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«Espaços de liberdade para a transformação do mundo» - Uma reflexão da CNJP na Quaresma de 2007
2007-02-22 21:45:58

A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho que o mesmo é dizer da missão da Igreja em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações de opressão (Sínodo dos Bispos, 1971)

1. Porquê uma reflexão sobre o mundo e a nossa sociedade?

À semelhança do que fizemos no ano anterior, desejamos aproveitar a Quaresma de 2007 - tempo de purificação do olhar e do coração - para parar e reflectir sobre a nossa sociedade e o mundo em que vivemos e aí discernir os sinais dos tempos.

Queremos escutar o clamor dos mais pobres e das vítimas, em geral, de uma civilização que, não obstante as suas extraordinárias conquistas materiais, vem deixando marcas de grande ambivalência neste tempo em que vivemos.

A este propósito, pensamos que é importante discernir os preconceitos e as “falsas verdades” que nos impedem de identificar caminhos alternativos, para fazer frente ao “pensamento único”, que se apresenta como inelutável e impõe as suas lógicas, tanto à vida colectiva como aos nossos comportamentos individuais e familiares.

De modo particular, preocupa-nos o pessimismo reinante no nosso país que, por ser tão generalizado, bem merece ser considerado como uma grave doença social do nosso século. Embora com causas já longínquas, o pessimismo parece, agora, ter encontrado um terreno propício à sua propagação, fomentando o risco de que os interesses egoístas e de curto prazo se sobreponham ao empenhamento pessoal na construção de um futuro colectivo de desenvolvimento humano sustentável e que a todos beneficie.

Sabemos que os cristãos e suas comunidades não vivem fora deste mundo, antes partilham as suas angústias e esperanças. A fé que nos anima não nos pode deixar na indiferença, nem, muito menos, consente que nos resignemos a aceitar como boas as perspectivas pessimistas ou as pseudo-inevitabilidades das circunstâncias em que vivemos.

Em coerência com a fé em Jesus Cristo, sentimos que é imperioso abrir portas à esperança de um tempo outro, em que o conhecimento e o progresso material sejam efectivamente postos ao serviço da pessoa humana e de toda a Humanidade. Para tanto, há que romper com as amarras que bloqueiam a construção de comunidades justas e fraternas, nas famílias, nas empresas, na cidade e entre todos os Povos.

A CNJP, ao propor este texto de reflexão, aponta algumas pistas que, acredita, poderão contribuir para desfazer as cadeias dos preconceitos e identificar espaços de liberdade individual e colectiva para opções mais consentâneas com uma vida melhor, uma vida que tenha no centro a pessoa humana, em todas as suas vertentes e em todas as circunstâncias, e, bem assim, suscite o fortalecimento de comunidades verdadeiras e sem exclusão.

A CNJP oferece esta sua reflexão às mulheres e homens cristãos e suas comunidades e organizações como também à sociedade civil, desejando que tal reflexão suscite tanto o debate de ideias como o surgimento de novas expressões de criatividade e empenhamento cívico.

2. A ambivalência da condição humana e a necessidade de criar espaços de liberdade para agir.

No tempo de Quaresma, os cristãos preparam a grande celebração do fundamento da sua fé: o amor de Deus, manifestado no seu Filho, Jesus de Nazaré, que assumiu a condição humana, sofreu e morreu “por todos”, e ressuscitou, marcando assim a vitória total e definitiva do amor e da vida sobre o pecado e a morte. Contudo, os cristãos sabem também que este amor se manifesta no decurso de um processo histórico e psicológico em que lutam e se alternam violências e liberdade, peso do pecado e sopro do Espírito. (Paulo VI (1967) Octogesima Adveniens, nº 37)

Começando por lançar um olhar sobre o nosso tempo, verificamos que também ele reflecte a ambivalência da condição humana.

