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«Recuperar a alegria de viver e o nosso compromisso com o mundo» - Uma reflexão da CNJP na Quaresma de 2006
2006-02-28 22:51:49

1. Apresentação
Este é o primeiro texto público da Comissão Nacional Justiça e Paz, recentemente nomeada para o triénio 2006-08.
Desejamos aproveitar o tempo privilegiado da Quaresma, em que os cristãos são convidados a acolher, de modo particular, a Palavra de Deus e o mistério da salvação, para partilhar, a essa luz, algumas reflexões sobre a nossa sociedade e o mundo em que vivemos, numa época marcada por profundas transformações e riscos que a todos afectam e interpelam.


Em primeiro lugar, dirigimo-nos aos cristãos, suas comunidades e movimentos. Queremos contribuir para que os nossos irmãos e irmãs na fé possam encarar, com lucidez e esperança, o devir, reconhecendo-se como sujeitos da história pessoal e colectiva e não como meros objectos e espectadores.
O nosso segundo objectivo consiste em reforçar as sinergias entre quantos, crentes e não crentes, estão empenhados em deixar neste nosso mundo marcas de mais justiça, solidariedade, verdade, amor e paz.
Não temos a pretensão de apresentar a leitura única ou sequer a mais lúcida e rigorosa. A realidade multifacetada, que caracteriza a nossa existência de mulheres e homens inseridos num tempo e num espaço em mutação, não se compagina com visões unilaterais e pretensamente neutras, mas antes se enriquece com leituras plurais, nomeadamente quando são explícitos os respectivos pressupostos.
A nossa visão do mundo inspira-se na fé em Jesus Cristo e nos valores evangélicos e apoia-se na doutrina social da Igreja católica. Reconhecemos, contudo, que esta visão releva de uma matriz ética comum a crentes de diferentes religiões e a não crentes. Tal nos anima a desejar que a nossa reflexão tenha uma ampla difusão e mereça dos nossos concidadãos e concidadãs um acolhimento de simpatia e boa vontade, que leve ao aprofundamento da universal vocação humana de caminheiros na busca da Verdade e ao maior empenhamento de todos na construção de novas formas de vida pessoal e colectiva a que presidam a Harmonia, a Justiça e a Paz.

2. Contra o pessimismo e o desânimo, recuperar a alegria de viver
Vivemos tempos de turbulência e grande complexidade.
Experimentamo-lo nas nossas vidas pessoais e familiares, nas relações com os outros, no trabalho, na vida política, nas Igrejas; em suma, em todos os quadrantes em que se desdobra a nossa existência como pessoas e como comunidades.
Os valores que julgávamos firmes e as instituições que acreditávamos serem inatacáveis, revelam-se, afinal, de grande fragilidade, ao mesmo tempo que, por ora, se apresenta turvo o horizonte das referências onde assentar os novos pilares da sociedade.
De tal modo o curso dos acontecimentos parece inexorável, que uma primeira tentação a que estamos sujeitos é a de nos sentirmos impotentes para intervir de forma eficaz nos processos de mudança e de baixar os braços, numa expectativa ingénua de deixar correr o rio, sem lhe cuidar das margens. Ou, pior do que isso, cedendo à tentação de reforçar atitudes e comportamentos egoístas, procurando, mesmo sem razão, defender e ampliar, desmesuradamente, poderes e privilégios individuais ou de grupo, descurando os interesses colectivos e o bem comum e menosprezando, descaradamente, a situação dos mais vulneráveis e desfavorecidos.
A frequência com que se invoca a inevitabilidade do devir à escala mundial e se exaltam os riscos da crise económica tem servido para alimentar o comportamento egocêntrico e insano e para desencorajar a procura de caminhos alternativos e de soluções mais humanas face aos novos desafios.
Esquece-se que as crises, desde que devidamente encaradas, podem constituir, também, oportunidades para corrigir o que está mal, para lançar as bases de soluções mais justas e para criar novos dinamismos sociais. Para tanto, necessário se torna fomentar uma atitude positiva de esperança face à vida.
Porém, ao invés do que seria desejável, vem-se gerando e consolidando, na mentalidade corrente, uma cultura de pessimismo e desânimo enquanto, do mesmo passo, se assiste, com grande passividade, a uma demolição devastadora do prestígio de instituições fundamentais em qualquer sociedade democrática.
É nossa firme convicção que, diante desta nuvem de pessimismo e desânimo, todos somos chamados - e os cristãos por razões acrescidas - a assumir a nossa qualidade de seres capazes de orientar a transformação do mundo no sentido de um bem comum.
Se, pelo contrário, nos deixarmos dominar pela ideia de “crise inevitável”, perderemos o gosto e a alegria de viver, adiaremos as medidas de curto e médio prazo que se impõem e correremos o risco de nos vermos confrontados com problemas bem mais sérios no futuro. Em qualquer caso, com tais sentimentos, estaremos deixando fugir o nosso tempo e a não honrar o nosso compromisso com o mundo.
Não basta, porém, que uma ou outra voz se oponha a uma tal atitude, aparentemente tão generalizada, de desânimo. É preciso que o tom de esperança enraizado em cada cristão e cristã ganhe uma dimensão colectiva e assuma expressões concretas no âmbito das famílias, das empresas e das relações de trabalho, do ordenamento das cidades, das escolas e universidades, dos centros de saúde e hospitais, dos serviços públicos, das organizações de solidariedade social, das instituições, das que já existem e daquelas que temos de imaginar e criar para fazer face ás novas necessidades humanas e sociais.
Em tempo de crise, soam mais alto as palavras de Jesus ao paralítico “Levanta-te e anda” (Mc, 2...). Só quando os cristãos tiverem respondido a esta ordem, o mundo poderá saborear o gosto do sal e ver a luz de que devemos ser portadores (Mt 5,13-16).


