eu dirijo a catequese [na paróquia] do Campo Grande [Lisboa] e tenho duas preocupações: que se fale dessas coisas às crianças antes que se fale no liceu; e que se diga que uma coisa é tudo o que vem de Deus, que é a criação, e outra a maneira como o Universo evoluiu e que não tem nada a ver com religião.
Nós dizemos que tudo o que existe depende da vontade de Deus. Como é que isto foi feito, se foi feito mais cedo ou mais tarde, se começou com o big bang ou doutra maneira, isso é da física e não da religião.
Em relação à ética, há uns tipos da biologia que têm a mania que vão explicar a ética a partir do cérebro. Eu não acredito muito nisso. Mas ainda não entrou no domínio público, ainda não é um grande choque.
A psicologia da profundidade e Freud: ele fez descobertas fundamentais. Como era ateu, puxou um bocadinho a brasa à sua sardinha, mas creio que se pode separar o que há de fundamental na psicanálise, a descoberta do inconsciente. Outra coisa é aderir ou não à tese de Freud de que a religião é uma neurose colectiva.
Hoje, os mais hereges são os da biologia, porque estão encantados com as descobertas das últimas décadas, como aconteceu com a física no século XIX, sabia-se tudo. Hoje, os físicos sabem que sabem tão pouco, já não se atrevem a fazer disso bandeira...
P. - Como nasceu essa sua paixão pela física, anterior à sua ordenação de padre?
R. - Desde novo, achei interessante o conhecimento rigoroso. Quando acabei o liceu, hesitei se ia para Física ou Engenharia. Acabei por ir para Engenharia, talvez porque o Técnico tinha fama e a Faculdade de Ciências tinha pouca fama. Durante o Técnico, achei muito importante o pensamento rigoroso. Ao mesmo tempo, cresceram em mim as outras perguntas e achei que as coisas se não opunham, mas que são duas facetas do ser humano e minhas.
É muito importante ser capaz de me interessar pelo rigor das coisas e ser capaz de perceber que a vida tem opções fundas que não se tomam pela matemática ou pela física. Ninguém vai para a guerra, casa ou vai para o convento por causa de um teorema de matemática ou de física.
P. - Não era estranho para alguns alunos saber que era um padre que lhes ensinava física?
R. - Não. Nunca fiz catequese nas aulas.
P. - Mas sabiam que era padre?
R. - Sabiam. Na cadeira de Filosofia das Ciências, tive uma assistente que era muito herege. Os alunos achavam graça: depois de terem feito os exames vinham falar comigo de religião.
P. - Viam em si uma pessoa diferente?
R. - Eu tinha-os habituado a falar com rigor e a não meter biscas. Nem quando ensinei História e Filosofia das Ciências meti catequese. Contava as várias posições.
Há tempos recebi uma carta muito curiosa. Um moço que foi meu aluno em Engenharia Física, tinha muito boas notas e escreveu-me a contar duas coisas: tinha-se doutorado e tinha ido para jesuíta. Outro dia, aconteceu também uma coisa curiosa: apareceu-me no Campo Grande uma moça [a perguntar] se eu a casava. Eu olhei para ela: "A menina foi minha aluna?" "Fui, deu-me 19."
P. - Boas recordações... Num dos seus textos, escreve que, a partir da física do século XVIII e XIX, o determinismo concluiu que a liberdade humana é ilusória. O catolicismo não está ainda preso dessa concepção determinista?
R. - Em física, a questão do determinismo não está encerrada. Entre o século XVII e o final do século XIX, a física do século XX trouxe grandes mudanças. Há as leis que na prática são deterministas - se eu deixar isto, cai mesmo - mas chegou-se à conclusão que fenómenos fundamentais não são perfeitamente determinados. E foi preciso arranjar uma física muito complicada - a mecânica quântica - para descrever os fenómenos elementares.
A liberdade humana resulta da nossa experiência e da experiência da história. Os macacos e os elefantes não variam há muito tempo. Nós, apesar de tudo, temos feito guerras, conquistas, temos descoberto ciência, temos melhorado coisas na agricultura. A história testemunha que os homens têm um certo poder de intervenção. Há quem não siga simplesmente a rota e há sempre homens de ciência ou de religião que, contra ventos e marés, resolveram fazer diferente. O argumento mais forte a favor da liberdade é a história.
