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A verdade é a base indispensável do amor - Catequese do Cardeal-Patriarca no Domingo de Ramos
2006-04-10 22:42:21

1. O oitavo mandamento da Lei de Deus convida-nos a procurar sempre a verdade e a ser-lhe fiéis nas afirmações e nas atitudes, a encontrar nela a base sólida para o exercício da liberdade, e a luz que ilumina a nossa consciência, tornando-a guia seguro dos nossos comportamentos. Este mandamento que nos chama a viver na verdade é, de certo modo, a síntese de todos os outros, pois só na verdade se pode amar, mais, o amor é a principal expressão da verdade.

Estamos a fazer esta meditação no primeiro Domingo da Paixão do Senhor. O diálogo de Jesus com Pilatos acerca da verdade torna-se interpelação presente. Jesus diz a Pilatos: “todo aquele que é da verdade escuta a Minha voz. Pilatos responde: mas o que é a verdade?” (Jo. 18, 37-38). O próprio Papa João Paulo II reconhece a actualidade desta pergunta. Diz ele: “a pergunta de Pilatos emerge também da desoladora perplexidade de um homem que, frequentemente, já não sabe quem é, donde vem e para onde vai (…); sobretudo o homem já não está convencido de que só na verdade pode encontrar a salvação” .
Poderemos nós responder a esta pergunta de Pilatos? Na nossa cultura ocidental entrecruzam-se duas perspectivas na concepção da verdade: a clássica, sobretudo marcada pelo pensamento helenista, e a bíblica, que nos transmite uma visão religiosa da verdade. Para os gregos, a verdade é o desvendar da realidade através do pensamento e do conhecimento. Este conceito prevaleceu, por exemplo, na compreensão da verdade científica, em que o homem, através da criatividade da inteligência, domina a realidade. As afirmações são verdadeiras se correspondem à realidade conhecida. É certo que, no pensamento helenista, também se admite que a realidade se desvele, emita a sua própria verdade. Aliás, etimologicamente, a palavra “verdadeiro” (a-léthés), significa aquilo que não se esconde. Perante este desvelar-se da própria realidade, a primeira atitude do homem não é de busca, mas de escuta. Isto é real, sobretudo em relação à pessoa humana. A verdade do homem não se investiga, pressente-se e acolhe-se. João Paulo II inicia assim a já referida Encíclica: “O esplendor da verdade brilha em todas as obras do Criador, particularmente no homem criado à imagem e semelhança de Deus. A verdade ilumina a inteligência e modela a liberdade do homem que, deste modo, é levado a conhecer e a amar o Senhor” .
Este último significado da verdade, o sentido profundo de cada ser criado, que ele emite e proclama do mais fundo de si mesmo, e que pode ser acolhido e pressentido pela inteligência humana, aproxima a definição da verdade do conceito de revelação e permite a ponte com a visão bíblica da verdade.