3. Superar as razões da exclusão social e acabar com a pobreza
No enfrentar dos múltiplos desafios que se nos deparam, não podemos deixar de dar relevo à exclusão social e à pobreza, que continuam a subsistir no nosso mundo de abundância, de progresso material e de conhecimento.
Que existam pessoas – e estimam-se em cerca de dois milhões, no nosso País – com rendimentos insuficientes para garantir um padrão de vida decente é, certamente, uma situação que não podemos tolerar. Antes do mais, por razões de dignidade humana; mas também porque um tão elevado número de excluídos é, obviamente, um factor de tensão e conflitualidade, com inevitáveis consequências para a coesão social e para um desenvolvimento humano e sustentável.
A pobreza e a exclusão social não podem ser vistas apenas à luz fria dos indicadores estatísticos. Por detrás dos números, estão rostos e vidas de homens, mulheres, crianças, jovens e idosos.
Pessoas a quem a falta de recursos monetários, a doença, a precariedade do trabalho e os baixos salários, o reduzido nível de escolaridade, a desintegração familiar e outros factores, não permitem que, por si sós, vençam as barreiras da pobreza e da exclusão.
Pessoas que não encontram habitação digna a preço acessível, ainda que, nas nossas cidades, vilas e aldeias, muitos alojamentos estejam por utilizar.
Pessoas a quem a escola não conseguiu cativar e preparar para a vida.
Pessoas vítimas de exploração no trabalho por parte de alguns empresários sem escrúpulos e de um sistema socio-economico-político que não previne – antes produz – exclusão social.
Pessoas que vieram de outros países em busca de melhores condições de vida, mas que, também aqui, ou não conseguiram singrar ou porque, tendo perdido as raízes dos seus países de origem, não se sentem integradas na sociedade em que vivem.
Pessoas sem abrigo e vivendo da esmola ou do furto.
Pessoas frágeis na sua relação com o álcool, a droga, a promiscuidade, etc.
Pessoas para quem a pobreza é persistente e conhecida desde tenra idade; uma herança que receberam de seus pais.
Pessoas para muitas das quais pobreza significa morte.
A exclusão é um cancro social que importa prevenir e remediar, quanto antes; mas a grande pobreza é, verdadeiramente, uma infâmia intolerável. O combate à pobreza inscreve-se no primeiro dos direitos humanos universais, o direito à vida.
Os estados têm de ser mais responsabilizados pela erradicação da pobreza nos respectivos países. Mas também os partidos políticos, os parceiros sociais e a sociedade civil têm de unir os seus esforços para que a grande pobreza seja, em breve, uma situação do passado, como hoje já sucede com a escravatura ou a pena de morte, na nossa sociedade.
Por seu lado, os cristãos e suas comunidades não podem deixar de se comprometer activamente nesta luta e podem fazê-lo, antes de mais, em três frentes convergentes e complementares:
- acções que procurem levar socorro às vítimas;
- denúncia das causas estruturais geradoras da pobreza;
- apoio e viabilização de propostas que visem a erradicação da pobreza, no nosso País e no mundo.
A universalidade do amor cristão, recentemente sublinhada por Bento XVI na sua primeira encíclica “Deus caritas est”, não consente que nos preocupemos apenas com a pobreza nacional. É imperioso inscrever, no âmbito das nossas preocupações, também a pobreza, a miséria e a fome que atingem, de forma dramática, milhões de homens, mulheres e crianças no mundo de hoje. É urgente e possível reduzir drasticamente essa fonte de morte e indizível sofrimento humano pelo que não temos dúvidas em afirmar que tal se inscreve no “pecado do mundo” de que fala João Baptista.
É urgente acabar com o escândalo da grande pobreza no mundo.
É uma tarefa de todos e de cada um e cada uma de nós.
Os objectivos do Milénio fixados no início de 2000 e que mereceram o compromisso da generalidade dos países da Organização das Nações Unidas apontaram como meta o ano de 2015, para pôr termo às situações mais dramáticas da pobreza. Todavia, os resultados até agora alcançados estão longe das metas estabelecidas. Nem a redução da pobreza monetária, nem os ganhos em saúde, no acesso a água potável ou na escolaridade têm avançado aos ritmos previstos. Tão pouco os governos dos países ricos têm honrado os seus compromissos em relação a este Pacto, não contribuindo com a parcela de rendimento nacional respectivo destinado à cooperação para o desenvolvimento a que se tinham comprometido. Acresce que os países economicamente mais avançados continuam impondo os seus interesses egoístas quer através de algumas das suas políticas nacionais quer nas negociações no âmbito da Organização Mundial de Comércio, reservando para si vantagens e privilégios que prejudicam as economias mais débeis e os milhões de mulheres e homens que vivem em situação de pobreza extrema nos países emergentes.