Por um lado, à escala mundial, sobressaem as situações de extrema gravidade, que se traduzem, designadamente, em sofrimento inaudito e mortes inumeráveis e prematuras, por efeito da pobreza, de guerras, do terrorismo e das chamadas “catástrofes naturais”, fenómenos que se prolongam sem sinal visível de conclusão ou de sensível atenuação, quando a sua solução implicaria contributos quase insignificantes para as possibilidades das pessoas e dos países ricos. Por outro lado, são cada vez mais generalizadas quer a rejeição, por parte da consciência colectiva, de tais situações, entendidas como humana e eticamente inaceitáveis, quer, felizmente, a multiplicação de esforços na busca de soluções rápidas e duradouras.

No âmbito nacional, é igualmente visível a mesma ambivalência. Por exemplo, no que se refere às desigualdades sociais e à exclusão social. Enquanto vão aumentando no nosso país as fortunas milionárias de alguns continuam por resolver carências básicas de muitos, vai crescendo a consciência colectiva de que tal situação se não compadece com uma cidadania plena e importa encontrar soluções de maior justiça social e equidade na partilha dos custos e dos proveitos do progresso económico alcançado.

Num caso como no outro, deve acrescentar-se que o clima de pessimismo, ou mesmo de derrotismo, que parece apoderar-se de extensos sectores da sociedade, não propicia o surgimento de caminhos de solução.

Contrariando esta tendência, há que afirmar com clareza e determinação que, para além dos constrangimentos dificilmente ultrapassáveis, pelo menos em tempo aceitável, existe um amplo espaço de liberdade e, portanto, uma vasta gama de opções possíveis, em que os homens e as mulheres do nosso tempo podem exercitar a sua missão de construtores de justiça e de paz, lutando por um mundo mais humano e mais solidário.

A identificação desse espaço de liberdade é uma exigência para quem deseje exercer a cidadania, e um imperativo para os cristãos, cuja missão consiste, além do mais, em impregnar o interior de cada um, bem como a sociedade e o mundo, de «sinais de ressurreição». Poderá estar aqui um dos aspectos em que somos chamados à conversão, em todo o tempo, mas sobretudo no tempo de Quaresma.

Quando olhamos para a nossa sociedade - e o mesmo acontece quando olhamos para o mundo - , damo-nos conta de que nem todos se preocupam ou se desanimam pelas mesmas razões. Para uns, é uma questão de sobrevivência ou de falta de meios indispensáveis à vida; para outros, é a fome insaciável de ter ou de parecer que os deixa inevitavelmente insatisfeitos; para outros, é o medo de perder o poder político, económico ou social ou de ver ameaçadas as suas situações de privilégio sem sentido ou de ganhadores sistemáticos de um sistema intrinsecamente injusto; para outros, ainda, é a sensação de impotência perante a enormidade da tarefa.

Vemos, pois, que na origem da insatisfação existem factores distintos. Alguns são eticamente justificáveis, mas outros não.

Uma tal distinção é crucial. Será, pois, certamente, um exercício fecundo cada um verificar em qual daqueles casos situa a sua respectiva situação e identificar os correspondentes factores do seu eventual desânimo, contrapondo-lhes oportunidades de lhes fazer face.

3. Aperfeiçoar a democracia. Cuidar da participação.

Grande parte das questões que se colocam à sociedade portuguesa tem a ver com o funcionamento da democracia. Uma vez conquistadas as liberdades fundamentais e consolidado o edifício institucional democrático, somos hoje capazes de valorizar o que temos, bem como sabemos identificar as imperfeições que marcam o sistema. Estamos, pois, em condições de promover os aperfeiçoamentos que se impõem.

Numa primeira análise, a sociedade portuguesa parece feita de três “corpos” distintos e aparentemente estanques. Um é constituído pela vida económica, a qual se desenvolve com teorias e leis próprias, especialistas próprios, mecanismos próprios e objectivos próprios, como se fosse uma realidade independente e que se auto-justifica, sem deveres para com o que não pertença ao seu próprio «mundo». Exemplo ilustrativo é o que se refere à competitividade tomada esta como objectivo supremo.

