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Traição de Judas estava no plano de Deus?
2006-04-14 21:58:44

O nome de Judas é há dois mil anos sinónimo de traição. Mas o discípulo que traiu Jesus por 30 moedas e o entregou às autoridades do Templo de Jerusalém está agora a ser reabilitado pelo grupo de investigadores que divulgaram o conteúdo de um documento escondido durante 1700 anos - um texto gnóstico em que Judas Iscariotes é apresentado como o discípulo predilecto de Jesus, que o entregou a pedido deste, para que a profecia se cumprisse.

A divulgação do Evangelho de Judas abriu a polémica. Não houve, afinal, traição? Judas foi vítima de uma injustiça? O texto foi apresentado como sendo um documento revolucionário, que poderá alterar dois mil anos de história do cristianismo. Mas para vários especialistas o evangelho, apesar de ter uma indiscutível importância histórica, é mais um texto dos muitos escritos por volta do século II pelos cristãos gnósticos (corrente do cristianismo com elementos esotéricos e rejeitada pela ortodoxia) e que confirma a visão do mundo que estes tinham.
"Sim, de algum modo a figura de Judas é "reabilitada" neste texto, porque o seu papel negativo encontra uma explicação positiva. Mas convém dizer que se trata de uma interpretação posterior imaginada no século II d.C. Não se encontra aqui nenhuma informação histórica nova sobre o verdadeiro Judas Iscariotes", disse ao La Croix o professor Rodolphe Kasser, responsável pela tradução do manuscrito do copta.
"O Evangelho de Judas não propõe nada de novo em relação aos elementos históricos sobre Judas ou Jesus", confirma ao PÚBLICO o padre carmelita Armindo Vaz, professor da Universidade Católica. "É uma releitura da acção de Judas a partir do modo de pensar dos gnósticos."
O documento agora divulgado é apresentado na introdução como "o relato secreto da revelação do que Jesus disse em conversa com Judas Iscariotes [...] três dias antes de celebrar a Páscoa".
Na cena principal, Jesus aproxima-se dos apóstolos que estão a celebrar a eucaristia e ri-se deles. Perante o espanto destes, Jesus tenta iniciá-los nas ideias gnósticas - de que o Deus criador deste mundo não deve ser adorado e que os homens devem ascender a um conhecimento superior e ao verdadeiro Deus -, mas eles parecem não o compreender. Com uma excepção: Judas. Este é o único que se levanta e fala com Jesus. "Afasta-te dos outros e eu dir-te-ei todos os mistérios do reino", promete-lhe Jesus. Têm, então, uma conversa privada, na qual Jesus lhe diz que os outros rezam a um deus menor e inicia-o nos "mistérios do reino", nos "segredos que nunca ninguém viu".
Esta existência de duas figuras divinas, uma maior e outra menor, "é a principal razão pela qual este evangelho nunca poderia ser aceite pela ortodoxia cristã", refere Bart D. Ehrman, professor de Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte, citado pelo Washington Post.
Em seguida, Jesus pede a Judas que o ajude a libertar-se do seu invólucro físico. "Tu excederás todos os outros. Pois tu sacrificarás o homem que me veste", diz-lhe. Só a traição e a morte na cruz poderão permitir a Jesus cumprir o seu destino - e o instrumento para isso será Judas. Jesus diz-lhe ainda que será "amaldiçoado pelas outras gerações", mas que acabará "por governar sobre elas".
Há também peritos que consideram que Judas entendia as alusões de Jesus ao "reino de Deus" como uma reivindicação política contra os romanos e, ao entregar Jesus, esperava que este se revelasse como líder político e abrisse caminho ao reino de Deus - o suicídio seria consequência da sua desilusão ao ver Jesus crucificado.
Os quatro evangelhos canónicos do Novo Testamento - Marcos, Mateus, Lucas e João - já indicam que Jesus sabia que ia ser traído por um dos apóstolos. "Um de vós vai trair-me", diz, perante os Doze. O Evangelho de João é particularmente explícito: há um momento, na Última Ceia, em que Jesus pede a Judas: "Faz depressa o que tens que fazer."
Por que é que Jesus não tentou impedir essa traição e agiu como se ela fosse uma inevitabilidade? Há também quem se interrogue sobre se a traição era mesmo necessária, e se os romanos não encontrariam facilmente, sem ajuda, um homem como Jesus numa cidade como Jerusalém era na época. "De certa forma, os Evangelhos já vêem a traição como uma parte misteriosa do plano de Deus", disse ao Washington Post o reverendo Donald Sénior, presidente da União Teológica Católica de Chicago. Sem a morte, a crucificação e a ressurreição, Jesus não poderia revelar-se como filho de Deus.
Por outro lado, o Evangelho de Mateus indica que, depois de entregar Jesus, identificando-o com um beijo, Judas devolveu o dinheiro e suicidou-se, o que parece indicar arrependimento pelo seu acto. Na versão dos Actos dos Apóstolos, S. Pedro conta que ele adquiriu "um terreno com o salário do seu crime, precipitou-se de cabeça para baixo, rebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se espalharam".
Apesar do suicídio, Judas ficou para a história como o traidor. Nas pinturas que representam os apóstolos, ele aparece frequentemente com cabelos vermelhos, nariz adunco - alguns especialistas referem a insistência nas características físicas judaicas - e cara de mau. Foi, aliás, uma figura muito usada para alimentar sentimentos anti-semitas. Judas simboliza o que é visto como a culpa judaica na morte de Cristo, e o facto de o ter traído por 30 moedas é a confirmação do estereótipo do judeu avarento, capaz de tudo por dinheiro. A sua reabilitação agora seria também uma forma de contrariar a ideia de que são os judeus os responsáveis pela morte de Jesus.
O padre Armindo Vaz sublinha, por ouro lado, que "o Evangelho de Judas circulava sobretudo entre grupos de gnósticos cainitas (seguidores de Caim, o filho de Adão e Eva que matou o seu irmão Abel, naquele que foi o primeiro assassínio da História, segundo a Bíblia). "Os cainitas eram os que mais se afastavam da ortodoxia cristã", explica. "E nunca esconderam um certo gozo subversivo na escolha dos seus heróis; veneravam figuras do Antigo Testamento com má reputação, como Caim, Esaú ou os habitantes de Sodoma."
Mas esta nova visão de Judas pode ajudar mesmo os não-gnósticos a compreender a figura de outra forma, admitem alguns estudiosos, como Karen L. King, professora na Harvard Divinity School. Lembrando que os evangelhos canónicos não explicam qual a motivação de Judas para a traição, King acha que com o texto agora divulgado se vê "como os primeiros cristãos podiam pensar que, se a morte de Jesus fazia parte do plano de Deus, então a traição de Judas era também parte do plano divino".

Fonte Público

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