P. - E vamos continuar a percorrer esse caminho, apesar de alguns sinais pessimistas?
R. - A história não é previsível - aí, Marx e o marxismo enganaram-se. Mas há determinismos e não há dúvida que a globalização põe muitos problemas. Mesmo assim, o homem é suficientemente teimoso para subverter as estruturas que lhe querem impor. Seja mentalmente, como aconteceu com o integrismo marxista, seja em nome de polícias. O homem, felizmente, é um ser subversivo.
P. - Há a possibilidade de o sistema solar se extinguir um dia. Esse é o fim do mundo de que os crentes falam?
R. - Não. Perguntou-se, a partir do século XVIII, se o sistema solar era estável. Poincaré, que foi um dos grandes génios da física matemática, mostrou que era praticamente impossível provar. Hoje, sabe-se que à escala das centenas de milhares de anos, o sistema solar é estável. Mesmo com a física actual, e sem haver cataclismos, não se pode provar se é estável para além das centenas de milhar de anos.
O universo pode morrer de muitas maneiras: pela chamada morte térmica, porque a energia se vai espalhando e vai tudo arrefecendo; pode acabar com o fenómeno inverso ao big bang...
P. - O big crunch ou o big freeze...
R. - Uma coisa é óbvia: a vida na terra não pode continuar da mesma maneira, mesmo sem ir para essa escala longínqua. Sabe-se que as estrelas como o Sol têm uma evolução curiosa: primeiro são uma bola de hidrogénio que se vai apertando e aquecendo; quando atinge dez milhões de graus, entra em reacção a fusão de hidrogénio e vive 20 mil milhões de anos assim. O Sol está a brilhar há 10 mil milhões de anos e deve ter mais 10 mil milhões de anos. Ao fim desse tempo, arrefece, torna a contrair-se, aquece e passa a uma nova fase que é a da gigante vermelha. Converte o hidrogénio em hélio, dilata-se muito. Quando isso acontecer, aproxima-se muito e queima tudo. O fim da terra é provável que seja nessa altura, por causa do sol.
O que tem isso a ver com a teologia? Nada, directamente. A vida de cada um dos homens tem um fim, a vida do conjunto [da humanidade] também há-de ter fim. Quando a Bíblia fala do fim do mundo, é difícil saber se se trata de uma imagem para o fim da vida de todos nós ou se é mesmo um cataclismo cósmico. Mas isso é relativamente pouco importante.
P. - E esse fim é apenas físico, é o fim de uma memória?...
R. - Acredito na vida eterna, acredito que os processos biológicos têm fim e que, em todo o caso, o homem não é só biologia. Por isso, acredito que o homem vai para Deus. Na expressão tradicional, a sua alma vai para Deus - mas não quero dar a isto mais que a expressão tradicional.
P. - Numa das suas homilias agora publicadas, diz que Jesus não veio explicar a morte nem o sofrimento.
R. - Isso é uma teoria muito minha sobre o mal no mundo. O mal no mundo é uma coisa trágica e é o grande desafio. Se há razão para se perder a fé, é o mal. Por outro lado, há coisas boas no mundo, há amor e verdade. Como diz um livro que ainda há dias estive a ler: porque é que Deus existe se há mal, porque não existe Deus se há bem? A fé cristã é acreditar em Deus, mas é não deixar de reconhecer que o mal é um grande problema. O mundo sem mal não era possível, mas Deus teve a coragem de nos pedir que aceitássemos este mundo.
Aceitar este mundo não é ter uma explicação sobre porque é que há mal, é tentar fazer o melhor que se pode: tentar, como Jesus nos ensinou, lutar contra a pobreza, contra a miséria, contra o ódio, com amor. Deus sabia que era tão duro, que achou que era honesto vir experimentar. Jesus veio experimentar, mas não nos deu as explicações que às vezes queremos. Isto ouvi quando andava no Técnico. Havia a Acção Católica e a JUC, Juventude Universitária Católica e a JUCF, das raparigas, que tinha um assistente que era um jesuíta, o padre Domingos Maurício. Era um historiador de valor e um homem muito inteligente. Uma vez, ele disse uma coisa que me ficou na memória: "Vocês podem ler o evangelho da frente para a trás ou de trás para a frente e nunca encontram Jesus a explicar porque é que há mal."
É uma evidência e Jesus de certa maneira ajudou os discípulos a perceber essa evidência. Há uma coisa que ele disse: "Venham lutar contra o mal, venham comigo." É um erro quando os padres e as pessoas devotas se põem a explicar coisas sobre o mal. O que há a fazer é pensar como Jesus: há muita coisa mal no mundo, vamos tentar melhorar o que pudermos e, se não se melhora à pancada, melhora-se com amor e com rectidão.