4. A grande desigualdade é uma afronta à justiça e à boa convivência cívica
Se a pobreza é uma situação extrema a exigir, com urgência, a nossa reflexão e o nosso empenhamento em erradicá-la, também as grandes disparidades de riqueza, de rendimento e de conhecimento não podem deixar-nos indiferentes. É que, por detrás de uma grande desigualdade, está sempre uma injustiça gritante e um funcionamento injusto de um sistema de organização da economia e da sociedade.
Por outro lado, a grande desigualdade de riqueza e rendimento gera fenómenos de indesejável concentração de poder que podem minar os alicerces da própria democracia, é causa de esbanjamento de recursos, e suscita, por emulação, padrões médios de consumo e estilos de vida desequilibrados e desajustados em relação a um padrão de desenvolvimento humano sustentável.
A desigualdade de rendimentos em Portugal não só é, presentemente, a mais alta da União Europeia como evidencia uma tendência de agravamento que se tem acentuado nos últimos anos. Essa desigualdade atravessa grupos sociais, gerações, territórios, categorias sócio-profissionais, sectores de actividade económica.
Nos últimos tempos, os media têm chamado a atenção – e bem – para níveis de remunerações de alguns gestores públicos e privados, que contrastam fortemente com a contenção dos salários que os mesmos preconizam para as suas respectivas empresas e para a economia em geral. São, igualmente, conhecidos alguns indicadores de riqueza, manifestos na compra de automóveis de topo de gama, dispendiosas viagens de férias no estrangeiro, habitações de luxo e condomínios fechados de elevadíssimos encargos. Se não se arrepiar caminho nesta desigualdade crescente, é de esperar um aumento da conflitualidade social e das suas consequências negativas e mesmo dramáticas, e ficará adiado o tão desejado desenvolvimento humano e sustentável que a todos beneficie.
A desigualdade não é apenas um problema individual do injustiçado. Quer nas suas causas quer nas soluções, constitui, sobretudo, um problema da sociedade que a todos interpela.
A esta luz, também nós cristãos, temos de nos reconhecer como parte deste problema, e, em muitos casos, confessarmo-nos culpados por actos e omissões. Porém, porque temos razões de fé e de prática de vida para nos situarmos na primeira linha da defesa activa da justiça e da solidariedade, também devemos deixar-nos reconfortar pela esperança que poderemos abrir novos caminhos de solução. Pela palavra, pelas atitudes e comportamentos nas nossas respectivas esferas de actividade e influência. Pelo nosso empenhamento nas causas comuns portadoras de desenvolvimento e equidade para o nosso País e para a Humanidade. Pela “fantasia da caridade”, na bela expressão de João Paulo II.
A solidariedade é um valor universal, mas ganha um sentido mais profundo à luz do Evangelho.
É uma atitude básica sempre necessária, mas torna-se ainda mais necessária e urgente em tempo de turbulência e de mudança como este em que vivemos.
Na travessia de um tempo de dificuldades, o povo ganha outro ânimo quando vê que todos se sentem co-responsáveis pelo problema e estão empenhados nas soluções. É este o espírito de que a nossa sociedade precisa. Para tanto, são necessários, antes de mais, gestos concretos de quem detém maior poder e responsabilidade quer a nível nacional, quer nos âmbitos local, institucional e empresarial. Mas são igualmente fecundos, e já despontam entre nós, exemplos de iniciativas de base que anunciem, com coerência e perspicácia, tempos novos para a democracia. Pensamos, na economia social nas suas múltiplas vertentes, nas lojas de comércio justo, no micro-crédito, no banco do tempo, no voluntariado em diversos empreendimentos de índole cultural, ecológica e social, empresas de economia de comunhão, nas acções de denúncia do consumismo ou da agressividade do marketing, nas experiências de vida comunitária, etc..