Um segundo “corpo” é a esfera da governação (em sentido lato), a qual se desenvolve no terreno da política. Também, neste domínio, a maior parte dos objectivos são instrumentais (ganhar poder ou popularidade) e a sua justificação define-se dentro das muralhas de um certo horizonte político. Pertencem a este compartimento com vida própria, os eleitos pelo povo, ou os que, de alguma forma, têm responsabilidades de governação a diferentes níveis. Alguns revelam maior preocupação com a sua manutenção no poder do que com o bem comum pelo qual são responsáveis. Fechados, tantas vezes, numa lógica de gestão de pequenos interesses partidários ou locais, ficam indiferentes ou incapazes de corresponder à missão que lhes foi confiada. Em matéria de incompatibilidades, alguns mostram-se mais preocupados com a legalidade das acumulações do que com a promiscuidade entre a vida política e a vida económica, a redução do tempo dedicado à função e o descrédito das instituições a que pertencem e, em ultima instância, da própria democracia.

O terceiro compartimento é o da sociedade propriamente dita. Pouco ouvida e menos ainda respeitada nos seus problemas e aspirações, aquela sente que a economia e a política têm objectivos próprios que não lhe dizem respeito, sendo conduzida a desinteressar-se desses mundos, convencida de que a política é para os políticos e a economia para os “entendidos” que enchem os ecrãs da televisão discutindo questões que só eles entendem. Dos assuntos europeus tem a experiência da contradição: ouve dizer que pertencemos à União, mas pouco ou nada sabe acerca dela.

Sabemos, porém, e temos o dever de o reafirmar, que a sociedade e as pessoas que a constituem são o verdadeiro objectivo da vida política e da vida económica.

A compartimentação da vida social naquelas três realidades está, certamente, na origem do tão falado «défice democrático», que cabe sobretudo aos que detêm alguma forma de poder democrático a responsabilidade de preencher. Porém, a resolução desse défice está também nas mãos dos cidadãos e cidadãs do país. Saibamos apreciar o bem que é a democracia, e empenhemo-nos em aperfeiçoá-la, sobretudo nas suas insuficiências ou deficiências mais gritantes, participando activamente na vida política, como é direito e dever de todo o cidadão e cidadã. As insuficiências que apontamos ao funcionamento da democracia devem-se, em parte, à omissão de largos sectores da sociedade no exercício da respectiva cidadania política.

4. Identificar espaços de liberdade e de intervenção.

Merece a pena aprofundarmos as questões sumariamente apontadas, sobretudo para podermos identificar os espaços de intervenção que, apesar de tudo, existem no contexto actual.

Antes do mais, saliente-se o princípio fundamental de que a economia e a politica existem para realizar o bem comum das sociedades e do mundo. Sendo de fácil aceitação na linha dos princípios, importa reconhecer que nem sempre este princípio fundamental é respeitado na prática. A própria estanquicidade dos três compartimentos acima referidos revela que cada um deles funciona independentemente dos restantes, pelo que a observância desse princípio fica irremediavelmente comprometida. Importa, portanto, reorientar a vida económica e politica, no sentido de recolocar a sociedade, e designadamente o bem comum, como sua verdadeira finalidade. E essa recolocação só será conseguida se e quando a vida política e a vida económica sofrerem uma revisão séria da sua razão de ser.

Pelo que respeita à vida económica, é sabido que o forte predomínio do liberalismo económico e filosófico esbateu a relevância da noção do «bem comum» enquanto seu objectivo fundamental. Por um lado, o individualismo subjacente não se coaduna com preocupações relacionadas com a sociedade, entendida esta como entidade distinta da mera soma dos indivíduos que a compõem. Por outro, a ideologia do mercado rejeita qualquer intervenção pública, deixando o resultado da actividade económica na dependência do que resultar da livre concorrência. Sobretudo qualquer regulação a montante, que condicione a repartição primária dos rendimentos (por exemplo, políticas públicas de fixação de salários mínimos ou regras de formação de tabelas salariais), é vista com desconfiança e desagrado pelos detentores do poder económico e pelos defensores do liberalismo. Analogamente, as medidas redistributivas, mesmo quando não prejudiquem a economia, são, por vezes, encaradas como atentatórias dos direitos individuais.