P. - Era essa a mentalidade que dizia que um leproso era doente porque os seus pais tinham pecado e que hoje diz que um tsunami é um castigo divino?
R. - Tem a ver com isso. Ainda [há dias] tive que enterrar um homem com 30 anos, de um desastre de automóvel; vieram contra ele e ele morreu. Eu disse: "Vamos pedir ao Senhor que nos mantenha na fé apesar destas coisas, que nos mantenha na graça de não andar a deitar culpas para quem tem ou não culpas e vamos pensar que não foi Deus que mandou estas coisas. Acontecem porque somos maus, porque nos distraímos, por isto, por aquilo."
Hoje digo também: há doenças, o que se tem que fazer é tentar defender-se do contágio, vacinar-se, tratar-se o melhor que pode. Umas vezes resulta, outras não. Quando não resulta, vamos ter coragem e paciência. Foi o que Jesus fez e enfrentou.
P. - O que diz, se aplicado a doenças como a sida, tem consequências na doutrina da Igreja.
R. - É evidente que o bom senso é a pessoa não se expor. Outra coisa é, se foi contagiado, começar a tratar-se o mais cedo possível. Outra é aceitar que, com ou sem culpa, tem sida, tentando enfrentar [a doença] da melhor maneira.
P. - Isso significa, no caso de um católico, desobedecer à proposta oficial de evitar o uso do preservativo?
R. - Parece-me uma estupidez evitar o uso do preservativo.
P. - Num outro texto, diz outra coisa que contraria uma verdade adquirida da teologia cristã: Jesus não veio para morrer. A teologia costuma dizer o contrário...
R. - Isso foi inventado por Santo Anselmo, no século XI - inventado é uma força de expressão. Jesus diz que vai dar a vida pela multidão, São Paulo fala de resgate. A primeira geração cristã teve um grande problema: se Jesus é o Messias, se é o Filho de Deus, se é Deus, como é que isto aconteceu? E andaram ali uns anos aos papéis... Depois, dá a impressão de que leram o livro de Isaías, do justo sofredor, a história de um homem que é muito bom, que não faz mal a ninguém, e que a sua fidelidade é salvação.
Eu diria algo parecido: creio que Jesus não veio para morrer. O "negócio" entre Deus e ele tem uma base em dois ou três textos da Bíblia, depois desenvolvidos por Santo Anselmo no século XI, num célebre livro que se chama "Porquê um Deus homem?" Diz que tinha que ser Deus e homem: Deus para oferecer o resgate e homem para poder receber o resgate. Foi-se atrás disso, mas é uma posição pouco inteligente.
Já na Idade Média se perguntou qual a razão fundamental da encarnação de Cristo. Os dominicanos disseram que era o resgate, os franciscanos disseram que era a encarnação para dignificação da condição humana, que Deus aceita ter mãe neste mundo, e a santificação dos homens. Os dominicanos disseram: em todo o caso, afirmamos no Credo que Jesus morreu pelos nossos pecados. Os franciscanos, liderados por Escoto, disseram: é absurdo que a encarnação, a maternidade divina e a graça estejam condicionadas por um pecado. E perguntava-se, se não tivesse havido pecado original, se Jesus viria ou não a este mundo. Os dominicanos disseram que não, os franciscanos disseram que sim.
Essa posição não adianta nada, não me parece nada inteligente. Cristo veio a este mundo entender-se connosco, veio experimentar isto...
P. - A sua posição é mais franciscana?
R. - De certa maneira. Veio ter connosco, veio dignificar a condição humana, veio experimentar o que nos tinha dado, veio ser fiel e dar exemplo de fidelidade até ao fim: amou-os até ao fim, não voltou atrás. Tanto que, na véspera, pediu ao Pai que, se fosse possível, lhe [retirasse] esse cálice. Se tivesse sido combinado, seria estupidez estar a pedi-lo.
Cristo tomou isto a sério, não brincou. É um grande desafio o texto do evangelho, [quando Jesus está] na cruz: "Pai, porque me abandonaste?" Cristo aceitou experimentar o que é isso de andarmos aos papéis, em certas alturas.
P. - Como avalia que, entre cristãos, se defenda o criacionismo por oposição ao evolucionismo?
R. - A maluqueira é livre e uma das grandes tensões do ser humano - que é uma razão de segurança - é agarrarmo-nos a teses de conservação. Em todos os momentos de crise, crescem os movimentos de direita: na Igreja, nunca os seminaristas foram tão conservadores como de há 20 anos para cá.
