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Sacrifícios dos homens para chegar a Deus
2006-04-14 21:47:43

Passar fome. Ou pelo menos evitar os excessos: carne, salmão, linguado, marisco. Não usar jóias. Evitar o cabeleireiro. Usar roupa mais discreta: saias compridas, calças menos justas, blusinhas simples. Deitar cedo e cedo erguer. Ter paciência para os outros. Dar sem querer receber nada em troca. Ser melhor todos os dias. Estes são apenas alguns dos "sacrifícios" que milhões de católicos em todo o mundo se propõem fazer durante a Quaresma (período de quarenta dias que vai desde a Quarta-Feira de Cinzas até Domingo de Páscoa), recordando assim o sacrifício que Jesus Cristo fez pela humanidade, morrendo na cruz.

Mas há quem vá mais longe. Luís Vieira tem 34 anos, é empresário e pertenceu ao Opus Dei, uma instituição católica fundada por Josemaría Escrivá de Balaguer, e que está geralmente conotada com uma interpretação mais conservadora e rígida do catolicismo. "Na Obra, há quem pratique sacrifícios físicos, nomeadamente quem use cilício (cinto de crina ou lã áspera que se usa como forma de mortificação do corpo e, consequentemente, do espírito). São muito raras as pessoas que o fazem, mas eu decidi experimentar, por curiosidade."

O uso de cilício como forma de mortificação ficou recentemente associado a um lado mais perverso e obscuro da religião. O livro Código Da Vinci, de Dan Brown, apresentava um homem da Igreja, autor de diversos crimes, que usava um cilício que lhe cortava a carne, fazendo-o sangrar, como forma de expiar os seus pecados. Pedro Gil, director do Gabinete de Informação do Opus Dei em Portugal e assessor do vigário regional para Portugal, desmistifica essa ideia: "A irmã Lúcia, a madre Teresa de Calcutá, Paulo VI usavam cilício e disciplinas, formas simbólicas de recordar a Paixão de Cristo." E acrescenta: "Há cristãos, e também fiéis do Opus Dei que beneficiam desse costume, que nem é principal nem encorajado". De resto, conclui, "essa prática tradicional da Igreja nada tem a ver com o rito sangrento de automutilação masoquista que é praticado pelo criminoso protagonista desse best-seller".

Luís Vieira já não pertence ao Opus Dei há cinco anos. Mas quando pertenceu quis ir mais longe e unir- -se, de forma mais física, à dor de Cristo. "É um sacrifício, mas não tem nada a ver com o que é descrito no Código Da Vinci. Quem usa ou usou ri-se ao ler aquilo. O cilício não faz mais do que uma ligeira comichão. Pode apertar-se mais ou menos, mas mesmo muito apertado não faz mais que provocar algum desconforto."

Hoje, Luís Vieira já não se sacrifica desse modo, mas continua, no período da Quaresma, a impor a si mesmo algumas regras: "Não ponho açúcar no café, levanto-me assim que o despertador toca, entre outros pequenos sacrifícios, que são bem mais difíceis do que o cilício. A perspectiva é sempre a mesma: melhorar por dentro, tornar a vida dos outros melhor, sempre com o objectivo de oferecer estes sacrifícios a Deus."

Rosário Luís pensa do mesmo modo. Tem 40 anos, vai à missa todos os fins-de-semana e preocupa-se particularmente com o tempo da Quaresma: "Costumo andar sempre muito arranjada, muito maquilhada, tenho sempre as mãos arranjadas. E, confesso, adoro usar ouro. E habitualmente uso." Porém, é uma mulher diferente a que se apresenta na Pastelaria Mexicana, na Praça de Londres, em Lisboa. Calças de ganga, rabo-de-cavalo, uma única pulseira de tecido, já gasta, do Senhor do Bonfim, Brasil. "Durante a Quaresma, tento evitar a vaidade e qualquer tipo de excesso, seja estético, seja alimentar ou até mesmo a um nível mais íntimo." Rosário Luís embaraça-se, sente-se pouco à-vontade para falar da sua vida sexual com estranhos. "Eu e o meu marido procuramos mesmo não ter relações sexuais neste período."

Durante a Quaresma, Rosário Luís procura ser uma pessoa mais simples, mais recatada, evitando tudo o que lhe dá prazer. "Para algumas pessoas, isto é uma tolice. Para mim faz todo o sentido. Cristo sacrificou- -se e morreu por nós. Acho que os nossos pequenos gestos são uma forma de lembrar o amor de Cristo por nós."

Para o padre e teólogo Joaquim Carreira das Neves, a palavra sacrifício tem uma conotação demasiado negativa. "Sacrifício foi o que Jesus passou. Nós, os homens, os cristãos, devemos viver a Quaresma num clima de reflexão, de meditação, de recolhimento. Pede-se às pessoas que sofram também a cruz de Cristo. É bom que sejam comedidas no co-mer e no beber." E, divertido, acrescentou ainda: "Até porque se co- merem muito e beberem muito não conseguem reflectir, não é?"

A Igreja Católica sugere que pelo menos na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa não se coma carne. E há muitos católicos a cumprir escrupulosamente essa regra. Assim como também há quem cumpra sem sequer saber a razão do sacrifício. "Não como carne porque na Páscoa é mesmo assim"; "É da tradição"; "É o jejum da Páscoa, não sei." Foi desta forma que algumas pessoas justificaram a sua própria abstinência, à saída da missa, na Igreja de Nossa Senhora do Amparo, em Benfica. Carreira das Neves explica que a carne está associada a festa, a abundância, a excesso. "Num tempo em que se faz memória do que Cristo sofreu, deve evitar-se isso mesmo."

O esvaziamento de sentido dos sacrifícios é algo que o padre José Luís Borga lastima: "Se as pessoas não entendem o sentido espiritual de um sacrifício ou de uma renúncia, então não vale de nada. É preciso voltar à razão por que se jejua em todas as religiões. Trata-se de purificar o corpo para purificar a alma. E saber que a qualidade só se alcança com o exercício." O pior, lamenta o padre Borga, é que "a busca da facilidade e do comodismo faz com que sejamos cada vez piores e, ainda por cima, não nos importemos muito com isso".

Não é o caso de Pedro e Marta Calado, casados há dez anos, ambos católicos, do Movimento Comunhão e Libertação: "Todos os anos desejamos viver a Quaresma melhor do que vivemos no ano anterior. E todos os anos, no princípio da Quaresma, fazemos propostas de sacrifícios quaresmais que tentamos cumprir." Os sacrifícios, adianta Pedro, não devem ser nem demasiado difíceis nem demasiado fáceis de cumprir, para que não haja desmotivações ou desistências.

A família Calado vive em Campo de Ourique, em Lisboa. À mesa, pai e mãe agradecem a refeição a Deus, e tentam pôr ordem na inquietação natural dos cinco filhos, que também aprendem a sacrificar pequenos desejos do dia-a-dia. "Nem sempre é fácil explicar-lhes que não vamos comer chocolates nem outros doces, que não vamos jantar um bife com batatas fritas. Guardamos os ovos da Páscoa e ensinamos-lhes que eles nos vão saber melhor mais tarde, que agora temos de nos conter. E eles lá acabam por aceitar."

Sacrificar o corpo e os desejos. Dominar a vontade. Transformar o mau em bom. Sempre com o objectivo de lembrar a Paixão de Cristo.

Fonte DN

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