5. Superar o consumismo irresponsável
A influência do marketing, cada vez mais sofisticada e poderosa, vem levando muitas pessoas a adoptar padrões de consumo desproporcionados relativamente ao seu respectivo nível de rendimento, com uma dupla consequência negativa: o endividamento excessivo das famílias, não raro para fazer face a encargos com aquisição de bens que seriam dispensáveis, e a distorções das prioridades na satisfação de necessidades básicas de alimentação, educação, saúde ou segurança. Estamos perante a emergência de uma verdadeira cultura de consumismo com consequências sociais e ecológicas preocupantes que não devem ser subestimadas.
Os grupos mais jovens da população são, em razão da própria idade, particularmente influenciáveis pela acção do marketing, tanto mais quanto, imersos numa cultura dominante de consumismo, não desenvolveram uma estrutura interior de auto-estima suficientemente forte para pensarem e agirem por si próprios e por isso dependem muito dos comportamentos padrões dos seus pares. Pais e educadores têm uma particular responsabilidade na educação das camadas mais jovens da população acerca de um consumo esclarecido, responsável e solidário. Também os grupos de jovens cristãos deveriam prestar a devida atenção a esta problemática.
Dir-se-á que o consumo sustenta a procura e esta é factor que incentiva a produção e o emprego e por isso constitui um esteio necessário ao crescimento económico. Trata-se de uma verdade unilateral, pois oculta outras dimensões da realidade, nomeadamente as seguintes:
- É desejável orientar as opções de consumo para bens que aumentem o bem-estar efectivo e a qualidade de vida dos consumidores, o que nem sempre é assegurado pela publicidade;
- Os gastos em consumo devem ser proporcionados ao nível médio de rendimento de quem consome;
- É de evitar o desperdício e o supérfluo, de modo a respeitar o equilíbrio ecológico;
- O uso do dinheiro, como o de todos os outros recursos, não deve eximir-se ao crivo dos critérios da solidariedade e do bem comum.
Em suma: há que respeitar o princípio de que a economia está ao serviço das pessoas, como frequentemente é recordado nos textos da doutrina social da Igreja.
Por outro lado, a propensão consumista é co-responsável de um outro problema que afecta, muito negativamente, o nosso modo de viver. Referimo-nos aos ritmos de vida stressantes que marcam o nosso quotidiano, sobretudo nas grandes cidades, e que estão associados aos esforços que visam conseguir maiores rendimentos, com vista a consumir mais e alcançar patamares sempre mais ambiciosos de vida material.
Os reflexos negativos desta atitude são visíveis não só na saúde dos próprios como no enfraquecimento e na perda de qualidade das relações intra-familiares, no cuidado com as crianças e no tempo que lhes é dispensado pelos seus pais, bem como na prestação de cuidados aos familiares idosos. Também a vida cívica, política, cultural e religiosa se ressente da falta de tempo e disponibilidade da população.
A este propósito, deixamos algumas interrogações a que só cada um/a poderá responder:
- Será que vale mesmo a pena continuar com estes ritmos de trabalho stressantes? A que bens teríamos de renunciar se optássemos por uma vida de menos stress? E o que ganharíamos em troca?
- Com o progresso material já alcançado, não deveríamos valorizar mais as relações humanas e dar maior prioridade aos bens relacionais e à qualidade da vida pessoal, familiar e comunitária, nomeadamente naqueles casos em que já se ultrapassaram as barreiras do necessário?
- Não será este um tempo oportuno para reorganizarmos a nossa vida por forma a criar condições para a oração e a contemplação?
- Não estaremos, inadvertidamente, a servir o deus dinheiro e a sacrificar-lhe os nossos melhores dons e energias?


