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Os anjos regressam à nossa mesa
2006-10-10 22:44:45

Congresso internacional debate em Fátima a presença das figuras angélicas na cultura e na arte contemporânea.

Os anjos regressaram à nossa mesa? E são eles criaturas divinas ou humanas? Será possível, afinal, saber qual o seu sexo? Estarão eles em luta com Deus ou expressam a luta dos homens com o sagrado? O tema das figuras angélicas volta a partir de hoje, até quinta-feira, à mesa do debate, no congresso internacional Figuras do Anjo Revisitadas, que decorre em Fátima.
Logo à tarde, Paulo Vale, professor de Cultura e Cristianismo na Universidade Católica, falará sobre os anjos nas artes plásticas contemporâneas. E começará por citar Frutos e Apontamentos, de Rainer Maria Rilke: "Fica tranquilo se, de repente,/ o Anjo se sentar à tua mesa;/ (...) Convida-o para a modesta refeição,/ Que também ele lhe saboreie o gosto (...)"
Presentes nas religiões tradicionais mas também nas formas de paganismo antigo, os anjos parecem ter voltado à mesa de muita gente. Ao contrário do que possa parecer, a literatura e as artes contemporâneas continuam a dar espaço a essas figuras (ver página ao lado), ao mesmo tempo que aparece uma profusão de livros e devoções.
O regresso dos anjos está agora apenas "ao serviço da realização individual" e do "bem-estar pessoal", diz Alfredo Teixeira, professor de Antropologia e Sociologia da Religião na Universidade Católica. Mas o retorno destas figuras configura um tipo de crença que não exige qualquer "solidariedade comunitária nem outro tipo de compromisso" e que não é "mobilizadora da transformação do que quer que seja".

"Uma multidão nomeável" de anjos
Alfredo Teixeira, que esta tarde fala no congresso sobre Os anjos - figuras do "bricolage" religioso contemporâneo, diz ao PÚBLICO que o fenómeno corresponde a uma época em que as igrejas "perderam o controlo na organização do religioso". E, ao contrário do que acontecia na devoção cristã tradicional - só os arcanjos Gabriel, Rafael e Miguel eram nomeados -, agora há toda "uma multidão nomeável" de anjos. O que traduz a "apropriação pessoal que cada pessoa faz do seu próprio anjo".
As formas religiosas arcaicas na cultura mediterrânica estavam, por vezes, ligadas aos espíritos - das pedras, das árvores... O judeo-cristianismo - como, depois, o islão - adopta a figura do anjo comunicador que tem uma "dimensão inaugural" e pretende preencher uma "distância simbólica" entre o divino e o humano. Ao mesmo tempo, essa adopção pretende "reler" e "combater a proliferação de espíritos própria" dessas religiosidades.
O catolicismo, a partir do século XVI (pós-Reforma e Concílio de Trento), tentou assumir um controlo maior da devoção - consagrando, por exemplo, a festa aos anjos da guarda (assinalada em Portugal a 10 de Junho) e dos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael (29 de Setembro). Mas, ao longo dos séculos, diz Alfredo Teixeira, a Igreja "hesitou" entre o que é reflexo apenas do quadro cultural" e o que pode ser lido no quadro do cristianismo.
João Duque, presidente da comissão científica do congresso, diz que a modernidade "pretendeu resolver a luta" com Deus ou com o sagrado. Não o tendo conseguido - mesmo se a presença de Deus no mundo não é muito evidente -, a pós-modernidade trouxe consigo a desilusão das promessas: das ideologias, da ciência. Fenómenos da pós-modernidade como o esoterismo ou a new age são consequência dessa desilusão.
Pessoas e anjos,
a mesma luta?
Este teólogo, autor de Dizer Deus na Pós-Modernidade (ed. Alcalá), irá falar amanhã do tema Jacob e o Anjo ou um outro olhar sobre a modernidade - um tema escolhido pela sugestão de que essa luta de Jacob pode ser vista como símbolo da luta "de cada pessoa consigo mesma".
Os anjos, afastados pela modernidade, regressam agora "pelo "lado civil", mesmo dentro da Igreja", diz. Mas a referência a essas figuras continua a ser importante: elas são uma "marca da nossa limitação", diz. "O facto de sermos mortais dá-nos uma finitude que temos de aceitar. Hoje há mecanismos que nos pretendem fazer invejar os anjos, transformando-nos em software e ilusão, esquecendo este hardware que é imperfeito."
Num processo inverso ao do filme As Asas do Desejo, de Wim Wenders, trata-se de "construir a ilusão de deixar de ser humano e passar a ser angélico", afirma. Um fenómeno que traduz a ambiguidade da luta da humanidade com Deus (ou com os anjos, se este forem entendidos como significações do próprio Deus). E que a modernidade banalizou, não lutando já com Deus.
É precisamente Wim Wenders que, em As Asas do Desejo, coloca Damiel entre as duas dimensões que deseja habitar: "É fantástico viver espiritualmente dia após dia, testemunhar para a eternidade o que há de puro e espiritual nas pessoas." Mas este anjo também gostaria de "poder dizer "agora" e não apenas "para sempre", chegar a casa cansado", não se "entusiasmar com as coisas do espírito mas com uma refeição, a curva de uma nuca, uma orelha", poder "mentir à descarada", sentir "o que se sente quando se tiram os sapatos debaixo da mesa e se estendem os dedos descalços" ou saber como é "ficar com os dedos sujos a ler o jornal". Pessoas e anjos continuam, afinal, a mesma luta?

António Marujo

Fonte Público

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