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Peregrino de aluguer
2006-12-10 22:49:08

Carlos Gil tem um emprego único em ‘part-time’: peregrina a Fátima pelos outros a troco de 2500 euros. Sem hesitar, calça as botas e inicia a sua caminhada ao longo de 160 quilómetros.

Os perigos da caminhada são inúmeros mas a devoção fala sempre mais alto. A estrada parece não ter fim, mas a vontade de lá chegar supera qualquer obstáculo. Os passos surgem de forma ritmada, rumo a uma etapa de realização. A cada um, Carlos Gil fica mais pequeno no horizonte. Mas, assim que chega ao imponente Santuário de Fátima, torna-se ‘gigante’ no maior símbolo religioso de Portugal. Para trás deixa a família e o emprego durante duas semanas.

Carlos Gil, de 42 anos, tem uma loja de computadores em Cascais e vende casas na zona de Sintra. Duas ocupações que lhe roubam a maior parte do tempo. Contudo, duas vezes ao ano, tira uma quinzena para se dedicar a uma espécie de part-time religioso. Botas confortáveis nos pés, roupa prática a esconder-lhe o corpo, mochila às costas, bordão na mão e uma determinação inabalável. Nesse período, Carlos Gil, nascido em Luanda, Angola, torna-se num peregrino. Na sua atitude, na sua caminhada, é igual a muitos milhares de outros que, anualmente, fazem-se à estrada rumo a Fátima. A diferença é que caminha não só por si, como faz questão de frisar, mas por todos os outros que possam recorrer a esta espécie de ‘aluguer de peregrino’.

É, sem dúvida, uma ideia peregrina. E estranha. No entanto há quem recorra a este serviço temporário, que teve a sua origem há cerca de 700 anos. A simples preguiça, incapacidade física ou outra razão qualquer tem um custo ao cliente: 2500 euros, que não só preenche o rendimento de 15 dias de trabalho, como também cobre as despesas inerentes à peregrinação, desde o alojamento às refeições. Este é o montante cobrado por Carlos Gil para peregrinar pelos outros, fazer a caminhada, acender as velas no santuário e regressar a casa. De lembrança traz uma espécie de diploma – que não é mais do que um ‘souvenir’ – com carimbos dos vários sítios por onde passou e uma paz de espírito.

As razões que levam os ‘clientes’ a recorrer ao ‘peregrino de aluguer’ não são conhecidas. Aliás nem o próprio sabe explicar. “Nem eu sei. Eu faço isto por paixão. Sei apenas que tenho vontade de o fazer”, afirma convicto.

O ar sereno acompanha um discurso pausado, que sai da boca como uma melodia. Até as palavras transmitem a paz que habita neste homem, nascido e criado no seio de uma família católica. “Mas se tivesse nascido num país árabe, tipo a Arábia Saudita, seria certamente muçulmano e peregrinaria para Meca. A regra em Portugal é sermos católicos não praticantes, que é o que se passa com a minha família. Mas, acima de tudo, sou uma pessoa com muita fé”, desabafa.

Para muito boa gente a ideia de alugar peregrinações pode parecer um absurdo. Pode-se mesmo pensar que Carlos Gil é alguém que tenta tirar dividendos monetários de clientes que não são “coitadinhos, mas sim pessoas com posses, oriundas de classes altas”. Nada mais errado esclarece alguém que tem uma ideia romântica deste ‘part-time’. “As pessoas têm o direito de pensar que isto é um negócio, mas acreditem que não é”. E acrescenta: “Não considero que este peregrinar para terceiros seja contra-natura. Uma peregrinação é algo pessoal. No meu ponto de vista, isto é um serviço romântico que eu presto”. Para os mais cépticos, o ‘expert’ de computadores faz questão de frisar que esta é “uma profissão que tem mais de 700 anos de existência”. “O peregrino sempre foi uma figura muito querida entre as populações, é alguém que gera paixões”. E, para ir a Fátima por alguém, o ‘peregrino por aluguer’ nem tem necessidade de se encontrar com o seu contratante. “Ligam-me, pedem-me para eu fazer e ponto final”.

De Lisboa a Fátima a estrada estende-se ao longo de penosos 160 quilómetros. Cada curva é um perigo, cada condutor é visto com desconfiança, e até os animais podem fazer um peregrino acelerar passo. Daí que a escolha do itinerário seja fundamental. “O caminho é uma forma de agradecimento. Uma coisa é estar a caminhar e ouvir passarinhos, outra é ouvir o barulho de um camião. Chegar lá intacto é quase uma aventura”.

