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Natal de Jesus, Natal do Homem
2006-12-26 23:33:41

As nossas raízes são cristãs. Como escreveu recentemente o filósofo agnóstico Régis Debray, "é sempre possível renegar esta ascendência; negá-la seria frívolo". É uma "questão de código genético". É a nossa "árvore genealógica", sem "orgulho" nem "vergonha". Não se pode negar a própria identidade. Não se trata de impô-la aos outros, mas, quando se conhece as próprias raízes, é mais fácil dialogar com os outros, apreciando as deles e abrindo-se, na universalidade, ao enriquecimento mútuo.

As nossas raízes são cristãs. Como escreveu recentemente o filósofo agnóstico Régis Debray, "é sempre possível renegar esta ascendência; negá-la seria frívolo". É uma "questão de código genético". É a nossa "árvore genealógica", sem "orgulho" nem "vergonha". Não se pode negar a própria identidade. Não se trata de impô-la aos outros, mas, quando se conhece as próprias raízes, é mais fácil dialogar com os outros, apreciando as deles e abrindo-se, na universalidade, ao enriquecimento mútuo.

A título de exemplo, Debray pede que se repare nos nossos dias feriados, nas nossas igrejas, nos nossos museus, na nossa música. Sem o Concílio de Niceia II (787), que autorizou as imagens, teríamos a arte que temos e "todas as nossas paixões ópticas"? Por paradoxal que pareça, o lugar do feminino no nosso imaginário não deve também ao culto mariano? Não está o nosso protocolo republicano ligado, através do protocolo monárquico, à hierarquia celeste estabelecida pelo Pseudo-Dionísio Areopagita? É claro que a laicidade tem a sua raiz no vocabulário eclesiástico.

A nossa concepção de pessoa tem na sua base os debates à volta da tentativa de entender o mistério de Cristo e da Santíssima Trindade. A própria "morte de Deus" não se compreende sem a relação com a morte de Cristo na Sexta-Feira Santa - lembre-se a "Sexta- -Feira Santa especulativa", de Hegel.

Se é verdade que na Europa se vive uma crise de fé e de pertença cristã, também se não pode esquecer que o número dos católicos e dos protestantes no mundo não deixa de crescer. Dois mil milhões de seres humanos confessam-se cristãos, o que faz do cristianismo a principal religião da Humanidade.

Na base deste movimento cristão encontra-se a pessoa de Jesus e, quando se reflecte, não é possível ficar indiferente à sua figura. Nasceu num lugar obscuro - provavelmente em Nazaré da Galileia, há dois mil e dez anos -, teve uma vida pública de pregador ambulante durante dois anos e foi condenado à morte e à morte mais ignominiosa: a morte da cruz, que era a morte aplicada pelo Império Romano aos escravos. Tornou-se, no entanto, uma figura determinante para a Humanidade e talvez mesmo a mais influente da História.

Depois dele, o mundo não foi o mesmo. Apesar de todos os erros e crimes históricos dos cristãos ao longo da História, é inegável que valores fundamentais que alimentam a nossa cultura e que se vão tornando património da Humanidade mergulham também as suas raízes na mensagem originária de Jesus. Não é por acaso, por exemplo, que a própria secularização e a doutrina dos direitos humanos, mesmo que tenham tido de impor-se contra a Igreja oficial, nasceram no contexto de sociedades impregnadas pelo cristianismo. A afirmação de Jesus sobre o Sábado, se não é a afirmação mais revolucionária da História, é pelo menos uma das mais revolucionárias: ao dizer que o Homem não é para o Sábado, mas o Sábado para o Homem, Jesus apresentou o Homem e a sua dignidade como critério dos mandamentos de Deus e, consequentemente, de todas as leis.

Os ideais da Revolução Francesa encontram o seu húmus no Evangelho. Ao proclamar Deus como Pai e ao anunciar como núcleo da sua pregação o Reino de Deus a favor da Humanidade, Jesus proclamou a igualdade radical de todos os seres humanos, de tal modo que agora, como escreverá São Paulo, já não há nem judeu nem grego, nem homem nem mulher, nem escravo nem livre, pois todos são irmãos. Todo o ser humano tem dignidade infinita, a dignidade própria de filho de Deus, de tal modo que não pode haver exclusão nem discriminação.

O Deus cristão é o Deus da liberdade. São Paulo também escreverá que onde está o espírito de Cristo aí está a liberdade. Ao criar homens e mulheres livres, o próprio Deus lhes ficou submetido, correndo o risco da insubordinação humana. A filósofa e mística E. Stein escreveu: "A misteriosa grandeza da liberdade pessoal estriba em que o próprio Deus se detém perante ela e a respeita." O traço fundamental do Homem enquanto imagem de Deus é a liberdade. Sempre que as Igrejas cristãs a não respeitaram, traíram substancialmente a mensagem de Jesus.

Deste modo, o Natal de Jesus é Natal do Homem, isto é, nascimento para a consciência da dignidade divina de todos os seres humanos.

Trata-se agora de concretizar o Natal. É inadmissível, por exemplo, que se cave cada vez mais fundo o fosso entre os muito ricos e os muito pobres. Como é possível tolerar que 900 milhões de seres humanos passem fome? A solidariedade também é nome de Deus.

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Fonte DN

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