Num momento de crise, toda a gente se agarra ao que parece ter segurança. E uma das seguranças é ter um texto que diz tudo. Tem-se dito que a coisa mais parecida com a Igreja Católica foi o marxismo soviético: tinha uma doutrina intangível, que explicava tudo; tinha um magistério e as pessoas sabiam que, se se dedicassem, era para a salvação dos irmãos. Mas também há uma grande loucura. Quando se faz isso nas igrejas católicas e protestantes e no islão, é a mesma loucura.
P. - Diz que admira os místicos, porque eles sugerem que, de Deus, só há sinais. Deus não se encontra à mão de semear?
R. - Não, mas dá alguns sinais - o maior é Jesus Cristo. O outro são as pessoas. Conheci algumas pessoas de um elevado nível de santidade, que me fizeram pensar. Conheci alguns padres, algumas freiras e outras pessoas de grande profundidade, que me ajudaram a ver que a condição humana é difícil, mas que nela é possível viver-se a sério.
Se quiser coisas mais superficiais, há um sítio na ex-Jugoslávia [Medjugorje] onde se diz que Nossa Senhora apareceu. Uma vez houve um grupo de jovens que me desafiou a ir lá com eles. Achei curioso, meti-me com eles em duas carrinhas e fomos. Aqueles moços [os videntes] tinham uma limpidez. Se aqueles com quem eu lido tivessem essa limpidez, não dava o meu tempo como perdido. Até admito que seja Nossa Senhora que os ensine a ser assim.
A frase com que o Camus termina A Peste: "XXXXXXXXXX" - concordo muito com ela. Havia outro homem que morreu há dois meses. Era marceneiro, dizia-me: "Tive uma vida muito dura. Tive filhos, nunca tivemos muito dinheiro e, tudo somado, fui sempre muito feliz, porque a minha mulher era muito boa." Isto num homem de 60 anos é giro...
P. - Admirava muito o padre Honorato Rosa. Quem era essa figura tão esquecida pela Igreja e pela sociedade?
R. - Um miúdo que foi para o seminário aos dez anos. Era um tempo em que o bispo era o cardeal Cerejeira, que tinha uma certa vaidade no seminário e um certo desprezo pela universidade. Conclusão: fez o grande erro de não mandar ninguém estudar. O padre Honorato foi um professor sem curso nenhum. Sentiu-se um bocado mal, mas obedeceu. Foi meu professor de Filosofia. Era um autodidacta, lia furiosamente. Tinha uma posição muito curiosa na Igreja: [dominava] o tomismo, mas dizia que tínhamos que aprender as filosofias da primeira metade do século XX - estávamos nos anos 1950.
Depois, insistiu que o cardeal me mandasse estudar para Lovaina, coisa que não tinha feito com ele. O cardeal mandou-me estudar Filosofia. Antes de ir, andei a passear com o padre Honorato na alameda por baixo das tílias, no seminário [dos Olivais, em Lisboa]. Fez-me uma resenha da filosofia europeia dos últimos 20 anos. Falou do Heidegger, do Gabriel Marcel, deste, daquele. "E depois há o Ricoeur, que escreveu um livro que a crítica achou muito importante, A Filosofia da Vontade, há 10 anos, e depois fechou-se em copas. Uma de duas: ou ele está a preparar alguma coisa muito nova ou é uma esperança perdida."
No dia seguinte, quando chego a Lovaina, vejo um cartaz a anunciar o novo livro de Ricoeur e uma conferência em Bruxelas. Fui à conferência e ele começa assim: "Escrevi A Filosofia da Vontade há 10 anos, quis continuar e não fui capaz. Finalmente percebi que tinha que encontrar um método diferente e enveredei pela fenomenologia."
É curioso que um autodidacta, em Lisboa, tenha percebido isso. Era um homem de uma inteligência luminosa, de uma cultura muito vasta e, ao mesmo tempo, um homem que passava o tempo a confessar velhotas em Moscavide, a visitar uns pobres.
P. - O seu pai e a sua mãe que faziam?
R. - O meu pai era médico militar. Nasceu em Trás-os-Montes, perto de Vila Pouca de Aguiar, de uma família que trabalhava o campo, que tinha alguns meios mas não era latifundiária. Os irmãos não quiseram estudar, ele quis, foi fazer Medicina para Coimbra. Concorreu e ficou como médico militar, foi parar a Mafra. Ali conheceu a minha mãe.