Em tal contexto, é natural que o progresso económico se confunda com o mero crescimento económico, independentemente do modo como esse crescimento se distribui pela população e se traduz em melhores condições de vida. Daí que, de modo geral, as desigualdades de rendimento e riqueza persistam de forma gritante e até tendam a crescer. A esta luz, é certamente, muito redutor avaliar o desempenho económico por indicadores de mero crescimento económico e é tempo de os substituir por outros que traduzam objectivos de erradicação da pobreza e desenvolvimento humano.

Quer isto dizer que, sendo urgente reabilitar a noção do bem comum, não menos urgente é reconhecer a necessidade de uma autoridade que o defenda e promova. Isto é válido quer ao nível nacional quanto à escala mundial.

Os aspectos distributivos, se bem que extremamente importantes em si mesmos, adquirem particular gravidade quando a desigualdade implica pobreza, miséria e fome, como acontece no nosso mundo à escala dos milhões de pessoas e entre nós à escala dos muitos milhares de concidadãos.

Compreende-se que em certos tempos de crise se justifiquem, e até se reclamem, medidas de contenção em diversos domínios. Tais medidas são normalmente justificadas em nome de maiores benefícios futuros. O que a experiência mostra é, no entanto, que os que mais beneficiam são precisamente os que menos sofreram durante a crise. É previsível que assim seja, sempre que as medidas de combate à crise não modificam as características estruturais do sistema.

É, por isso, tempo de reconhecer que as medidas de contenção não podem ser indiscriminadas, nem deixar de poupar, quanto possível, os estratos económicos mais baixos, sem prejuízo do que haja a fazer no domínio do combate à pobreza e à exclusão social. É, uma vez mais, a experiência que mostra que o princípio de «crescer agora para distribuir depois» não merece crédito. Aliás, como acima se disse, não deve esperar-se que se resolva apenas por via redistributiva a desigualdade inerente à repartição primária do rendimento entregue à mera lógica do mercado, nomeadamente quando o progresso tecnológico permite engrossar o número de desempregados.

5. Responsabilizar as empresas pela sua dimensão social e cívica

Esta urgente mudança de perspectiva não pode ficar na exclusiva dependência dos governos, uma vez que carece de uma adesão construtiva por parte de todos os agentes económicos e socais. Colocá-la apenas como tarefa dos governos implica abandonar a dimensão social e cívica das empresas e não reconhecer a necessidade de alargar as respectivas responsabilidades.

Não pode falar-se da razão de ser da economia sem se aludir à razão de ser das empresas, as quais são o principal agente do progresso económico e técnico.

Phillipe de Woot1 , professor emeritus da Universidade Católica de Lovaina, sintetiza nos seguintes termos algumas das questões basilares que se colocam neste domínio e merecem uma séria ponderação por parte dos empresários e gestores, designadamente dos cristãos:

De hoje em diante, a empresa tem de questionar o significado das suas acções, a sua razão de ser, a sua finalidade. Deveria saber se é possível agir de um modo responsável num sistema que carece de responsabilidade, se é ainda possível ser-se legítimo ao aderir a um modelo que é crescentemente ambíguo e contestado, e se é possível manter uma ética merecedora do nome enquanto se joga um jogo económico que não tem nenhuma.2

E interrogando-se sobre se os porta-vozes da chamada “responsabilidade social da empresa” têm a noção das mudanças que o conceito exige, acrescenta:

As mudanças requeridas exigem uma reflexão profunda e vão muito além de uma nova roupagem para um sistema velho. Se o movimento pela responsabilidade social apenas cola novas etiquetas sobre práticas antigas, não será levado a sério; se puser vinho velho em vasilhas novas, ficará reduzido a uma operação de relações públicas. O movimento só será credível se renovar o conceito de empresa e reavaliar o seu papel na construção do nosso futuro comum3 .

De facto, o risco de neutralizar o potencial de mudança contido nalguns conceitos não se limita ao problema da responsabilidade social da empresa. Diversas outras palavras geralmente apreciadas correm o mesmo risco, de autêntico esvaziamento da força transformadora que encerram: participação, liberdade, democracia, cidadania, por exemplo.