MINIMIZAR EFEITOS DA JORNADA

Por vezes com chuva e frio, outras com Sol e calor, Carlos Gil tenta minimizar os efeitos desta longa jornada escolhendo criteirosamente tudo aquilo que o acompanha rumo a Fátima. E as coisas são estudadas quase à grama.“Nunca levo mais de sete quilos comigo. Antes da caminhada peso-me todo nu e depois já equipado, vestido, calçado, com a mochila às costas, bordão, e não deixo o peso ultrapassar os sete quilos”, disse, confessando apenas carregar o indispensável. “Levo comigo umas botas oferecidas por um amigo, que está sempre a perguntar-me quando é que preciso de umas novas, levo um saco-cama bom, dois pares de meias, duas cuecas, umas calças que mantenho sempre na viagem, uma t-shirt, um pólo, um corta-vento, uma capa para a chuva, a mochila, uma garrafa de água de meio litro, um pacote de bolachas e um rolo de papel higiénico”.

Nessa parafernália de coisas, algo comum à maioria dos peregrinos sobressai. “O bordão que levo na mão, em que me apoio, é para mim um símbolo paterno. Quando acontece algo mais agreste procuramos a ajuda do nosso pai. O bordão serve para apoiar-me nos momentos difíceis da caminhada, quando os problemas físicos surgem, serve também como nossa defesa. Um dos grandes inimigos dos peregrinos são os cães. Basta levantar o bordão e afastam-se”, diz, confessando no entanto nunca ter sido mordido.

Esclarece que é uma pessoa preguiçosa – “para fazer 500 metros levo o carro” – mas que não teme o caminho em direcção ao Santuário. Apesar disso tem algumas cautelas e opta por caminhos menos movimentados. A viagem é penosa e conta com o apoio daqueles que se cruzam no seu caminho, rejeitando, contudo, o papel de pobre. “Costumo pensar que alguém me vai dar de comer e de dormir, mas esta não é uma postura à mendigo. Tenho possibilidades financeiras até para ficar num hotel de cinco estrelas. Normalmente as pessoas recomendam-me bons restaurantes, outras oferecem-me comida, umas sugerem-me casas vazias para dormir lá”.

Carlos Gil demora sete dias para chegar a Fátima, participa nas cerimónias habituais, pernoita por lá e, no dia seguinte, lança-se no caminho inverso. “Mas demoro apenas cinco dias a regressar a Cascais, pois venho num estado de graça”, reconhece.

Para gerir o esforço, o angolano de nascença lança-se numa caminhada de rotinas, em que há que aproveitar bem o dia, daí a necessidade de madrugar. “Levanto-me com o nascer do Sol, por volta das 6h00, às 7h00 já estou a caminhar. Continuo até por volta das 13h00, pelo caminho faço algumas paragens, almoço bem, ando mais à tarde, e onde se proporcionar fico. Tento sempre terminar a minha jornada ainda de dia, pois há que descansar”.

ALHEIA-SE DO MUNDO

Durante as duas semanas, Carlos Gil alheia-se do Mundo. Concentra-se apenas na sua fé, na família, nos amigos. Não costuma levar telemóvel, mas quando o faz só comunica por SMS e com a mulher, à noite. “Se o fizer durante a peregrinação, a minha cabeça vai ficar preenchida com coisas externas à caminhada. E isso não é nada bom”, reconhece.

Esta maneira de estar durante a peregrinação é um prolongamento da vida de Carlos Gil. A família nunca o acompanhou numa das suas jornadas, mas é um pilar, um suporte nesta dedicação de Carlos Gil. Em casa, a divisão mais ocupada é a cozinha e por cima do móvel falta o electrodoméstico mais desejado de qualquer pessoa: a televisão. A sua casa, como faz questão de frisar, “é uma espécie de retiro, de santuário”, daí não ter autorizado a Domingo a tirar fotografias. “Tento alhear--me de tudo o que se passa. Para mim o Mundo é a família, os amigos, os vizinhos. Desde que eles estejam bem, para mim o Mundo é cor-de-rosa”. Aquilo que lhe chega pelo pequeno ecrã é de desconfiar. “A informação chega-me através dos outros, é uma interpretação deles, não as vivo. É lógico que não lhes fico indiferente”.

Seguidor do lema ‘pensa globalmente, age localmente’, Carlos Gil vive o momento, adiantando que a sua atitude perante a vida pode mudar de um momento para o outro. Mas a peregrinação parece ser uma espécie de ‘cura’ para qualquer um. “O que marca é o estado de graça que se consegue. Só nas peregrinações é possível alcançá-lo. A pessoa sente-se bem”.