A verdade é revelação
2. Para o povo bíblico a verdade situa-se no contexto de uma experiência vivida, a da Aliança com Deus. É um Deus real, na densidade de uma história de Aliança, que se desvela porque se revela. E ao revelar-se, dá-se a conhecer a Si Mesmo e permite ao homem conhecer-se, porque a sua verdade está contida no desígnio de Deus a seu respeito. Deus é, para o homem, a fonte da verdade, o que não exclui que o homem possa reconhecer a profundidade de si mesmo, marcada por Deus que o criou e o chamou à Aliança. Neste contexto a principal expressão da verdade é a própria Palavra de Deus. “As Tuas palavras são verdade” (2Sam. 7,29). Nos Salmos, a verdade é o elemento fundamental da Palavra de Deus: é irrevogável e permanece para sempre.
A Palavra de Deus inclui a Sua Lei. A verdade é também a compreensão do caminho da vida e da fidelidade à Aliança. Na tradição sapiencial, verdade é sinónimo de sabedoria, isto é, de conhecimento e aceitação do plano de Deus e dos caminhos da fidelidade. “Compreender a verdade” é penetrar no mistério do desígnio de Deus (cf. Sap. 3,9).
Para o crente, a fé é a primeira expressão da verdade, porque é acolhimento e obediência à Palavra de Deus. Aliás em hebraico o vocábulo que significa “verdade” (èmét) tem a mesma raiz do verbo que significa acreditar (aman), o que indica a fé e a fidelidade como principais expressões da verdade. O sentido etimológico destas palavras dá-nos a ideia de firmeza, de solidez e segurança, confiança em alguém que é totalmente digno de confiança. A verdade que me dá firmeza e confiança é a verdade de alguém em quem confio e a quem me abandono, o que situa a verdade no âmbito das expressões do amor. A verdade de Deus para nós é a Sua fidelidade; a nossa verdade para com Deus é o nosso abandono confiante.
Para os cristãos, a verdade é adesão firme à Palavra e solidez na fidelidade. Paulo começa assim a Carta a Tito: “Paulo, servo de Deus, Apóstolo de Jesus Cristo, para conduzir os eleitos de Deus à fé e ao conhecimento da verdade” (Tit. 1,1). E a Timóteo escreve: “Se nos mantivermos firmes, reinaremos com Ele. Se O negarmos, Ele também nos negará. Se formos infiéis, Ele permanecerá fiel, porque não se pode negar a Si Mesmo” (2Tim. 2,13-14). A certeza da fidelidade de Deus é a fonte da firmeza da nossa fé, e da segurança que sentimos na verdade, o que situa a adesão à verdade no âmago da experiência da vida e da salvação.

Jesus Cristo é a nossa verdade
3. Esta é uma afirmação central do Novo Testamento: a verdade está em Jesus Cristo (cf. Efes. 4,21). E São Paulo explicita, a seguir, o conteúdo dessa verdade: “é preciso que abandoneis o vosso primeiro modo de vida e vos despojeis do vosso homem velho (…) para vos transformardes por uma renovação espiritual (4,22). A verdade está em Jesus porque Ele é o caminho da vida e da salvação.
O Novo Testamento nunca identifica a verdade com o Ser divino, perspectiva gnóstica de influência helenista. A verdade manifesta-se na história, pelos caminhos da encarnação, e é revelação da Palavra eterna de Deus. Jesus pede ao Pai para os discípulos: “consagra-os na verdade; a Tua Palavra é a verdade” (Jo. 17,17). A Palavra de Cristo é a verdade, porque é a Palavra que Ele escutou do Pai: “Aquele que me enviou é verdadeiro, e o que aprendi d’Ele, digo-o ao mundo” (Jo. 8,26). “Eu digo-vos a verdade que ouvi de Deus” (Jo. 8,40). Aos judeus que acreditam n’Ele, Jesus diz: “Se permanecerdes na minha Palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos; conhecereis então a verdade e a verdade tornar-vos-á livres” (Jo. 8,31-32).
Deus é, pois, a fonte da verdade e Jesus, que escuta como ninguém a Palavra de Deus, é a sua revelação definitiva e apresenta-se como caminho de vida e de liberdade. É na Sua qualidade de Palavra encarnada que Jesus se identifica com a própria verdade. Na Sua encarnação, “Ele é cheio de graça e de verdade” (Jo. 1,14) e diz de Si Mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vai ao Pai senão por Mim” (Jo. 13,6). A vida é a comunhão na vida divina e o caminho para aí chegar é Jesus Cristo. Por isso Ele é a verdade.
Para os cristãos a verdade está ligada à descoberta do caminho para a Vida. A Palavra de Deus, manifestada plenamente em Jesus Cristo, é que o revela. Acolhê-la na fé é a primeira experiência sólida e firme da verdade. Paulo considera-se “Servo de Deus e Apóstolo de Jesus Cristo para conduzir os eleitos de Deus à fé e ao conhecimento da verdade, ordenada à piedade” (Tit. 1,1). A esta verdade da fé chega-se através da conversão (cf. 2Tim. 2,25).
A verdade é a descoberta do caminho da salvação, o mistério de piedade, de que a Igreja é coluna e garantia. Ouçamos ainda o Apóstolo Paulo na Carta a Timóteo: “É preciso saberes como te deves comportar na Casa de Deus – refiro-me à Igreja do Deus Vivo – coluna e suporte da verdade. Oh, sim, podemos dizê-lo, é grande o mistério da piedade: foi manifestado na carne, justificado no Espírito, visto pelos Anjos, proclamado entre os pagãos, acreditado no mundo, elevado à glória” (1Tim. 3,15-16).
O discípulo de Cristo é um peregrino da verdade, porque o é da vida e da salvação. Alcança-a, seguindo o Senhor. Ela traz à sua vida a firmeza que fundamenta a esperança, a luz que ilumina a consciência e esclarece a liberdade, a humildade de quem aprende e a alegria de quem experimenta a vida, na certeza de que a verdade só se lhe revelará completamente na visão de Deus. A verdade revela o caminho da vida; adere-se a ela com a firmeza e determinação de quem quer viver. Ela é experiência antes de ser compreensão racional, está sempre incompleta e provisória, porque a Vida toca-se, em profundidade, mais pela experiência do que pela compreensão.