O meu pai era de uma família tradicionalmente cristã, mas em Coimbra ficou numa posição indiferente. Nunca foi hostil. A minha mãe tinha um catolicismo tradicional. O meu pai era muito enérgico, a minha mãe era uma mulher muito suave. Ele era muito sensato: nunca gostou que os filhos entrassem em casa com os pés sujos. Quando eu tinha 15 anos, nevou em Lisboa. Fui brincar para a neve, cheguei a casa todo enlameado. Minha mãe resmungou, ele achou perfeitamente natural. Ele conseguiu que tivesse a impressão que os adultos eram pessoas sensatas, coisa que nem sempre os miúdos têm. Mas mentir não podia. Foi um tipo de formação muito singela e muito austera ao mesmo tempo. Em tudo o que continuo a pensar e a viver isso está presente.
P. - O padre Felicidade Alves foi outra pessoa com quem trabalhou e que admira.
R. - Quando eu estava na adolescência, o padre Felicidade era pároco em Belém. Os meus pais moravam na área e eu, nas férias, ajudava em Belém. Ele teve sempre o bom senso de nunca me pedir muitas coisas, porque achava que a situação era muito complicada. Quando fui padre, passei a ajudá-lo, sem nomeação.
Quando foi daquela guerra [o conflito do padre Felicidade com o cardeal Cerejeira], eu fiz um requerimento para ir para as missões. Nunca tive resposta. As nossas vidas seguiram caminhos diferentes. Ele morava aqui [próximo da Igreja da Cruz Quebrada]. Ele morreu e eu é que presidi ao enterro. Depois é que vim para pároco, aqui.
[Depois do caso do padre Felicidade] é que fui dar aulas. Tinha ficado mais ou menos desempregado. Primeiro pedi várias vezes uma coisa para fazer, porque eu ajudava nos Jerónimos, sem nomeação. Pedi várias vezes para ser pároco ou coadjutor nalgum sítio e isso foi sendo adiado. Até que perguntei se podia ir dar aulas para o [Instituto Superior] Técnico. Foi-me dito que sim. Mais tarde, perguntei várias vezes aos patriarcas se eles queriam que eu estivesse no Técnico e eles disseram que sim.
P. - Episódios desses são feridas que ficam na vida das pessoas? A Igreja continua a cometer erros na forma de lidar com as pessoas?
R. - O cardeal Cerejeira era um homem muito inteligente, mas não sabia mandar. E tinha como modelo o cardeal Mercier, que tinha sido arcebispo de Bruxelas 50 anos antes. Ele ainda continuava com aquele estilo, de supor que podia lidar paternalmente com todos.
Ele não se interessou muito pela política. Ele e Salazar não lidavam tão bem como se diz, só que era contra ele que um padre não fizesse exactamente o que ele queria. Nessa altura, escrevi muitas cartas ao cardeal Cerejeira em que disse isso: "Senhor patriarca, está enganado, está a julgar como religiosa uma causa que é política. As pessoas estão-se nas tintas se reza missa virado para o povo ou ao contrário - era uma das guerras - ou se celebra em português ou em latim. As pessoas querem é deitá-lo abaixo e, se o senhor o condenar, isso vai ser uma grande bronca para todos nós."
P. - Ele respondeu-lhe alguma vez?
R. - Um dia disse-me que nunca respondeu nem a mim nem a outros, mas que eu tinha razão.
P. - Mesmo assim decidiu afastar o padre Felicidade?
R. - Ele fez uma outra coisa curiosa: um dia meteu-se num táxi e foi aos Jerónimos falar com o padre Felicidade. O padre Felicidade tinha muitas qualidades, era um homem muito inteligente. Os pais eram pessoas pouco cultas, ele gostava de falar com pessoas mais cultas e tinha uma grande carência de amizade. E foi um bocado empalmado pelo Partido Comunista. O cardeal Cerejeira não tinha a experiência, que nós temos, de lidar com um mundo assim tão complicado.
P. - Há uma outra pessoa que era muito sua amiga: Maria de Lourdes Pintasilgo.
R. - Era minha colega no Técnico que, naquele tempo, tinha mil alunos, agora serão uns sete mil ou oito mil. Havia três ou quatro pessoas brilhantes, ela era uma delas. Porque é que foi tão pouco acarinhada? Quando foi do enterro, senti cá fora muita gente simples a perguntar porque não se fazia um enterro de Estado.
