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Anjos que sabem pouco sobre Deus
2006-10-10 22:46:28

"A arte contemporânea afastou-se da religião, mas não esqueceu o sagrado", diz Paulo Vale, 32 anos, professor de Cristianismo e Cultura na Universidade Católica. A propósito da intervenção que fará logo à tarde, sobre Presenças angélicas nas artes plásticas contemporâneas, Paulo Vale cita Amador Vega (Arte y Santidad) para afirmar que "o que desaparece com a modernidade não é tanto o sagrado quanto a sua representação religiosa".

A arte aparece como um sucedâneo da experiência religiosa: "A experiência estética vem tentar preencher o que antes a experiência religiosa procurava completar." A obra de arte assume, assim, um papel de compensação de "uma ausência", estabelecendo-se através dela "uma negociação para lidar com a falta" - um sucedâneo da experiência social e religiosa contemporânea.
Paulo Vale irá apresentar várias obras contemporâneas que traduzem a presença do anjo. Desde o quadro de Manet Cristo entre os Anjos ou o Angelus Novus de Paul Klee, fundadores da estética contemporânea sobre o tema. O italiano Pistoletto esculpe, na década de 80, duas peças - entre elas, uma Anunciação, em que o anjo se funde com a Virgem. Esta, uma figura greco-romana, aparece assim cristianizada, enquanto o anjo pode figurar a própria representação de Deus.
Francesca Woodman, que em 1977 realizou em Roma a série de fotografias On Being an Angel (ver foto na página anterior) mostra o corpo numa situação de confronto com "os limites que o espaço ou os objectos lhe impõe", ou em desaparição, "parecendo fugir ou negar o corpo".
É o caso da foto reproduzida - em que aparece a própria Francesca, que morreria com 22 anos e fez esta série com 19. Aqui, ela "deixa as asas e lança-se para o solo". "Desprende-se do seu ser anjo e quer-se corpo. Ou será o contrário? Um corpo que deseja as suas asas e não as alcança?"
Nesta aproximação ao tema dos anjos, não faltam nomes portugueses: António Pedro, Mário Eloy, Ilda David com as suas interpretações de Jacob em luta com o anjo, Ana Hatherly, Vítor Pomar, Rui Chafes, Paula Rego, Lourdes Castro. A par de outros nomes estrangeiros - Chagall, Rouault, Gormley, Anselmo, Mueck, Rothko, Eliasson, Kapoor ou Turrel. Em todos, de comum, um processo que evidencia que os anjos contemporâneos "dão mais a ver do homem do que de Deus".
A arte contemporânea, "campo de espiritualidade hoje como nunca", acaba por traduzir o que se passa com a religiosidade e a cultura: "Não sendo [uma arte] religiosa, continua a ser lugar de manifestação e relação com o sagrado", diz Paulo Vale. Os anjos contemporâneos parecem "saber pouco sobre Deus" ou não o dizem "para não confundir mais os pobres mortais".
Apesar desse processo de humanização - ou divinização? - o anjo da arte contemporânea continua a passar, por vezes "fugazmente", sempre "estranhamente" - como tantas vezes na própria Bíblia, em que a figura do anjo deixa uma "mensagem cuja racionalidade não era entendida". Como diz uma obra de Bruce Nauman, de 1967, numa espiral de néon, "O verdadeiro artista ajuda o mundo revelando verdades místicas".

Guardiões do silêncio primordial

A figura do anjo continua presente na poesia portuguesa contemporânea, "quer como figura do sagrado, quer como símbolo da condição enigmática da palavra poética", diz Maria João Reynaud.
Esta professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que esta tarde fala no congresso internacional de Fátima, sobre Presenças angélicas na literatura contemporânea, recorda que o angelismo "foi uma voga na poesia dos meados do século XX, penetrando na nossa poesia através dos poetas espanhóis da Geração de 27 e, sobretudo, de Rilke, traduzido por essa altura".
Nas últimas décadas, o tema manifesta-se em áreas como a literatura, pintura, escultura, dança ou cinema. "Um fenómeno que mereceria ampla reflexão interdisciplinar", nota Maria João Reynaud. Mas a temática do anjo, "adaptada à lógica de uma sociedade em acelerada ruptura pelas desigualdades sociais e pela perda ou decomposição de valores essenciais, tem tido uma enorme fortuna, ocupando um lugar central na chamada literatura esotérica". Um fenómeno que continua no top de vendas em países como os Estados Unidos e o Brasil, recorda a professora de Literatura Portuguesa.
Para lá deste fenómeno "lateral", Maria João Reynaud diz que "o anjo regressa ciclicamente às artes como fonte inspiradora". No caso português, cita nomes como Sophia de Mello Breyner Andresen, Vítor Matos e Sá ou Daniel Faria, em que o anjo "tem um significado profundo do ponto de vista religioso", ou ainda uma autora como Ana Hatherly, em que o significado da figura "é estritamente humano e poético". Mas ainda se pode apontar o caso de Fernando Echevarría, em cuja poesia "a presença do anjo marca um imaginário que se abre à transcendência e configura uma pulsão metafísica que anula a fronteira entre a matéria e o espírito, entre o visível e o invisível, entre o profano e o sagrado".
Provenientes de gerações literárias distintas e com obras muito diferentes entre si, estes poetas têm, no entanto, um "traço comum: o fascínio pela figura do anjo, enquanto guardião da região de silêncio primordial que é a fonte da poesia". E são todos eles, acrescenta, "grandes poetas contemporâneos".

António Marujo

Fonte Público

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