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“A fé transforma-se em cultura” - Catequese do 5º Domingo da Quaresma
2007-03-27 04:49:00

1. O cristão, para tornar sólidas as razões do seu acreditar, tem de equacionar as relações da sua vida de crente com a cultura em que está inserido, o que traz à vida da fé uma inevitável densidade cultural. O ambiente cultural pode facilitar a vida da fé, quando há uma convergência global entre os valores expressos na cultura e a perspectiva cristã da existência. Mas pode também trazer dificuldades acrescidas, quando para ser fiel ao Evangelho o cristão tem de remar contra a corrente das perspectivas culturais envolventes. A Igreja, ao longo de dois mil anos de história, tem uma vasta experiência deste remar contra a corrente. A conversão a Jesus Cristo pode acontecer em todas as culturas. Os cristãos, para serem fiéis ao Evangelho, tiveram de reagir contra realidades culturalmente aceites como, por exemplo, o politeísmo, a escravatura, o desrespeito pela vida, a prostituição sagrada, a poligamia, etc. E ao fazê-lo, a prática cristã influiu nas culturas, chegando mesmo, em alguns contextos, à sua transformação radical, originando culturas de matriz cristã. O cristianismo, porque é uma experiência de vida e de liberdade, influi na cultura. João Paulo II afirmou “que uma fé que não se transforma em cultura, é uma fé não plenamente acolhida, não inteiramente pensada e não vivida numa fidelidade total”[1].

2. Mas o que é a cultura? O seu processo dinâmico está já anunciado na primeira narrativa da criação do homem, no Livro do Génesis: “Deus criou o homem à Sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou. Deus abençoou-os e disse-lhes: sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gen. 1,27-28). O homem é criado com a possibilidade e a responsabilidade de ser protagonista da sua história e do seu destino. A cultura é um quadro harmónico desta acção do homem, construindo a sua humanidade, encontrando-se, simultaneamente, com o sentido da sua existência. O Concílio Vaticano II definiu, assim, a cultura: “Em sentido lato, a palavra cultura designa tudo aquilo através do qual o homem aperfeiçoa e desenvolve as múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por submeter o Universo pelo conhecimento e pelo trabalho; humaniza a vida social, tanto familiar como o conjunto da vida civil, graças ao progresso dos costumes e das instituições; traduz, comunica e conserva, nas suas obras, ao longo dos tempos, as grandes experiências espirituais e as grandes aspirações do homem, para que possam estar ao serviço de um grande número e mesmo de todo o género humano”[2].

A cultura está, assim, ligada à actividade humana, na busca do sentido da vida, na transformação do mundo, na construção da comunidade humana. O homem, na sua liberdade e no exercício da sua criatividade, está no centro da cultura. Há três dinamismos fundamentais através dos quais o homem constrói o quadro cultural em que vive: pensando, buscando pela sua inteligência, a compreensão de si mesmo e de todas as coisas; deixando-se atrair pela beleza, que procura imprimir naquilo que faz; agindo sobre o Universo, criando, com a sua acção, um ambiente humano. Em todo este processo o homem é atraído pela verdade, buscando a compreensão de si mesmo e do sentido da sua existência, que ele encontra também na beleza e no sentido da sua acção, construindo civilização. O pensamento filosófico, a criação artística e a determinação na acção transformadora, que se encontram em síntese superior na experiência religiosa, enquanto reconhecimento de Deus, levam o homem à sabedoria, um quadro de compreensão da vida humana, onde se encontram as respostas às questões fundamentais que sempre se puseram ao espírito humano. O Santo Padre João Paulo II define, assim, estas diversas sabedorias: “Basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontram-se nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tze, como na pregação de Tirtankara e de Buda; e assomam ainda quer nos poemas de Homero e nas tragédias de Eurípides e Sófocles, quer nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. São questões que têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem: da resposta a tais perguntas depende efectivamente a orientação que se imprime à existência”[3].

A cultura, como quadro inspirador do sentido da vida, sublinha a dimensão comunitária da existência humana e da busca da verdade. Só uma comunidade, ao longo da sua história, vai burilando uma sabedoria. Como afirma o Concílio Vaticano II, “assim, a partir de usos herdados, forma-se um património próprio a cada comunidade humana. De igual modo se constitui um ambiente determinado e histórico em que todos os homens se inserem, sejam quais forem a sua nação ou século e onde encontram os valores que lhes permitirão promover a civilização”[4].



Fé cristã e cultura

3. A fé cristã é marcada pelo realismo da encarnação. Em Nosso Senhor Jesus Cristo toda a nossa relação com Deus se humanizou, penetrando no mais fundo da nossa realidade humana. A solidez humana da fé passa pelo seu enraizamento na cultura. O crente é chamado a assumir a sua fé como expressão cultural. Não pode haver ruptura entre a fé que se professa e a cultura que inspira os valores éticos da existência. E quando houver conflito entre os valores que a fé inspira e a cultura ambiente, na vida do cristão devem permanecer as perspectivas da fé no exercício e orientação da liberdade.

A fé transforma-se em cultura através daqueles dinamismos que já referi: o pensamento, a contemplação da beleza, a acção motivada pelos mandamentos do Senhor. O crente deve habituar-se a pensar a fé, ao mesmo tempo que pensa a sua existência. A cultura cristã é suporte importante da própria fé. Todos os conteúdos da fé podem ser objecto do nosso pensamento: a relação com Deus, o sentido da fraternidade construído sobre o amor dos irmãos, o ideal da verdade, da justiça e da paz, a fidelidade como exigência nobre da vida vivida em relação, a esperança na vida eterna. O mistério da Cruz de Cristo abre-nos para a compreensão do sofrimento e da sua dimensão redentora. A morte e a vida, a alegria e a dor, abraçam-se na busca do sentido da vida cuja fonte é a “sabedoria da Cruz”.

