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O amor como programa
2006-04-19 22:35:42

A encíclica saiu com o título e o tema que sabemos: "Deus é amor." Retomando, esclarecendo e concluindo em termos práticos e programáticos a verdade essencial da vida e doutrina de Jesus Cristo. (...) É necessária a Bento XVI uma boa e dupla dose de sabedoria e humildade para nos surpreender desta maneira. Para nos dizer que, tanto teórica como praticamente, não temos outro "programa", quer como comunidade crente quer como concidadãos do mundo.

Ao escolher o tema e o título da sua primeira encíclica - Deus Caritas est -, Bento XVI arriscou muito. Arriscou a incompreensão e a repetição. A incompreensão, porque a palavra gastou-se e "amor" quase já não diz nada, à força de dizer tudo e igualmente o seu contrário... A repetição, porque, bem vistas as coisas, a religião que representa fala de amor há dois mil anos... Mas arriscou e teve efeito.
É por isso que o primeiro ano do Papa Ratzinger se pode classificar como surpreendente. De um homem desta idade e condição, de um prelado com tal currículo e apreciação pública, esperou-se realmente outra escolha para a primeira encíclica. Os prognósticos eram vários nos primeiros meses do pontificado, mas insistiam na temática da verdade. Parecia lógico e natural em quem fora, tão definidamente, prefeito da Congregação da Doutrina da Fé. Mais ainda em quem insistira, tanto e tanta vez, na necessidade de se ultrapassar o relativismo contemporâneo, dentro e fora da Igreja. Por razões humanitárias até, para que nos possamos entender em torno de valores inquestionáveis para a vida de todos os habitantes da Terra.
Mas a encíclica saiu com o título e o tema que sabemos: "Deus é amor." Retomando, esclarecendo e concluindo em termos práticos e programáticos a verdade essencial da vida e doutrina de Jesus Cristo. Recordou-me logo uma história da Igreja Antiga acerca de São João, o apóstolo, contando que nos seus últimos anos só sabia repetir: "Amai-vos uns aos outros, irmãos; amai-vos uns aos outros!" E, a quem estranhava a repetição, esclarecia: "É que todo o Evangelho se resume assim!"
Seja como for, é necessária a Bento XVI uma boa e dupla dose de sabedoria e humildade para nos surpreender desta maneira. Para nos dizer que, tanto teórica como praticamente, não temos outro "programa", quer como comunidade crente quer como concidadãos do mundo.
Claro que o filósofo e teólogo se revela desde a primeira página. O filósofo que ensina a pensar, com uma essencialidade simples que muito poucos conseguem. Esclarecem-se conceitos e termos, conjugam-se autores e referências, caminha-se paulatinamente para a conclusão: o amor só se realiza no dom de si mesmo. O teólogo ilumina este discurso com a figura de Jesus Cristo, fundamento único da acção da Igreja. Parece "fácil", mas também isto é sumamente evangélico, da parte de um Deus que revela os seus segredos precisamente aos simples. E é de grande actualidade, quando de novo aparecem gnosticismos que querem reservar a "salvação" a um restrito grupo de iniciados em "verdades ocultas", que só elas libertariam o espírito...
Mas o carácter programático desta encíclica, que dá o tom ao primeiro ano do actual pontificado, reforça-se com a sua oportunidade apologética. Apologia significa defesa duma causa, da causa cristã no caso. Em vinte séculos, foi efectivada por sábios gregos e latinos, por escolásticos medievais e controversistas modernos. Ciclicamente porém, volta-se ao argumento primeiro: o cristianismo comprova-se pela bondade da sua concretização.
Esta bondade causava estranheza e admiração ao paganismo romano (Bento XVI cita Juliano o Apóstata a tal propósito). Devia abrir as portas da missão europeia na Alta Idade Média (cf. as instruções missionárias de S. Gregório Magno, no final do séc. VI). Representava-se na Baixa Idade Média, quer no campo interno quer já nas relações ecuménicas, com um S. Francisco de Assis (séc. XIII). Causava admiração e recuo aos anticatólicos, mesmo em tempo de "guerras religiosas", quando era testemunhada por um S. Francisco de Sales (séc. XVII). Evidenciou-se, como legitimação social dos crentes, desde os primórdios do movimento social católico, com um Frederico Ozanam, por exemplo maior (séc. XIX). Redescobriu-se no século XX, com figuras como Teresa de Calcutá ou João XXIII, para dar só dois nomes a uma grande multidão.
Coube à lucidez de Bento XVI retomá-la agora - à bondade -, fundada na caridade divina, como única apologia e programa possíveis para o século XXI. E, assim sendo, acabou por falar-nos também da verdade e da beleza de Deus.

Manuel Clemente
Bispo auxiliar de Lisboa; presidente da Comissão Episcopal para a Cultura

Fonte Público

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