P. - O que guarda de memória dela?
R. - Uma pessoa muito inteligente, com quem tive uma amizade profunda.
P. - Era uma católica com perspectivas muito coincidentes com algumas das suas: o despojamento da Igreja, a missão junto dos mais pobres, dos que sofrem...
R. - Ela resolveu aderir ao Graal. Com o Graal fez actividades curiosas, em Portalegre, de alfabetização e outras... Esta vida tem coisas complicadas que a gente nem sempre percebe... Já o padre Honorato foi a mesma coisa, houve quem tentasse que a memória dele não se apagasse, mas teve poucos seguidores...
P. - Não é vulgar que as pessoas peçam ao padre que lhes escreva os textos da homilia para voltar a ler. O que falta às homilias do clero português? Sabedoria, meditação da Bíblia? Às vezes, dá a sensação que muitos padres nem sequer preparam o que vão dizer...
R. - Lembro-me de ser miúdo e me zangar com as homilias porque os padres se repetiam muito e às vezes brincavam com palavras. E eu disse com os meus botões que, se fosse padre, gostava de falar mais simples do que isto. Depois tentei isso. Já disse uma vez que, se fosse bispo, mandava gravar todas as homilias uma vez por ano, para saber o que por aí se diz. Ainda há dias me apareceu uma moça que não era baptizada, que tinha lido o meu primeiro volume [d"A Palavra no Tempo] e queria tempo para eu falar com ela. Outra senhora, catedrática de Direito, também me apareceu a dizer que tinha lido o livro e queria conversar.
P. - Há uma palavra repetida nos seus textos: liberdade. Uma palavra que nem sempre é valorizada na Igreja.
R. - No evangelho de São João, capítulo oitavo, diz: "Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará". O texto foi lido na missa ainda [há dias]. A liberdade tem uma história curiosa. S. Tomás de Aquino era um homem muito inteligente mas não tinha muita experiência de vida. Por isso escreveu sobre a liberdade umas coisas certas mas pouco densas, porque ele não tinha experiência de embates na vida.
Os tempos mudaram, veio Descartes, viu a liberdade como simples poder de escolha. Quem falou a sério da liberdade foi o existencialismo, quer os cristãos quer os ateus. Sartre, Gabriel Marcel, Heidegger disseram que a liberdade é o poder de dar sentido à vida, é o poder de pegar na vida e fazer da vida a minha vida. Heiddeger foi mais longe ao dizer que a verdade só surge no contexto da liberdade: eu tenho que deixar ser as coisas e as pessoas para que elas se revelem. A essência da verdade é a liberdade.
Este tema concorda com a ideia da verdade [que] libertará. Quando Jesus disse isso, os judeus não perceberam e a Igreja também nunca entendeu. A Igreja, o que quis sempre, foi ter um bando de meninos bem comportados. O ideal da Igreja, como o do marxismo soviético, era ter um jardim-de-infância, tudo muito feliz, muito bem comportado, todos de bibe, ninguém fazia disparates.
A Igreja não é isso, o evangelho não é isso. Jesus veio a este mundo, viveu, enfrentou, não teve medo de tomar posições contra a ortodoxia, dizer mal da lei e do templo. Não se podia tocar num leproso e ele toca num leproso...
P. - Sentiu essa pressão social e política no tempo do Estado Novo? Chegou a ter agentes da PIDE a ouvir as suas homilias...
R. - Nunca fui chateado por duas razões: dois ministros de Salazar eram amigos do meu pai. Nunca ouvi uma conversa sobre o assunto mas é capaz de ter tido alguma influência. A outra razão é que o que era mau era pertencer ao Partido Comunista. Eu nunca pertenci.
P. - Mas sabia que era vigiado?
R. - Eles chateavam desta maneira: estive três anos na Bélgica, eles abriam todas as minhas cartas. As cartas para os meus pais chegavam, para outras pessoas não chegavam... Comecei a brincar: "Não vão eles apanhar esta carta" - não chegava. Uma vez fiz um recorte de um jornal francês e mandei para quatro pessoas em Lisboa, não chegou nenhuma. Eles sabiam tudo o que eu pensava, liam as minhas cartas, ouviam os telefones. Quando comecei a fazer homilias, na Capela do Rato, tinha uma senhora, a Feliciana, que era uma espécie de sacristã e que dizia: "Hoje tem cá três cães grandes". E eu comecei a gravar. Devem ter percebido que lhes dava muita despesa prender-me...
P. - É daí que nasce a ideia de escrever os resumos dos textos?
R. - Não. Quando fui para [a Capela do Centro Comercial das] Amoreiras, houve um dia que comecei a escrever. E várias pessoas - Inês Cosme, Manuela Silva, Gomes da Silva, Sidónio Paes - teimaram para eu publicar.