Deus e o Seu Filho Jesus Cristo atraem a nossa inteligência enquanto suprema verdade; mas cativam o nosso coração como suma beleza. Exprimir a fé como beleza foi, ao longo de dois mil anos, o mais sólido enraizamento cultural da fé. Épocas houve em que se procurou, de forma sistemática, a harmonia entre a inteligência e a beleza. O património cultural do cristianismo não é constituído apenas pelo pensamento cristão; é-o também pelo vasto património artístico em que os crentes exprimiram a fé através da beleza. A beleza deveria fazer sempre parte da cultura cristã. Uma racionalidade sem abertura à beleza é truncada e não exprime a totalidade do mistério do homem e da sua busca da plenitude. Tempos houve em que a catequese era feita através da arte; oxalá, na catequese actual, a beleza fosse, pelo menos, uma linguagem sempre presente. O cultivo da beleza caiu num naturalismo horizontal, perdendo a sua capacidade de ser raio de luz a penetrar no mistério. E a beleza sem transcendência é menos bela.

Finalmente, a fé torna-se cultura, pela acção dos cristãos, quando as suas atitudes são inspiradas nos preceitos evangélicos. Cumprir os mandamentos é a afirmação convincente da verdade que se acredita. O contrário soa a falso. Pela pena do Apóstolo João, esse é já o critério de autenticidade da Igreja primitiva: “É nisso que sabemos que O conhecemos: se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz, eu conheço-O e não guarda os seus mandamentos, é um mentiroso e a verdade não está n’Ele” (1Jo. 2,3-4).

Actualmente a fragilidade da fé de muitos cristãos exprime-se no divórcio entre aquilo que dizem acreditar e a maneira como vivem. Confessam a fé em Cristo e vivem segundo o espírito do mundo. O que inspira os seus comportamentos é a cultura profana e não a Palavra de Deus. E, no entanto, só a coerência corajosa dos comportamentos influencia e marca presença na cultura vigente. “Não é aquele que diz Senhor, Senhor, que entra no Reino de Deus, mas aquele que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática” (Mt. 7,21). A perspectiva de uma cultura cristã exprime-se na coerência das atitudes: no louvor de Deus, no amor dos irmãos e no respeito pela vida, na honradez e no amor à verdade, na justiça e na busca da paz. É por isso que os santos são clareiras de luz na construção de uma cultura cristã.



As mutações culturais

4. As culturas são realidades vivas, podem alterar-se, ao sabor dos comportamentos e das escolhas das pessoas e das comunidades, ao longo do tempo. Porque está mais ligada à vida das comunidades do que à dos indivíduos, as culturas não se alteram repentinamente, mas podem ser sujeitas a processos longos de transformação. E do mesmo modo que o cristianismo acabou por influir decisivamente em culturas assentes noutras sabedorias, originando culturas de matriz cristã, também estas se podem alterar em sentido contrário, pela agressividade dos elementos que nelas influem, e pela falta de coerência dos cristãos na vivência dos valores evangélicos. Esta é já, de certo modo, a situação da chamada cultura europeia, outrora tão marcada pela visão cristã do homem e da vida. A coerência cristã é, hoje, cada vez mais vivida num choque de perspectivas culturais. E num quadro desses, de pouco vale lamentarmo-nos com as manifestações casuais dessa alteração. Ou agimos sobre a cultura, afirmando pela vida a beleza e a grandeza da sabedoria cristã, ou será ineficaz a nossa luta.

Um filósofo contemporâneo escreveu recentemente: “A consciência moderna desviou-se, decididamente, da fé. A fé foi preservada, sem dúvida, em algumas camadas da população. Mas arrisca-se a viver, digamos, num vazio cultural, sem verdadeiro contacto com a consciência dominante do seu tempo, o que representa uma situação perigosa para a fé”[5].

E a Conferência Episcopal Portuguesa na Nota Pastoral publicada após o Referendo sobre a despenalização do aborto escreveu: “O resultado favorável ao “sim” é sinal de uma acentuada mutação cultural no Povo Português, que temos de enfrentar com realismo, pois indica o contexto em que a Igreja é chamada a exercer a sua missão. (…) A nossa missão pastoral, por todos os meios ao nosso alcance, tem de visar este fenómeno da mutação cultural”.

E o caminho passa pela coerência e ousadia dos cristãos, para pensar a fé no contexto do pensamento contemporâneo e agir corajosamente de acordo com a Palavra do Senhor. Num lago de água salobra não basta querer salvar cada peixe, é preciso mudar a água e isso só acontece agindo culturalmente sobre a cultura. Cada cristão é, hoje, chamado a ser, pela clareza do pensamento e a generosidade da sua vida, agente de mutação cultural.



† JOSÉ, Cardeal-Patriarca



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[1] Discurso aos Bispos da América Latina

[2] Gaudium et Spes, nº 53

[3] JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, n.º 1

[4] Gaudium et Spes, nº 53

[5] B. POTTIER, S.J., « L’agnosticisme, choix évident pour l’homme contemporain », in Nouvelle Revue Théologique, 2007, t. 1, p. 7


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