Ainda no domínio da actividade económica, não pode omitir-se referência ao processo redutor da noção de progresso. A economia e a técnica, pelo modo acelerado como têm evoluído e os benefícios que têm proporcionado a uma parte da humanidade, acabaram por transformar em finalidades o que são meros instrumentos. Conquistaram a hegemonia no modo de definir políticas e avaliar a evolução global das sociedades e ganharam um peso desproporcionado no próprio conceito de progresso. Não apenas subestimando o lugar dos aspectos distributivos naquele conceito, mas, ainda, reduzindo o número de dimensões que o constituem. Não se trata de ignorar a importância indiscutível que a economia e a técnica merecem, mas de rejeitar que neles esteja tudo quanto encerra a noção de progresso, designadamente nas suas dimensões humana, social e espiritual.

Uma das causas e consequências dessa hegemonia está na agressividade com que a publicidade com origem no lado da oferta se esforça por criar e atrair a procura. Movendo-se num contexto culturalmente vulnerável a seduções apoiadas em técnicas sofisticadas, as modernas técnicas de marketing conseguem o seu fim, até se gerar um ciclo vicioso em que a oferta se sente em condições de afirmar que se limita a ir ao encontro das necessidades da sociedade.

Se houvermos de admitir que não há razões para esperarmos, pelo menos em tempo útil, alterações de comportamento por parte das empresas, havemos de reconhecer que está do lado dos consumidores, individual e colectivamente considerados, a única alavanca para modificar este estado de coisas. São cada vez mais numerosas as iniciativas no domínio da afirmação de um consumo ético e responsável a par da promoção de um comércio justo ou da ética do necessário .

Relaciona-se com o que ficou dito o papel da criação da obsolescência como critério de gestão das empresas, o qual está bem ilustrado nestas as palavras do presidente da Sony: Creio que a missão da Sony é tornar os seus próprios produtos obsoletos; caso contrário, alguém mais o fará4 . Assim, acontece que muito do que hoje temos é permanentemente substituído, por razões de moda ou de atracção pelo último modelo, mesmo que não existam motivos objectivos para abandonarmos o modelo que possuímos. Do mesmo passo, milhões de pessoas vivem no sofrimento por não conseguirem satisfazer as suas necessidades básicas, a começar pela alimentação. Uma economia movida por tais critérios é forçosamente uma economia do desperdício, tornando-se evidente que a noção de desperdício não se limita a critérios de eficiência instrumental, adquirindo uma eminente dimensão ética.

Nas palavras de João Paulo II: É o que se chama a civilização do “consumo”, ou consumismo, que inclui tantos desperdícios e estragos. Um objecto que se possui, e já está superado por outro mais perfeito, é posto de lado, sem tomar em conta o possível valor permanente que ele tem em si mesmo ou para benefício de outro ser humano mais pobre. 5

Uma vez mais sobressai a urgência de que, também na vida económica, o comportamento de todos e todas nós seja orientado por finalidades com conteúdo ético.

Não pode ignorar-se que tudo aquilo que correntemente qualificamos de «progresso» „Ÿ a electrónica, as ciências da matéria e dos materiais, as comunicações e as tecnologias da informação - e que permitiram a globalização, são certamente sinais de progresso enquanto conquistas humanas, mas só por isso não traduzem, necessariamente, progresso quanto às suas finalidades. Esse progresso instrumental tem de ser avaliado à luz dos valores para que se possa concluir quanto à sua tradução em autêntico progresso humano.

6. Revalorizar a liberdade, a participação e os valores éticos na política

Pelo que respeita à vida política, importa começar por afirmar o contexto geralmente positivo do nosso sistema democrático. Esta verificação não deve, todavia, impedir a identificação das imperfeições que afectam o sistema e a busca de melhorias sempre necessárias em qualquer sociedade democrática, designadamente no sentido de tornar efectivos e acessíveis a todos os valores próprios da democracia. Dois dos valores que carecem de aprofundamento decisivo são a liberdade e a participação.