P. - Há uma ideia repetida nos textos: as tentações que Jesus enfrenta são as de manipular o sagrado, monopolizar a propaganda, o poder.
R. - São motivações muito importantes na condição humana.
P. - Mais do que a sexualidade, um tema tão presente na Igreja?
R. - É curioso que Jesus nunca tenha dito grandes coisas a esse respeito. São João diz que ele foi a um casamento, não fez pregação nenhuma, os padres têm a mania de pregar. Ele não disse nada. À mulher adúltera também disse uma coisa muito discreta. Fora isso, não me lembro de grandes pregações sobre a matéria.
P. - A Igreja, muitas vezes, não faz aquilo que Jesus fez?
R. - A Igreja tem uma obsessão com a sexualidade, que não é de Jesus. De onde é? São componentes gregas, os judeus não eram muito complicados nessa questão. A relação de Jesus com o poder foi sempre distante e a Igreja muitas vezes andou a navegar mal. Jesus atreveu-se a fazer muitas críticas, não teve a ideia do sagrado que muitas vezes nós incutimos.
Voltando ao tema da liberdade: Jesus foi por excelência um homem livre. Se há coisa importante na condição humana e na condição religiosa, é a liberdade.
P. - Por isso cita a crítica de Doistoievski, no Grande Inquisidor, à falta de liberdade da Igreja e à incoerência.
R. - É, é verdade.
P. - Há uma preocupação sua: as coisas que a Igreja faz têm que ser esteticamente bem feitas, têm que ser bonitas e de qualidade. Esse é um dos dramas da liturgia católica?
R. - De liturgia tenho muito pouca experiência e nunca me interessou muito, mas não gosto de coisas farfalhudas. A catequese preocupa-me muito. A catequese tem uma história muito má em Portugal. Teimei muito com os senhores bispos que os catecismos eram horríveis e eles até candidamente diziam que sim, mas que era preciso tempo para os melhorar. Finalmente estão a fazer catecismos e uma outra equipa fez uns catecismos que não foram aceites como oficiais, mas que foi permitido que fossem publicados, o que é curioso [Mestre Onde Moras, ed. Paulinas].
P. - Há aparentes paradoxos: no seu último documento, o Papa quer mais qualidade na liturgia, na arquitectura, mas depois pede o latim e o gregoriano, que as pessoas já não conhecem. É possível ter qualidade sem regressar a formas litúrgicas e estéticas do passado?
R. - É pena que a Igreja não tenha grandes criadores. Quando entusiasmou as pessoas, apareceram grandes criadores. A aposta era nós termos uma Igreja tão viva que aparecessem criadores.
P. - Com música e linguagem contemporâneas?
R. - Sim. Não voto na conservação. Para não ir mais longe: isto de usar "vós" na Igreja, quando já ninguém usa essa linguagem... Quando é no evangelho, vá que não vá - eu mudo. Mas parece bizarro.
P. - Diz que as mensagens de Deus não chegam pelo correio e que essas descobertas proporcionam ilusões e extravagâncias. O catolicismo português é dominado por Fátima. Esse tipo de fenómenos é ilusão e extravagância?
R. - Com Fátima, tenho duas experiências: tinham-me dito que é diferente quando as pessoas se confessam em Fátima. Uma ou outra vez confessei gente em Fátima e dá a impressão que as pessoas são muito mais simples, muito mais cheias do desejo de Deus. A outra é que, quando passa a ser uma grande festa, não me diz muito.
Gosto de coisas austeras, simples. Um dos males de certas igrejas portuguesas - nomeadamente desta paróquia - é não se ter transmitido uma experiência muito forte de oração pessoal. Em Fátima, insistiu-se nisso e é um bem. Em Portugal, há muitas paróquias onde se aceita a festa e a liturgia, mas onde falta a oração pessoal.
P. - Falta essa dimensão mais interior...
R. - Continuo a pensar que a vida e a fé têm que ser uma grande aposta na liberdade, na fidelidade, no risco. O cristão sabe que por querer ir para Deus não tem nenhuma apólice, que está sujeito aos mesmos riscos das outras pessoas e mais alguns.
R. - E tem que ser também uma aposta na alegria? Diz que a Igreja parece propor uma religião apostada em matar a alegria.
