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A Bíblia de Ferreira d"Almeida é a obra em português mais publicada
2006-05-11 22:21:57

Mais de mil edições e um número superior a 100 milhões de livros vendidos. Há 325 anos, um português de origem católica, entretanto convertido ao protestantismo, editava em Batávia (actual Jacarta, capital indonésia) a primeira edição do Novo Testamento em português.

Sem o saber, o missionário, viajante e tradutor João Ferreira Annes d"Almeida viria a converter-se num dos mais importantes divulgadores da língua portuguesa: a sua tradução da Bíblia tornou-se a obra mais publicada e conhecida de sempre em português.

"É um desconhecido em termos contemporâneos, mas é notável pela sua obra e pela forma como divulgou a língua portuguesa no Oriente", diz ao PÚBLICO Timóteo Cavaco, secretário-geral da Sociedade Bíblica Portuguesa (SBP), que continua a editar o texto bíblico a partir da tradução de João Ferreira d"Almeida. É curto o bilhete de identidade que se conhece do tradutor: nasce em 1628 em Torre de Tavares, do concelho de Chãs de Tavares (que desde meados do século XIX integra o concelho de Mangualde - onde hoje mesmo se inaugura uma exposição sobre a vida de Ferreira d"Almeida e o seu trabalho de tradutor da Bíblia). Não se sabe quem são os pais, que o deixam órfão muito pequeno. Vale-lhe ser educado, em Lisboa, por um tio padre católico, que o historiador e pastor da Assembleia de Deus António da Costa Barata identifica como sendo, provavelmente, António Tavares.
Sabe-se também que, com 13 ou 14 anos, Ferreira d"Almeida deixa Lisboa a caminho de Amesterdão. Porque teria ascendência judaica e nesta cidade havia uma forte comunidade judaico-portuguesa, com origem na fuga às perseguições da Inquisição? Há quem levante essa hipótese, mas Herculano Alves, frade católico dos Missionários Franciscanos Capuchinhos, que acaba de escrever um trabalho sobre A Bíblia de Ferreira d"Almeida, contesta a ideia: "Não está provada nenhuma ascendência judaica."

Pouco depois, o ainda jovem João Ferreira deixa Amesterdão com destino a Malaca. Na viagem - mais uma vez, não se sabe a razão - abraça o cristianismo protestante. O próprio escreverá mais tarde que é a leitura do opúsculo Diferença da Christandade, sobre o que separa católicos e protestantes, que o leva a deixar o catolicismo e adoptar a fé reformada.

A obra de uma vida
Em 1644, com 16 anos, Ferreira Annes d"Almeida inicia aquele que será o projecto da sua vida: a tradução dos textos da Bíblia para português. Começa pelo Novo Testamento e utiliza, para o efeito, uma versão em latim, que coteja com outras línguas como o espanhol, francês e italiano.
Já outros tinham traduzido para português alguns excertos da Bíblia: D. Dinis verteu os primeiros capítulos do Génesis, o rei D. João I traduziu os Salmos e ordenou a tradução do texto completo, mas o propósito não foi atingido. No século XVI, Damião de Góis traduz o Eclesiastes, um dos poucos textos bíblicos publicados em português no período humanista. A Inquisição impôs um véu de silêncio a esse trabalho, será Almeida a rompê-lo.
Herculano Alves destaca a importância de Almeida ter sido o primeiro a traduzir a Bíblia na sua (quase) integralidade para português, num tempo em que a Igreja Católica "estava ainda toda contente com a Bíblia em latim". E diz que o tradutor concretizou em português a novidade desse tempo, de colocar a Bíblia nas línguas vernaculares.

Apesar de a tradução do Novo Testamento estar concluída em 1645, a sua publicação só se concretiza, no entanto, em 1681. Razões para o facto? Timóteo Cavaco diz que Almeida "nunca foi compreendido nem por um lado nem por outro: os portugueses, quase todos católicos, olhavam-no como traidor", por viver em territórios coloniais que os holandeses tinham roubado a Portugal, de acordo com a convicção da época. Mas também os holandeses e os protestantes "nunca confiaram muito" em Almeida.
Nas quase quatro décadas em que espera pela publicação do seu Novo Testamento, o tradutor não repousa: torna-se um viajante incansável, missionário itinerante, visitador de doentes, pastor protestante, autor e polemista. Malaca, Ceilão, Malabar, Tuticorim, Coulão, Batávia são lugares por onde Almeida circula, numa actividade que privilegia o anúncio da Bíblia de acordo com a concepção protestante.

João Ferreira Annes d"Almeida morre em 1691, com 63 anos, deixando traduzida quase toda a Bíblia e publicada mais uma dezena de obras, entre as quais vários textos de polémica com vários padres católicos.
Como traduzir a Bíblia
A Bíblia deve ser traduzida literalmente ou de forma livre? Respeitando-lhe a estrutura ou só o sentido? Mantendo metáforas ou substituindo-as? Estas são algumas das perguntas que os tradutores do texto sagrado se colocam, cada vez que se lançam a esse trabalho. Ferreira d"Almeida fez uma tradução essencialmente literalista, mas Timóteo Cavaco, secretário-geral da Sociedade Bíblica, diz que aquele tradutor é, mesmo assim, um "vanguardista". A tradução formalista acabará, com o tempo, por "desvirtuar o sentido original dos textos". Essa consciência acaba por dar lugar ao aparecimento do conceito de "equivalência dinâmica", que toma o texto original transferindo o seu sentido para a nova língua, mas "reestruturando todo o material de modo a que este construa uma mensagem coerente", como explica o tradutor Soares Carvalho. Neste conceito de equivalência dinâmica cabem ainda as edições que procuram colocar a Bíblia em línguas correntes, retirando-lhe alguma força literária e adaptando alguns conceitos (como as medidas de comprimento, por exemplo), de forma a torná-la mais perceptível ao leitor comum contemporâneo.


Tolentino Mendonça apresenta reedição de texto original

O texto original da tradução da Bíblia feita por Ferreira d"Almeida no século XVII será reeditado, num projecto que está a ser preparado pela Assírio & Alvim com a colaboração do Círculo de Leitores. Esta reedição terá introduções do biblista José Tolentino Mendonça e ilustrações de Ilda David, e é um dos projectos mais importantes saídos deste ano das comemorações. A Sociedade Bíblica (SB) publicará também A Bíblia de Ferreira d"Almeida, de Herculano Alves, que Timóteo Cavaco, secretário-geral da SB, considera a obra "mais científica e mais completa" sobre o tradutor. Uma edição bilingue dos evangelhos em português (tradução de Almeida) e mirandês sairá também na SB. A exposição que a partir de hoje está em Mangualde percorrerá depois várias cidades do país (entre as quais Lisboa) e do Brasil.

António Marujo

Fonte Público

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