A liberdade é um elemento essencial e básico da democracia. É normalmente considerada como um direito civil ou político, enquanto distinto dos direitos económicos, sociais e culturais. Porém, é hoje reconhecida a chamada indivisibilidade dos direitos humanos, em certa medida porque os diversos tipos de direitos, embora distintos, não são independentes uns dos outros. No caso da liberdade, deve reconhecer-se que a sua afirmação de princípio é destituída de significado prático se não estiverem asseguradas as condições necessárias ao seu exercício, as quais incluem, além do mais, condições de vida aceitáveis. Neste entendimento, as situações de miséria e de fome configuram verdadeiras situações de privação de liberdade. Acresce que se tem verificado que as pessoas pobres e excluídas acabam por se desinteressar do exercício dos direitos políticos (de votar e ser eleito). A relevância dos direitos económicos e sociais, enquanto condições do exercício da liberdade, não é ainda reconhecida nas nossas sociedades e certamente constitui um dos aspectos em que as democracias «ocidentais» carecem de aprofundar o entendimento que têm de liberdade.

O direito de propriedade, também um direito civil na generalidade das democracias, tem sido interpretado de forma demasiado limitativa, na medida em que só defende o direito dos que têm propriedade. Uma vez que o seu fundamento reside na natureza humana, reconhecê-lo apenas nos que têm propriedade distorce o seu significado e enfraquece a sua justificação. Na encíclica Centesimus Annus, o Papa João Paulo II sentiu necessidade de reafirmar o direito de propriedade, ou seja, o direito de possuir as coisas necessárias para o desenvolvimento pessoal e da própria família, além do mais, defronte aos crescentes fenómenos de pobreza ou, mais exactamente, às privações da propriedade privada, que se apresentam aos nossos olhos em muitas parte do mundo, inclusive naquelas onde predominam os sistemas cujo fulcro é precisamente a afirmação do direito de propriedade.6 Já anteriormente João Paulo II afirmava: sobre a propriedade, de facto, pesa uma “hipoteca social”, quer dizer, a propriedade possui como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio do destino universal dos bens.7

A participação surge como elemento essencial da democracia representativa, primeiramente como exigência do exercício da cidadania e, também, como forma de compensar o que pode constituir uma excessiva delegação das decisões nos representantes do povo periodicamente eleitos para os órgãos de soberania. Sem um mecanismo que aproxime os eleitos dos eleitores, e os ponha em contacto de modo regular, persiste entre uns e outros uma distância que prejudica a democracia.

Acresce que, entre nós, tornou-se corrente que os eleitos exerçam, cumulativamente, outras actividades profissionais de natureza privada, por vezes tão absorventes que se não vê como possa sobrar tempo e energia para a actividade parlamentar. Tudo isso por razões financeiras, diz-se, evidenciando que a «ideologia do mercado» já vai invadindo até o próprio espaço de representação nacional por excelência. É fácil imaginar o que seria do país caso os membros do governo e o presidente da República adoptassem os mesmos critérios de conduta... Tudo isto contribui para que a actividade política se apresente como um «mundo à parte», distante de quantos sentem nas suas vidas os efeitos das decisões e omissões dos que nesse «mundo» se movimentam. Em certa medida, um «mundo» em sério risco de ser tocado pelo descrédito.

A participação requer mecanismos que a promovam e facilitem. Mas, antes disso, exige canais de informação e comunicação entre os poderes públicos e a sociedade civil.


7. Realizar as necessárias mudanças: uma tarefa de todos os membros da sociedade.

A quem compete realizar as necessárias mudanças? Antes do mais, aos que detêm a autoridade que lhes foi atribuída com vista à promoção do bem comum da sociedade. Mas também a cada um dos membros da sociedade. Referindo-se aos cristãos leigos, disse João Paulo II estas palavras:

Para animar cristãmente a ordem temporal, no sentido que se disse de servir a pessoa e a sociedade, os fiéis leigos não podem absolutamente abdicar da participação na «política», ou seja, da múltipla e variada acção económica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum. (…) As acusações de arrivismo, idolatria de poder, egoísmo e corrupção que muitas vezes são dirigidas aos homens do governo, do parlamento, da classe dominante ou partido político, bem como a opinião muito difusa de que a política é um lugar de necessário perigo moral, não justificam minimamente nem o cepticismo nem o absentismo dos cristãos pela coisa pública.8

A cada um cabe procurar as formas de intervenção e as estruturas e instituições mais adequadas à sua participação. Sendo certo que a responsabilidade de contribuir para o bem comum é tanto maior quanto maiores forem os recursos e o poder de que cada um e cada uma dispõe. Ninguém está isento de contribuir para esse fim, designadamente através do aperfeiçoamento dos mecanismos e instituições por onde passa a vida política da sociedade.