6. Um risco de violência que é preocupante
A extensão e severidade da pobreza de uma parte considerável da população no nosso País (cerca de um quinto) associada a uma visível e muito gritante e crescente desigualdade na repartição da riqueza, do rendimento e das oportunidades, estão criando um ethos social potencialmente gerador de tensões e de conflitualidade social. Esta situação espelha-se em todo o território, como atestam as ocorrências dos mais variados tipos de violência.
A situação em bairros periféricos de algumas das nossas cidades é particularmente propícia ao afloramento de manifestações de violência e constitui terreno fértil a que se desenvolvam acções de marginalidade social e criminalidade, para não falar de uma anomia social generalizada existente nesses territórios. A esta realidade não são estranhas as políticas de urbanização que fomentam os guetos na cidade.
A proliferação de armas e o tráfico ilegal das mesmas encontram, neste contexto de violência potencial, um terreno fértil. Trata-se de uma problemática para a qual a sociedade civil só agora começa a despertar. É fundamental sensibilizar mais as consciências acerca dos riscos que a proliferação das armas acarreta e cuidar de forma mais eficiente dos meios para lhes fazer face.
Neste contexto, há, certamente, lugar para uma intervenção social apropriada, mas há que, igualmente, pugnar pelo termo das causas que estão na origem desta situação preocupante. Entre estas, cabe destacar o tipo de habitat em que sobrevivem certas populações ou as dificuldades de acesso a um trabalho estável e devidamente remunerado. Importa, igualmente, cuidar da melhoria das escolas e serviços de saúde locais bem como dos demais meios de promover a inserção social.
Gostaríamos, ainda, de sublinhar a importância de que se reveste uma acção concertada entre todos os parceiros sociais e participada pela própria população no sentido da requalificação urgente das áreas de habitat degradado, acção essa que vise prevenir os riscos de violência e criar as indispensáveis sinergias de inclusão social.

7. O dever de acolher os imigrantes
Os recentes acontecimentos em Ceuta e em Paris, vieram chamar a atenção da opinião pública europeia para o grave problema da imigração no continente europeu.
No primeiro caso, os governos dos países membros e a própria Comissão europeia foram confrontados com um fluxo potencial de imigrantes africanos que, a manterem-se as actuais condições de extrema pobreza em África, será dificilmente controlável, sem recurso a formas extremas de repressão a que, certamente, a maioria dos europeus não deseja recorrer, pois isso seria negar ideais básicos de liberdade, justiça e solidariedade, que constituem pilares de uma filosofia política e de uma cultura consolidadas ao longo de séculos. Importa re-afirmar que o recurso a tais meios repressivos merecem inteira reprovação à luz dos valores cristãos e dos direitos humanos.
No interesse de todos, haveria que encontrar modalidades de uma cooperação privilegiada entre a União Europeia e os países da bacia do mediterrâneo que abrisse caminho no sentido de um maior desenvolvimento humano e sustentável dessa região. Por outro lado, não pode ignorar-se a situação dramática da região sub-sahariana e remover, urgentemente, os bloqueios externos e internos ao seu desenvolvimento. Também neste espaço geográfico os europeus detêm particulares responsabilidades, pois muitos desses novos países foram antigas colónias cuja exploração muito contribuiu para a prosperidade económica da Europa.
Os acontecimentos de Paris, por seu turno, vieram pôr em foco os desafios do acolhimento e da integração dos imigrantes que chegam à Europa, sem esquecer as segundas gerações, que, embora tendo já nascido na Europa, não conseguem alcançar aqui um patamar de cidadania plena. Oxalá aquilo que se passou em Paris e em outras cidades do centro europeu nunca venha a suceder entre nós. Mas, sejamos realistas, se verdadeiramente o quisermos evitar, deveremos empreender um redobrado esforço no sentido de uma integração melhor dos imigrantes que vivem entre nós.
Essa integração passa, antes de mais, pela defesa dos direitos em matéria laboral e de segurança social.
O imigrante não pode continuar a ser uma presa fácil de alguns patrões sem escrúpulos e sujeito a uma sobre-exploração porque não tem documentos, não conhece as leis do País e as suas estruturas administrativas, ou porque se exprime mal em português e não tem amigos nacionais que lhe dêem apoio.
Diferentes entidades públicas e privadas, entre as quais algumas radicadas em comunidades cristãs têm desenvolvido uma acção meritória neste domínio de acolhimento aos imigrantes e será muito importante que continuem servindo estes irmãos mais desfavorecidos, os estrangeiros que procuram no nosso País superar as condições de grande pobreza em que seriam obrigados a viver se permanecessem nos seus países de origem. Os riscos que correm nos seus percursos até ao destino revelam bem que não se trata apenas de busca de uma vida mais confortável mas da mais elementar sobrevivência.
As paróquias, sendo a presença territorializada da Igreja, estão particularmente bem colocadas para uma ajuda de proximidade, a começar pelo apoio na obtenção de documentos de identidade e/ou autorização de permanência, e bem assim para fomentarem o incentivo à inserção social e à convivência cívica de todos. É uma acção que deve ser assumida por todos os membros da comunidade pois esta não pode ficar alheia ao acolhimento devido ao imigrante.
Analogamente, a problemática geral da regulação do fluxo das migrações e da inserção dos imigrantes nos países de acolhimento deve merecer a nossa atenção e empenhamento.
Ainda que, no limite, fossem adoptadas medidas fortemente repressivas (sempre reprováveis, à luz de valores cristãos), tal não estancaria o afluxo de imigrantes e poderia mesmo encorajar o reforço de redes de tráfico de pessoas. Há, pois, que procurar soluções que satisfaçam critérios de equidade e de respeito da dignidade da pessoa humana. Há que, promover uma mentalidade que valorize o acolhimento e o bom relacionamento humano, entre nacionais e estrangeiros, que favoreça a convivialidade e a solidariedade, que estime e incentive a multiculturalidade.
A mudança de mentalidade em relação aos imigrantes é um desafio individual e colectivo.
A este propósito, ocorre-nos deixar algumas pistas de reflexão.
- Como encaramos esta realidade que continuará com forte intensidade e de difícil regulação enquanto subsistirem grandes desequilíbrios das capacidades sociais e económicas entre os países?
- Consideramos os imigrantes, que vivem entre nós, como nossos irmãos e reconhecemos que o seu contributo é útil à nossa sociedade? Ou tendemos, mais ou menos conscientemente, a culpá-los da insegurança, do desemprego e da degradação das condições laborais?
- As nossas preocupações não deveriam conduzir-nos à procura de caminhos para enfrentar a origem destes males e para a procura de soluções compatíveis com a caridade evangélica? Caminhos que passam pela melhor partilha dos bens da terra, pela aceitação da diferença, pelo zelo no cumprimento das leis laborais, pelo apoio a normas justas que regulem os fluxos migratórios, pela ajuda empenhada ao desenvolvimento dos países mais pobres.