AJUDA DE TERCEIROS, UMA 'MULETA' INDISPENSÁVEL

Esta espécie de remédio que é a caminhada aos locais divinos é para todos, daí Carlos Gil nunca ter recusado os serviços ‘rent-a-peregrino’ a nenhum potencial cliente. “Quem sou eu para recusar seja o que for? Não tenho medo do presente envenenado. Não me compete dizer que faço isto por aquele sujeito e não faço pelo outro. No fundo não tenho o direito de julgar ninguém”.

Na caminhada, a ajuda de terceiros torna-se uma ‘muleta’ indispensável. E Carlos Gil guarda na memória as palavras de um bombeiro da Azambuja num dia em que o quartel abriu portas para albergar dezenas de peregrinos. O ‘soldado da paz’, maravilhado com a atitude de quem se faz à estrada, justificou o acolhimento. “Nós sabemos que Jesus vem no meio de vocês, mas como não sabemos qual de vocês é Ele, albergamos todos entre nós”.

Carlos Gil é único. Pela atitude perante a vida, pelas caminhadas por outrém e mesmo pelo tipo de serviço que presta. 2500 euros é quanto basta para que as suas preces cheguem a Fátima pelo pé do informático.

PELOS CAMINHOS DA FÉ

Carlos Gil, 42 anos, não demora muito a escolher os itens que vão encher a mochila, apesar da viagem até Fátima ser longa. Apenas leva o indispensável. Umas botas confortáveis, um bom saco-cama, dois pares de meias, duas cuecas, umas calças que leva sempre durante a caminhada, uma t-shirt, um pólo, um corta-vento, uma capa para a chuva, uma garrafa de água de meio litro, um pacote de bolachas e o sempre indispensável rolo de papel higiénico. O informático nunca transporta mais de sete quilos consigo. Apesar da longa ausência, muitas vezes nem leva consigo o telemóvel.

SERVIÇOS DE ALUGUER NO MUNDO VIRTUAL

WWW.PEREGRINO.ORG

Há pouco mais de três anos, Carlos Gil iniciou os seus serviços de peregrinação por aluguer, altura em que colocou no mundo virtual um ‘site’ em que o potencial cliente se pode apoiar. ‘www.peregrino.org’ é o endereço da ‘net’ onde Carlos Gil fala dos seus serviços, das suas motivações, dos custos, do traçado, contactos, e muitas outras informações, disponíveis, além de português, em espanhol, inglês e francês. “Às vezes ligam-me de França, viro-me para os meus amigos e digo: ‘eh pá, quem é que fala francês que eu não percebo nada?’ Os serviços até agora estiveram todos relacionados com a língua portuguesa mas, se tal se proporcionar, não recusará o dinheiro de um cliente estrangeiro. “Continuo a dizer que não sei o porquê de fazer isto para os outros”.

LOCAIS DE PEREGRINAÇÃO

DE ANGOLA AO PERU

As peregrinações de Carlos Gil não se resumem a Fátima. Já percorreu os Caminhos de Santiago (Espanha), cortou mato em Mixuma (Angola) e subiu os degraus de Machu Picchu (Peru). Eis ainda os principais locais de peregrinação do Cristianismo:

1. Jerusalém Israel

2. Santiago Compostela Espanha

3. Belém Brasil

4. Nazaré Israel

5. Fátima Portugal

6. Lourdes França

7. Ávila Espanha

8. Cantuária Inglaterra

9. Guadalupe México

10. Roma Itália

11. Lisieux França

12. Monte Athos Grécia

13. Turim Itália

14. Caminho da Luz Brasil

O caminho até Fátima já não tem segredos para Carlos Gil. Os Caminhos de Santiago também já começam a preencher a agenda do peregrino, que já caminhou em Angola e Peru. No seu país natal, deslocou-se ao santuário de Mixuma, a pedido de um cliente. Visitou a casa onde viveu em pequeno, encontrou pessoas que até lhe compraram computadores na sua loja de Cascais, mas nem tudo correu da melhor maneira. No fim, parece que a ajuda divina lhe colocou um escudo à volta. “Angola foi gratificante. Mas, a meio da caminhada, fui atacado por um enxame de abelhas. Aquilo parecia não ter fim, mas deve ter durado cerca de meio a um minuto. No fim, não sabendo bem como, não tinha uma única picada”.

Bem alucinante foi a viagem a Machu Picchu. Uma escalada acompanhada por um dos ‘recursos naturais’ – “mastiguei tantas folhas de coca” –, numa viagem por si idealizada mas patrocinada por um cliente. “Nem me lembro quanto gastei. Sei que cheguei a Portugal e ainda devolvi dinheiro”.

João Tavares

Fonte CM

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