A verdade e a liberdade
4. A afirmação de São João, que já referi, que a verdade nos tornará livres, mostra a necessária relação entre o exercício da liberdade, atributo da consciência, e a verdade. Este oitavo mandamento da Lei de Deus é o chamamento a iluminarmos sempre a nossa consciência, no exercício da nossa liberdade, com a verdade do caminho para a vida revelado em Jesus Cristo. João Paulo II afirma: “Se existe o direito de ser respeitado no próprio caminho de busca da verdade, há ainda antes a obrigação moral grave, para cada um, de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida” .
Este é, hoje, um problema de grande actualidade. Que verdade ilumina as consciências, no exercício da liberdade moral? Se por verdade se entender a busca da compreensão da realidade pela inteligência racional, cai-se facilmente numa visão subjectiva da verdade, e numa autonomia individualista da consciência moral. A razão como caminho de verdade não leva, inevitavelmente, ao relativismo individualista da verdade, pois há uma verdade objectiva no ser profundo de cada realidade. Por exemplo, a verdade científica não se compadece com subjectivismos de interpretação. Mas quando se trata de escolher caminhos de vida e discernir a objectividade do bem e do mal, o risco dessa subjectividade é maior, até porque a realidade do homem é complexa e não se capta facilmente pela análise racional.
Ajudar-nos-á reler um texto do Papa João Paulo II: “Atribuíram-se à consciência individual as prerrogativas de instância suprema do juízo moral, que decide categórica e infalivelmente o bem e o mal. À afirmação do dever de seguir a própria consciência foi indevidamente acrescentada aqueloutra de que o juízo moral é verdadeiro pelo próprio facto de provir da consciência. Deste modo, porém, a imprescindível exigência de verdade desapareceu em prol de um critério de sinceridade, de autenticidade, de «acordo consigo próprio», a ponto de se ter chegado a uma concepção radicalmente subjectivista do juízo moral.
Como facilmente se compreende, não é alheia a esta evolução, a crise em torno da verdade. Perdida a ideia de uma verdade universal sobre o bem, cognoscível pela razão humana, mudou também inevitavelmente a concepção da consciência: esta deixa de ser considerada na sua realidade original, ou seja, como um acto da inteligência da pessoa, a quem cabe aplicar o conhecimento universal do bem numa determinada situação e exprimir assim um juízo sobre a conduta justa a eleger, aqui e agora; tende-se a conceder à consciência do indivíduo o privilégio de estabelecer autonomamente os critérios do bem e do mal e agir, em consequência. Esta visão identifica-se com uma ética individualista, na qual cada um se vê confrontado com a sua verdade, diferente da verdade dos outros. Levado às últimas consequências, o individualismo desemboca na negação da ideia mesma de natureza humana” .
Os discípulos de Cristo não podem cair nesta tentação. Se para eles a verdade lhes vem através da Palavra de Deus, é a verdade de Jesus Cristo, caminho para a vida. A dignidade da consciência como lugar da liberdade, supõe esta escuta generosa do Evangelho da vida e o procurar perceber os caminhos da vida e da liberdade, seguindo o Senhor, na experiência da fé. Celebrar a Páscoa é celebrar a vida, momento de tocarmos a verdade do nosso caminho de salvação.

Sé Patriarcal, 9 de Abril de 2006
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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