8. Pela dignificação do trabalho humano
Não obstante o progresso material a que temos assistido nos últimos 20 anos, a que não é alheio o fenómeno da globalização da economia, temos de reconhecer que o processo em curso tem sido acompanhado por um conjunto de consequências muito desfavoráveis para boa parte do trabalho humano as quais não podem passar despercebidas a quantos se preocupam em colocar a economia ao serviço da pessoa humana, do seu bem-estar individual e colectivo.
Em primeiro lugar, porque a desterritorialização dos processos produtivos e a competitividade alargada e em condições muito desiguais, que a globalização proporciona, dão origem a situações de desemprego de difícil absorção, já que a re-estruturação das economias com criação de novos empregos é lenta e a re-qualificação dos trabalhadores exige, igualmente, tempo de adaptação a novos empregos.
O desemprego elevado é hoje um dos fenómenos sociais mais preocupantes na nossa sociedade.
Não ter emprego ou outra modalidade de actividade profissional remunerada constitui, só por si, uma privação séria para a população em idade activa já que se traduz em insuficiência de rendimento, uma vez que as prestações compensatórias ficam aquém das remunerações potencialmente auferidas. Acresce o facto de que o emprego é uma via importante de realização pessoal, de socialização e de inserção social; e, bem assim, constitui um dos factores primordiais de alicerce da auto-estima e do status social.
A falta de emprego está na origem de muitos comportamentos desviantes, assim como de depressões e outras doenças do foro psíquico e mental.
A falta de emprego gera tensões sociais e conflitualidade e mina as raízes da pertença social, seguramente um dos pilares mais sólidos de uma sociedade democrática sã.
Por outro lado, na medida em que induz aceleração nos processos de inovação tecnológica cada vez menos intensivos em mão de obra, a globalização dá lugar a pressões no sentido de maior precariedade no vínculo laboral e gera maior tolerância com a degradação das condições de trabalho.
Esta é uma situação que presentemente se vive entre nós e merece ser denunciada, nas suas múltiplas manifestações: horários de trabalho excessivamente longos, abuso do recurso a horas extraordinárias, salários baixos, desleixo nas condições de higiene e segurança dos trabalhadores nos locais de trabalho, perda de direitos inquestionáveis, utilização indevida de formas contratuais precárias, etc..
A este propósito, cabe aqui fazer apelo não só a quem detém o poder de legislar mas também à Administração Pública responsável pela aplicação das normas legais e aos tribunais a quem compete sancionar atempadamente o respectivo incumprimento.
É igualmente fundamental apelar à consciência dos empresários e gestores e, em geral, à opinião pública para que se promova um maior respeito pela situação de quem trabalha e pelos direitos dos trabalhadores.
Vivemos tempos de transformações profundas nas economias nacionais e mundiais que exigem novos instrumentos de regulação deste processo evolutivo.
Estão desencadeadas iniciativas interessantes no plano mundial.
Entre elas, cabe saudar as que visam estender os direitos do trabalho a todos os países. É importante prestar-lhes atenção. Mas que tal não nos dispense de, à escala local e nacional, procurar, com urgência, caminhos de maior criatividade na criação de novas oportunidades de emprego digno e justamente remunerado para todos os desempregados que procuram trabalho.
A situação do desemprego juvenil é, a nosso ver, particularmente preocupante. Muitas vezes com elevadas qualificações universitárias, os jovens que não têm acesso ao primeiro emprego estão a desperdiçar um recurso que, por sua natureza, não pode ser acumulado para ser utilizado mais tarde e, pior ainda, estão privados de continuar a progredir na sua respectiva área de conhecimento.
Acresce que, sem emprego ou com emprego precário, como podem estes jovens formar novas famílias, arranjar casa, fazer projectos de futuro?
Frustração para o jovem desempregado, o desemprego juvenil constitui também uma séria disfunção do ponto de vista da organização da sociedade e das suas potencialidades de desenvolvimento.
Neste quadro de reflexão, queremos deixar algumas interrogações:
- Quando tantas pessoas estão desempregadas, não se há de questionar, em alguns casos, o duplo (e, ás vezes, triplo!) emprego, ou o recurso excessivo ao trabalho extraordinário?
- Não seria possível, a nível local, incluindo as próprias paróquias, cuidar de ajudar os desempregados a criar para si próprios novos empregos em actividades consideradas úteis do ponto de vista da colectividade ou mesmo em áreas de produção de bens e serviços, sobretudo em áreas desconsideradas pelo mercado?
- Não é chegada a hora de reflectir seriamente numa repartição mais justa do emprego?
Há pessoas que pensam que, na sociedade globalizada em que nos encontramos, são as empresas multinacionais, o mercado mundial, as instituições financeiras e as grandes organizações económicas regionais e mundiais as únicas instâncias que podem ter uma palavra a dizer na concretização do processo de globalização em curso e nada resta aos mais fracos, pessoas, governos e povos, senão a pura submissão ou a revolta. Mas não é assim. Os governos devem continuar a ser responsabilizados por políticas que visem o bem comum, designadamente promovendo estratégias de desenvolvimento humano e sustentável e adoptando adequados esquemas de protecção social que permitam enfrentar as crises (desemprego e outras) com os menores custos sociais e humanos possíveis.
Consideramos que é também uma ocasião para apelar a uma maior exigência de participação da sociedade civil – cidadãs e cidadãos de todas as idades e condições sociais, empresas, associações, instituições, grupos informais - e a que cada um assuma o papel que lhe cabe na “construção da cidade”. Nas sociedades democráticas, é cada vez mais necessário que a democracia representativa seja complementada e estimulada pela democracia participativa.
Apelamos às comunidades cristãs, paróquias e movimentos a que acolham estas problemáticas no âmbito das suas reflexões e preocupações pastorais correntes.
A recente encíclica do Papa Bento XVI, Deus caritas est, oferece um ensinamento claro sobre a importância das obras sociais da Igreja e de como estas devem responder às novas necessidades da sociedade, com eficiência e dando testemunho do amor cristão.