O que fica dito a nível nacional vale, mutatis mutandi, para o espaço europeu, em que o chamado «défice democrático» é bem mais acentuado e visível, quer no que toca ao quadro institucional vigente, quer relativamente ao jogo do poder entre estados-membros mais fortes e mais fracos. Num momento em que surgem sinais de reabertura do processo relacionado com o texto constitucional, importa chamar a atenção para a necessidade de aprofundar a dimensão democrática interna da União.

Uma das consequências da integração dos países em espaços mais amplos é a da transferência do poder de decisão dos governos nacionais para centros supranacionais, ou a sua substituição pelos mecanismos do mercado. Algo de semelhante ocorre à escala mundial, por força da globalização. Em consequência, a verdadeira margem de manobra dos governos nacionais é cada vez mais estreita e limitada. Enquanto esta mudança fundamental não for compreendida e interiorizada pelos agentes económicos e sociais e pela opinião pública em geral, continuar-se-á a equacionar os problemas como se os governos tivessem a possibilidade de decidir como dantes, criando assim, falsas esperanças e consequentes frustrações.

8. Repensar o estilo de vida e procurar alternativas.


O estilo de vida corrente, neste mundo de prosperidade material em que nos situamos, não é sustentável. Nem do ponto de vista ecológico (basta ver as filas intermináveis de carros a entrar ou a sair das grandes cidades todos os dias ou as inúmeras indústrias poluentes existentes no Planeta) nem à luz de critérios de desenvolvimento humano global (os recursos do Planeta são limitados e, se uns têm demais, outros terão necessariamente de menos…). Acresce que não permite uma vida física e psiquicamente saudável, como se vê pelo excesso de stress permanente e pelo elevado risco de depressão que afectam tantos dos nossos concidadãos e concidadãs.

Um dos sinais de esperança do nosso tempo é, porém, verificar que vem crescendo a consciência de que é necessário arrepiar caminho e procurar alternativas de vida mais saudável, mais solidária e mais feliz. É uma corrente que vai ganhando expressão e se traduz em comportamentos individuais e familiares, bem como em empenhamentos em várias causas comuns.

Importa conhecer e acarinhar os movimentos e iniciativas que neste domínio se vêm desenvolvendo, e de que são exemplos: o “decrescimento feliz”, ou seja, a procura de um estilo de vida mais em harmonia com a natureza; a defesa da “ética do necessário” e a sobriedade dos consumos e outros movimentos que procuram promover a redescoberta das relações humanas e do valor do tempo perdido com uma excessiva acumulação de riqueza.

Em Portugal, estes movimentos têm, por ora, insuficiente visibilidade, mas deve salientar-se o seu alcance simbólico na representação de um vasto leque de possibilidades de abertura a novas soluções.

Inovador é também o movimento no sentido de combater a excessiva mercantilização de todos os âmbitos da vida, nomeadamente no domínio dos afectos. Tudo se compra, tudo se paga, desde o tempo de alguém para que esteja com os nossos filhos, com os nossos pais e avós, até aos presentes que se oferecem (e que já não se fazem) ou as festas de aniversário que se encomendam e compram. Dificilmente se oferece tempo e se trocam serviços.

Por contraste, são de louvar as iniciativas como as do “Banco do Tempo” e muitas outras que têm sido desenvolvidas no âmbito do voluntariado e da economia social.


9. Superar o reducionismo do ser humano à economia.

Para além dos seus objectivos específicos, as iniciativas e os movimentos a que atrás aludimos têm em comum o pressuposto de que importa superar a hegemonia do económico em relação ao humano.

