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Caricaturas “boomerang”
2006-02-15 23:45:24

A cultura do “mundo” islâmico é diferente da cultura do “mundo” cristão, judeu, budista ou hindu. O “mundo” muçulmano é portador de uma história e tradição únicas, inseparáveis de um território social específico. A religião islâmica - no “mundo” islâmico - e o conceito de Estado ou Nação - no “mundo” islâmico - estão ligados e são interdependentes na definição de valores e liberdades, do poder e dos poderes. Radica no mesmo Deus, no mesmo Livro e no mesmo Profeta de todos os islâmicos, mas faz da “palavra última” do Alcorão a “charia” intocável e insubstituível, sob a qual tudo pode ser legitimado. Apontar o dedo a um sistema construído como aliança inquestionável, na qual milhões de pessoas se entregam honesta e abnegadamente, é não compreender o verdadeiro fenómeno do “mundo” islâmico.

Como acontece em todas as redes de poder e de cultura, o “mundo” islâmico está sujeito a manipulações entrincheiradas num “habitat” ideológico, religioso e social dominante. A guarda da tradição no “mundo” islâmico assume a dimensão do “sagrado” como reacção a um outro “mundo” que a globalização vai revelando de forma deturpada.
Os “fundamentalistas” do “mundo” islâmico - “guerreiros” até ao extremo do terror - não se consideram terroristas, mas “soldados” generosos numa guerra sem tréguas, atiçada em nome de um “todo” e de um “tudo” que explica a sua própria existência. Quanto mais o “mundo” ocidental reagir em dinâmicas de confronto – seja militar ou cultural - pior. É como um pêndulo de acção/reacção.

Não é possível acabar com visões “extremistas”, embora seja possível contê-las com um cuidadoso diálogo que, antes de mais, começa na necessidade de o “mundo” ocidental se interrogar sobre as suas próprias incoerências. Não se trata de uma guerra de civilizações, mas da mais velha guerra da humanidade entre “ricos” e “pobres”, cuja táctica de parte a parte é uma equação com inúmeras e tremendas variáveis. Um jogo perigoso que, a médio prazo, pode desencadear um bloqueio civilizacional sem precedentes.

As últimas investigações jornalísticas sobre a polémica das caricaturas de Maomé revelam manipulações orientadas por pequenos grupos para “internacionalizar” a ofensa ao “mundo” islâmico. Mas, se por um lado, convém não menosprezar a reacção da silenciosa maioria islâmica que, imune e não se revendo na reacção violenta e manipulada, se sente igualmente ofendida com as ditas caricaturas, por outro, não esqueçamos a “manipulação” oportunista – e possivelmente impulsionadora - de certos “nacionalismos” xenófobos, subterraneamente activos na Europa “desenvolvida”.

“Respeitar o Islão não é respeitar a intolerância no Islão” (Miguel Gaspar, Diário de Notícias), mas é importante perceber a complexidade do Islão. Independentemente do contexto social e cultural, “o religioso é demasiado importante para que as pessoas façam dele caricaturas” (Eduardo Prado Coelho, Público) e, neste caso, o “caricaturado” foi o próprio profeta “revelador” de Alá.
A Europa secularizada tende a esquecer a essência que clarifica os contextos. A cultura ocidental “é cada vez mais um universo onde tudo é possível e estamos à merçê da deriva sem limites” (Eduardo Prado Coelho).

Já depois da 2ª Guerra Mundial, no final de certos totalitarismos e no dealbar de outros, o filósofo letão Isaiah Berlin, pensador da liberdade - que Virginia Woolf disse assemelhar-se a um “swarthy portuguese jew” - resumiu a liberdade em dois conceitos. Defendeu que a integridade da liberdade depende da aprendizagem com os erros da pretensa defesa da liberdade. Negativamente, a liberdade está ausente de obstáculos. Positivamente, a liberdade implica condições.

Na crise em espiral das caricaturas de Maomé, o secretário geral da ONU, Kofi Annan, apelou ao “bom senso” e “responsabilidade” por não perceber como “depois de estalar a violência, os jornais continuaram a divulgar as caricaturas, contribuindo para inflamar”.
O pluralismo e a justiça – condições essenciais para a liberdade de expressão - começam na consciência subjectiva do “bom senso” e terminam na objectiva “responsabilidade” comum. Se o “mundo” islâmico está culturalmente longe de assimilar esta reflexão, o “mundo” ocidental passou ao lado, num deslumbramento cego e arriscado.

Joaquim Franco
Jornalista
opiniao@sic.pt


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