9. Em defesa dos bens públicos
Não se pode ignorar a importância que o acesso a bens públicos – água e saneamento básico, serviços de saúde ou de educação, segurança social e assistência em situações de particular necessidade – tem para largas parcelas da população. Fazem parte integrante de um modelo social, até há poucos anos, incontestado.
Hoje, porém, no mercado europeu e global, assiste-se a uma forte pressão no sentido de tentar captar para o mercado a oferta de tais bens, ainda há pouco da responsabilidade de sector público. É o que sucede, por exemplo, no domínio do abastecimento de água potável às populações, o que já motivou fortes protestos por parte de alguma opinião pública mundial que vê no negócio privado da água uma propensão ao seu encarecimento e uma dificuldade acrescida de acesso a esse bem primordial por parte das populações mais carenciadas.
O mesmo se poderá dizer em relação aos cuidados básicos de saúde ou à educação, os quais caberá ao Estado, directa ou subsidiariamente, garantir em igualdade de oportunidades para todos os cidadãos e cidadãs, sem prejuízo das responsabilidades da sociedade no seu todo.
Porque se trata de opções que muito têm a ver com a justiça e a solidariedade, pensamos que, neste domínio, cabe aos cristãos uma particular responsabilidade no sentido de defender a manutenção deste tipo de bens de interesse geral na esfera não lucrativa bem como pugnar sempre por uma maior eficiência na sua provisão e uma maior equidade no respectivo acesso.


