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Bíblia, literatura e beleza
2006-03-08 22:12:15

Quando Santo Agostinho, no seu De Doctrina Christiana, escrevia que quem folhear a Bíblia «encontrará muitos géneros de locução de tanta beleza», ousava temerariamente equiparar os Livros Sagrados à excelência literária dos textos clássicos, reconhecendo que a qualidade espiritual é também enunciada por uma qualidade estética.

Para Agostinho, a Bíblia era, claro, fonte de experiência religiosa, mas também, e de um modo irresistível, uma escola de escrita e de leitura. O seu século, porém, estava encravado num estreito cânone de beleza: se um jovem quisesse aprender a surpresa e perfeição do estilo devia unicamente beber na tradição retórica ou poética tradicional, que é como quem diz greco-latina. A Bíblia era apenas um suporte religioso. Uma língua de trapos acusada de ‘rusticitas’. As coisas que contava tinham um sentido, mas descritas de um modo irrelevante numa sociedade que se amotinava em torno aos filósofos, aos dramaturgos ou aos tribunos. As palavras de Agostinho falando de «tanta beleza» a propósito da Bíblia representariam, aos ouvidos do seu tempo, não um juízo, mas uma provocação. Hoje não sei bem o que são.
O entendimento da Bíblia, como repertório avulso de verdades, leva a que ainda um grande número de abordagens ao texto bíblico se interesse mais pelas ideias de homem, de alma ou de escatologia, negligenciando as ditas ‘palavras’, isto é, os dados da expressão, muitas vezes considerados como aspectos menores ou estranhos ao estudo de um documento essencialmente religioso. Embora, nos últimos anos, se vá consolidando a verificação de que a verdade bíblica é solidária com o seu suporte estético expressivo, pois fé e linguagem intrinsecamente se reclamam. E esteja a alterar-se uma certa conjuntura intelectual que remetia a Bíblia para o restrito domínio do religioso, esquecendo que a condição teológica da Bíblia é inseparável da sua natureza propriamente literária.
Essa é, aliás, uma exigência da Revelação. Na realidade, quando se olha para a especificidade da experiência religiosa que a tradição bíblica transmite, somos confrontados com a realidade de um Deus que se revela na história. E a economia dessa revelação, como explicita a Dei Verbum, realiza-se por meio de acções e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras manifestam e confirmam as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido.
Para o grande esforço de viragem metodológica que se vive actualmente nas ciências bíblicas, muito tem contribuído o inesperado labor de autores que não começaram por ser teólogos ou exegetas, mas provêm do âmbito dos estudos literários e olham com entusiasmo pela altíssima qualidade da narração bíblica.
Penso em Erich Auerbach, que na sua obra monumental sobre o realismo na literatura do ocidente, distingue apenas dois únicos paradigmas como fundamentais: o da Odisseia e o da Bíblia, dando-se conta que, na economia das narrações bíblicas, há uma profunda intencionalidade artística e uma concepção muito elaborada do real.
Noutra obra de referência dedicada ao estudo da narração, Scholes e Kellog afirmam que o desenvolvimento do mundo interior dos personagens que, por exemplo, nos emociona em Shakespeare ou em James Joyce são, afinal, um elemento de derivação cristã, pois Jesus forçou a sua cultura (em grande medida nossa) a tomar maior consciência da vida interior e a preocupar-se menos com a aparência exterior.
Em “De profundis”, Oscar Wilde dá o seguinte testemunho: «No natal, consegui apoderar-me de um Novo Testamento em grego, e todas as manhãs, depois de ter limpo a cela e de ter polido os pratos, leio um pouco dos Evangelhos, uma dúzia de versículos escolhidos ao acaso. É uma deliciosa maneira de começar o dia. (…) Nós perdemos a naїveté, a frescura e o encanto dos Evangelhos. Ouvimos lê-los demasiadas vezes, e mal demais, e toda a repetição é anti-espiritual. Quando regressamos ao grego, é como se entrássemos num jardim de lírios, depois de sairmos de uma casa estreita e escura».
Nos Evangelhos o escritor encontrava todos os elementos da vida: o mistério, a estranheza, a sugestão, o êxtase, o amor, o apelo à capacidade de espanto que cria aquela disposição de espírito pela qual, e apenas pela qual, sublinha, pode ser compreendido. Por isso, explica ele, aos textos bíblicos se deve tudo: a Catedral de Chartres, o ciclo das lendas arturianas, a vida de São Francisco de Assis, a arte de Giotto, a Divina Comédia de Dante, O Romeu e Julieta e o Conto de Inverno, Os Miseráveis de Víctor Hugo e As Flores do Mal de Baudelaire, os mármores de Miguel Ângelo, a nota de piedade dos romances russos, Verlaine e os poemas de Verlaine.
De facto, basta folhear a Bíblia, mesmo numa mediana tradução, para perceber afirmações como as de William Blake que chamava à Bíblia o grande códice da Arte ocidental, reconhecendo como a navalha tremeluzente do seu brilho continua a iluminar a interminável aventura da criação. Ou Paul Claudel que a considera «o imenso vocabulário», pois nela, e às vezes só nela, se apreende a misteriosa, difícil e interminável arte de nomear. Ou Chagall que designava como «o atlas iconográfico», já que tantas dessas imagens que perfuram o nosso olhar e os nossos sonhos estão aí mergulhadas.
A Bíblia é tudo isso e também aquilo que nem conseguimos dizer, porque é tão difícil, tão diferente dizer uma literatura construída, não o esqueçamos, por poetas anónimos, uma literatura que foi segredada e recitada durante séculos, antes de ser escrita, que é tecida de palavras que solicitam o indizível, e que foram, e que são não apenas a expressão das histórias, mas o rastro de um estremecimento que as atravessa, como um sopro de Deus.

José Tolentino Mendonça, in “Observatório da Cultura”, nº 5.

Fonte Ecclesia

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