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O Vaticano e o 'Código' de Brown
2006-05-11 22:32:12

Por mero acaso, comprei e li O Código Da Vinci na semana em que foi posto à venda nos Estados Unidos. Apesar de não ser uma estreia do autor, Dan Brown, pelo menos deste lado do Atlântico, era ainda praticamente um desconhecido.

De regresso a Portugal, ofereci o livro a um amigo, também apreciador da "literatura de aeroporto". Pareceu-me que esse amigo, na altura convalescente de um internamento hospitalar prolongado e doloroso, encontraria nas páginas do Código algumas horas de distracção capazes de lhe aliviar o espírito. Nunca me passou pela cabeça preocupar-me com a "verdade" do livro. Esse tipo de obras não é escrito para fazer ou revolucionar a História, nem para ocupar o tempo dos caçadores de imprecisões literárias. Trata-se de pura ficção de entretenimento e nada mais. Não imagino, por exemplo, assassinos a soldo da Opus Dei em deambulação pelo mundo para resguardar a "vida secreta" de Jesus Cristo. Por sinal, e embora não me entusiasmem organizações, laicas ou religiosas, que actuem em lobby na sociedade e não cultivem a transparência sobre a sua vida interna, a verdade é que, dos dois ou três contactos que tive com responsáveis da Opus em Portugal, fiquei com uma opinião favorável sobre o seu estatuto intelectual e sobre algumas das tarefas prioritárias da Obra.

O livro tinha todos os ingredientes para vender bem, mas confesso que subestimei a sua capacidade para atingir os patamares de notoriedade que hoje se conhecem. O facto é que os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 tinham feito disparar a curiosidade pública sobre o fenómeno do fanatismo religioso e, a ele associado, o secretismo que envolve a actuação das personalidades de primeira linha que são os nossos pastores da alma. A começar, compreensivelmente, pelos ocupantes do Vaticano.

Convém recordar, neste contexto, que o Estado do Vaticano é uma monarquia eclesial absoluta, com um sistema legal baseado no Código de Direito Canónico, que, curiosamente, mantém em vigor a pena de morte, embora não seja oficialmente aplicada desde 1868. Dispõe de um corpo policial próprio, a Vigilanza Vaticana, que zela pela segurança do Estado e da vida quotidiana dos 911 habitantes titulares de passaporte e dos três mil trabalhadores que acorrem durante o dia à Cidade-Estado. Eventuais perturbações, porventura resultantes das fragilidades da condição humana, raramente chegam aos ouvidos do mundo.

Essa é uma das forças mas também uma das fraquezas da Igreja. Qualquer episódio mal esclarecido chega para alimentar inúmeras especulações e para preencher milhares de páginas, escritas por supostos especialistas ou, apenas, por ficcionistas mais inspirados.

Dan Brown entendeu a conjuntura particularmente favorável à temática do Código e tem, indiscutivelmente, o talento de saber contar uma história, imprimindo ao relato o ritmo adequado aos leitores dos nossos tempos. Só e apenas isso, o que, como se viu, chegou para render muitos milhões.

A sabedoria milenar do Vaticano deveria ter-se abstido de contribuir para o engrandecimento da conta bancária de Brown. Transformar o livro numa batalha pela Fé e apelar agora ao boicote dos católicos ao filme, como fez o arcebispo Angelo Amato, é dar ao Código uma dignidade que ele não tem e, provavelmente, nunca quis ter. Mais valia terem-se inspirado no exemplo do juiz inglês, que mostrou o seu sentido de humor, sobre as acusações de plágio feitas ao livro, quando decidiu introduzir um enigma no texto da sentença e desafiou os "especialistas" a descobrirem o "segredo".

Há duas semanas, Juan Luis Cebrián, fundador do El País, falando em Nova Iorque numa conferência sobre o recente episódio das caricaturas de Maomé, recordou as palavras centenárias de Stuart Mill sobre Jesus Cristo: "Foi uma das primeiras vítimas da intolerância religiosa dos tempos modernos. O Vaticano deveria concentrar os seus esforços nas tarefas em que já provou que tem capacidades únicas e que vão ao encontro das grandes angústias da humanidade: a paz, a justiça social, a solidariedade e, obviamente, a compreensão e a tolerância que confortam o espírito. Esta é a forma mais eficaz de evangelização.

Mário Bettencourt Resendes
Jornalista


Fonte DN

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