10. Confiança nas instituições e reabilitação da política.
Não ignoramos que, veiculada pela situação económica e social, e não só, existe também, entre nós, uma séria crise política que se concretiza em várias frentes: o desinteresse da maioria dos cidadãos e cidadãs pela vida política e partidária, indiferença crescente em relação a actos eleitorais, desconfiança generalizada relativa às instituições democráticas, suspeição de corrupção fácil e impune por parte de funcionários e políticos, etc..
É imperioso reverter este panorama, eliminando os seus possíveis fundamentos.
Em particular, é urgente credibilizar a justiça no nosso País, tornando-a mais célere e responsável.
É, igualmente, indispensável que o acesso à justiça esteja ao alcance de todos os cidadãos e cidadãs, independentemente do seu nível de rendimento e capacidade de pagamento de custas e de honorários a advogados.
Que, entre nós, por nenhuma razão, possa prevalecer a convicção, tão generalizada quanto deprimente, de que a justiça só está ao alcance dos mais afortunados.
Ultimamente têm vindo a público factos que indiciam que entre o poder político e o poder económico se estão entretecendo relações pouco transparentes. Não se compreende, por exemplo, que aqueles que deixaram cargos públicos de relevo venham, quase sem interrupção, a ser contratados como administradores e gestores de empresas, mormente quando estas se situam precisamente em sectores por aqueles anteriormente tutelados. A opinião pública tem denunciado estas situações, mas, por ora, sem consequências visíveis. Há, obviamente, que legislar nesta matéria, mas é necessário, sobretudo, que a consciência colectiva as considere eticamente reprováveis e encontre os instrumentos adequados para as inviabilizar na prática.
Não deverão as nossas comunidades cristãs estar vigilantes neste domínio e empenhadas em contribuir para uma maior exigência no que se refere a comportamentos éticos na política e na condução dos negócios?
E que responsabilidade particular não têm os políticos e gestores que se reconhecem como mulheres e homens de fé em Jesus Cristo?


11. A quaresma – um tempo oportuno de conversão e de esperança
A Quaresma é tempo oportuno para olharmos para as mudanças em curso e para o modo como elas nos atingem e nos desafiam. Devemos fazê-lo, não a partir das nossas visões preconceituadas e dos nossos interesses individualistas e egoístas, mas deixando-nos guiar pela luz do Evangelho e situando-nos sempre num horizonte de esperança.
Ao terminar esta nossa reflexão sobre aspectos relevantes do nosso viver em comum, em tempo de turbulência e de risco, queremos, ainda, acrescentar algumas interrogações que ajudem a uma reflexão pessoal e comunitária, neste tempo que deverá ser de revisão de vida, discernimento e conversão:
- Como encaramos a mudança? Com temor ou com esperança?
- Será que, nós próprias/os seguimos um modelo de vida consumista e nos sentimos desanimados/as só porque não podemos continuar com o ritmo de consumo a que nos habituámos?
- Não será esta uma oportunidade para rever, se for caso disso, os critérios básicos em que assenta o nosso estilo de vida? Se não estivermos atentos, o consumismo cria em nós o sentimento de que tudo é necessário, ao ponto de sacrificar-lhe valores importantes, tais como a vida familiar e a qualidade das demais relações humanas, para podermos consumir mais, ter mais coisas.
- Em que está assente o nosso conceito de felicidade?
- Assumimo-nos como sujeitos activos deste mundo em transformação ou resignamo-nos a ser apenas sujeitos passivos, privilegiados ou vítimas?
- Será que a magnitude dos desafios nos deixa conformados com a aparente inevitabilidade dos processos em curso e indiferentes ao cortejo das suas vítimas, ou, pelo contrário, nos move na busca de novas alternativas e nos leva a mobilizar as nossas energias no sentido de aproveitar as potencialidades criadas para abrir caminho à justiça, à solidariedade e à fraternidade, em todos os espaços de proximidade em que nos movemos, mas sem esquecer o vasto Mundo e a construção de uma cidadania mundial a que apelava João Paulo II?

Neste esforço de humanização, os discípulos e discípulas de Cristo, suas comunidades e movimentos não estão isolados.
Mais do que nunca, importa reconhecê-lo e, através do diálogo e da concertação, encontrar plataformas de cooperação que libertem as sinergias de que o nosso mundo globalizado carece para não cair em novas barbáries.
Queremos um mundo de todos e para todos!
A Palavra de Deus que a Igreja oferece à nossa reflexão, em cada dia e em cada Domingo da Quaresma, é uma interpelação sobre o fundamental, sobre aquilo que realmente interessa para sermos felizes.
Para construirmos um mundo justo e fraterno, um mundo de paz.
Para captarmos o verdadeiro sentido de Páscoa, a passagem da morte à vida, através do caminho estreito do amor e do serviço.
Para realizarmos a nossa própria Páscoa.

Março 2006
Comissão Nacional Justiça e Paz

Fonte Ecclesia

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