R. - Tenho dito que um dos primeiros mandamentos é ser feliz.
P. - A propósito do episódio da mulher adúltera, diz que o Direito evoluiu e que hoje já ninguém é preso como Camilo Castelo Branco, por adultério, e que a Igreja deve continuar a dizer que é pecado, mas aceitar as evoluções do Direito e da sociedade.
R. - Sim. Quando foi do aborto, disse praticamente a mesma coisa. A Igreja tem que dizer sempre que o aborto que é mal, mas não estou nada interessado em saber se há leis para condenar. Não quero saber disso.
P. - Ou seja, a discussão ultrapassava a posição de fundo da Igreja? Era legítimo haver católicos a defender que aquela solução era possível?
R. - Os católicos têm que dar testemunho, pela palavra e pelo exemplo, contra o aborto, contra o divórcio. Mas não interessarem-se se há leis ou prisões, não quero saber disso. E Jesus também não.
P. - Seria insensato, como diz, os cristãos não estimarem os caminhos da razão. Mas durante muito tempo, os cristãos quase rejeitaram os caminhos da razão...
R. - Não sei se é verdade. Seja como for, é preciso não deitar fora a razão, é preciso saber que a razão não resolve tudo. Um homem, para acreditar, deve ter razões, mas não é necessariamente um teorema matemático.
P. - O fundamento da fé, para si, é Jesus?
R. - É. Na Igreja, há uma tendência a extrapolar. Deus revela-se, não dita: Moisés deve ter ouvido dizer que Deus não gostava de adultério. Como ele era um ditador, disse "matam-se os adúlteros". A Bíblia conta também que Moisés mandou matar todos os prisioneiros. E disse que era vontade de Deus. Não acredito, era vontade dele. E como era ditador, punha tudo às costas de Deus. Muitas vezes, na Igreja, também se fez isto. É muito cómodo começar a dizer em nome de Deus o que nos parece.
P. - Quem é Deus e quem é Jesus para si?
R. - O próprio Jesus Cristo nunca explicou muito. Lembro-me de uma homilia do padre Felicidade nos Jerónimos: "Há duas maneiras de ensinar religião. Uma é a que Deus usa quando quer reciclar os anjos e explica que é uma essência em três pessoas, que Jesus tem duas naturezas e uma só pessoa. Outra é a que Jesus usou quando falou às pessoas."
Para mim, Deus é senhor do céu e da terra, a razão última de tudo. Se não fosse a vontade dele que houvesse universo, não havia nada. É aquele que fez o universo no qual apareceram os homens, a quem trata com especial carinho. E que gostaria que os filhos fossem bons. Quando não eram bons, tinha a solução de lhes bater ou de continuar a chamar por eles. E Jesus vota nesta segunda, quando diz que não manda arrancar o joio.
Os judeus tinham um monoteísmo feroz. Dizer que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo - São Paulo não se atreveu, São Pedro não se atreveu e o próprio Jesus sabia que dizer isso era criar um obstáculo. O que ele fez foi lançar um imenso desafio de dizer que tinha sido o Pai que o mandara, que ele faz a vontade do Pai, que tudo o que o Pai faz ele o faz e, finalmente, disse "eu e o Pai somos um".
P. - Então, Jesus é Deus?
R. - A tradição cristã, a partir do século IV, foi dizendo que o Pai é Deus e Jesus é Deus. Nota à margem: quando São Paulo fala de Deus, é sempre Deus Pai; quando fala de Jesus, chama-lhe Senhor. Mais adiante, disseram os concílios que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Eu acredito. Mas, para mim, Deus continua a ser o Senhor supremo de todas as coisas, que se manifestou em Jesus Cristo. A quase totalidade da mística cristã disse sempre que a Deus só se vai por Jesus Cristo. Eu sou muito dessa escola. Reconheço que há um mistério de Deus e que apesar de tudo Deus se manifestou em Jesus Cristo.
Tento ser fiel a Jesus, tento corresponder, sei que tenho muitos erros. Em relação à Igreja, Jesus quis que os discípulos andassem unidos, que rezassem juntos e celebrassem juntos a eucaristia. Não tenho interesse nenhum em acabar com a Igreja. Por outro lado, patetas somos todos e temos feito broncas ao longo dos tempos e muitas vezes ensinamos e vivemos coisas que são frontalmente contrárias ao evangelho - por exemplo, a Inquisição. Qual é a minha solução? Ter paciência. Escrevi uma vez que, se isto fosse uma fábrica e eu engenheiro, eu saía. Mas eu não considero isto uma fábrica da qual sou engenheiro.

António Marujo

Fonte Público

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