Nas sociedades contemporâneas, e também na sociedade portuguesa, existe cada vez mais a convicção que, no mundo globalizado em que vivemos, as forças económicas dominam os comportamentos humanos. Não é uma fatalidade que assim suceda. É possível, necessário e urgente introduzir no modo de organizar a vida colectiva novos valores, atitudes e comportamentos. É uma tarefa que exige reflexão e maior responsabilização por parte de todos os actores sociais. É que todos somos responsáveis por um desenvolvimento humano e sustentável.

Impõe-se por isso que todos nós nos interroguemos sobre o projecto de sociedade que estamos a construir, pela nossa acção e pela nossa inércia, e sobre aquele que desejamos viabilizar no futuro.

Em particular, como cristãos, devemos empenhar-nos em procurar respostas para as seguintes interrogações:
- Como podemos tornar possível, na nossa sociedade, uma visão da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus e, por isso, capaz de amar e criar espaços de fraternidade, de liberdade, de justiça e de paz?
- Como constituir comunidades que se mantenham atentas ao concreto da vida das pessoas, nomeadamente aos dramas das pessoas marginalizadas e excluídas e se mostrem empenhadas em procurar caminhos de superação das causas, próximas e remotas, dos processos de exclusão?
- Como fomentar, nas paróquias e nos movimentos cristãos, a exigência de que se tornem sinais de Deus e da sua promessa de salvação?
- Como ser sinal de fraternidade e partilha nos vários ambientes em que nos movemos?
- Como viver a hospitalidade, o acolhimento do estrangeiro e o cuidado?
- Como não deixar esmorecer a esperança ou enfraquecer o esforço da procura de sentido, de novos caminhos de vida, e de modos alternativos de organização socio-económica?

10. Servir a pessoa e a sociedade: Um caminho de santidade.

Por último queremos sublinhar a relação que existe entre a busca da santidade pessoal e o compromisso lúcido e responsável com a transformação do mundo em que vivemos, como inúmeras vezes tem sido recordado no pensamento social da Igreja.

Nesta Quaresma de 2007, seria bom que cada cristão e cada cristã, pessoalmente e em comunidade, pusesse em prática a exortação do Papa Paulo VI: que cada um procure examinar-se para ver o que é que já fez até agora e aquilo que deveria fazer. Não basta recordar os princípios, afirmar as intenções, fazer notar as injustiças gritantes e proferir denúncias proféticas, estas palavras ficarão sem efeito real se não forem acompanhadas, para cada um em particular, de uma tomada de consciência mais viva da sua responsabilidade e de uma acção efectiva. É por demais fácil alijar sobre os outros a responsabilidade das injustiças se se não dá conta ao mesmo tempo de como se tem parte nelas e de como a conversão pessoal é algo necessário, primeiro que tudo o mais.9

Fevereiro 2007


NOTAS

1 De Woot, Philippe (2005), Should Prometheus Be Bound? – Corporate Global Responsibility, European Foundation for Management Development e Palgrave/Macmillan, UK, p. vii.

Cf. COSTA, A.B. – A responsabilidade social da empresa, in Anuário da Ordem dos economistas, 2007.
2 Ibidem.p.ix. De Woot esclarece que, quando se fala em finalidade, valores e cultura, estão em causa não apenas as empresas de maiores dimensões, mas também as médias e as pequenas. Reconhece, no entanto que, quando estão em jogo o poder, a influência e a participação concreta nos esforços para modificar o sistema, a maior parte das pequenas e médias empresas só o poderão fazer através das associações profissionais.
3 Ibidem, p.x.
4 Cit. por Woot, op.cit.p.13.
5 João Paulo II (1987), in Sollicitudo rei socialis, nº 28.
6 João Paulo II (1991), Centesimus Annus, nº 6.
7 João Paulo II (1987), Sollicitudo rei socialis, nº 42.
8 João Paulo II (1988), Christifideles laici, nº 42.
9 Paulo VI (1967), Octogesima Adveniens, nº 48.

Fonte Ecclesia

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