paroquias.org
 

Notícias






Carta aberta aos cardeais na eleição de um novo Papa, Hans Küng
2005-04-19 14:44:12

Caros Cardeais,

Após um extremamente longo pontificado de João Paulo II, reúnem-se para eleger um novo Papa. Esta é uma hora decisiva para a Igreja Católica do século XXI, comparável à convocação do Concílio Vaticano Segundo no século XX.
Com o meu antigo colega de Tübingen, Joseph Ratzinger, hoje Perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sou provavelmente o último teólogo do Concílio ainda em actividade plena. Há quarenta e cinco anos, em 1960, escrevi um livro, «The Council and Reunion», que facultou orientação a muitos daqueles que participaram no Concílio. De modo que espero, caros irmãos, como teólogo de longa data que, apesar de todas as suas críticas às políticas do falecido Papa sempre foi leal à sua igreja, poder partilhar convosco algumas reflexões. Penso que podem ser importantes para a eleição.


No Vaticano II fizemos uma distinção entre os problemas externos da igreja e os seus problemas internos. A maioria dos católicos partilhará provavelmente o meu ponto de vista de que a linha de João Paulo II com o mundo mais amplo deve ser prosseguida. O próximo Papa também deve, certamente, defender os direitos humanos, promover a paz no mundo e erigir pontes com outras religiões. Mas como estão as coisas dentro da igreja?
As conversas francas com pastores e fiéis nas vossas dioceses ter-vos-ão deixado conscientes que o estado interno da nossa igreja é pior do que era há trinta anos. Foi possível notar repetidamente uma contradição entre o compromisso do Papa para com o mundo mais amplo e a falta de empenho com os direitos humanos, a paz e o diálogo com a comunidade da igreja. Claro que o empenhamento no mundo exterior é mais fácil, visto que se pode falar à consciência dos outros, enquanto que o empenhamento na igreja, que apela à autocrítica e à busca de consciências, tem possivelmente consequências desconfortáveis. O próximo Papa só poderá convencer as pessoas se iniciar a reforma consigo mesmo e com os que o rodeiam. A «reforma na cúpula e nos membros» era uma exigência que já se fazia em finais da Idade Média.
Mas que tipo de Papa precisa a nossa igreja nestes tempos? Os vossos pensamentos estão certamente centrados nessa questão. Sintetizaria todos os requisitos em cinco critérios. Não são fortuitos. São orientados pelo Novo testamento, pela grande tradição católica e pelo Concílio Vaticano segundo.

Um Papa harmonizado com o Evangelho

A situação actual é grave: existe na maioria dos países um rápido declínio não apenas na ordenação de padres, mas também na identificação da geração mais nova e das mulheres com a igreja, e certamente na influência da igreja no público em geral. Nesta altura, precisamos de um Papa que se oriente fundamentalmente pelas exigências do Evangelho de Jesus Cristo, e consequentemente dedique atenção às necessidades dos homens e mulheres actuais.
Ninguém pretende recuar aos tempos de uma igreja medieval papal quando um monarca papal, governando teocraticamente, pensava ter o domínio absoluto sobre as igrejas apostólicas do Leste e as igrejas do Ocidente, sobre as consciências dos homens e mulheres, e podia até ditar a moralidade aos governos mundiais.
Apesar de todo o seu discurso e viagens, o Papa Wojtyla não conseguiu afirmar os seus pontos de vista rigorosos, em especial na moralidade sexual e marital. Tiveram a oposição da esmagadora maioria dos católicos e dos Parlamentos nacionais (por exemplo, na Polónia). Todas as declarações e sanções disciplinares do Vaticano, todas as pressões, quer abertas quer dissimuladas, pouco ou nada conseguiram. Pelo contrário, a campanha de «evangelização» fomentou ansiedade quanto ao imperialismo espiritual de Roma e contribuiu tacitamente para a rejeição da menção do nome de Deus e até do Cristianismo como factor cultural no preâmbulo da Constituição Europeia.
Com a vossa grande experiência, saberão que os bem organizados encontros papais não conseguiram esconder o facto de nem tudo estar bem na nossa igreja. As fileiras de sacerdotes reduzem-se e há poucos recém-chegados para as preencher; em breve, o mundo de língua alemã deixará de ser a única área em que quase dois terços dos paroquianos não têm pastor ordenado nem celebrações regulares da eucaristia. O celibato do clero está a desvanecer-se, e a sua credibilidade foi profundamente abalada pelos escândalos pedófilos que se estenderam dos Estados Unidos à Áustria.
O «primeiro grande pedido» que lhes faço é em nome de muitos: elejam um Papa que não se apegue à lei da igreja medieval mas se oriente pela bússola do Evangelho, que aponta para a liberdade, misericórdia e bondade no tratamento de todos os problemas pendentes. Para que o próximo Papa ganhe a confiança do povo, terá que ser uma autoridade não apenas formal, jurídica e institucional, mas uma autoridade pessoal, pertinente e carismática.
Numa palavra, caros irmãos, elejam um «Papa harmonizado com o Evangelho», que actue simplesmente como o próprio Senhor agiria, de quem se diz: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» (João, 14.6).

Um bispo colegial

Estamos longe do século XIX, quando em Roma se pensava que era preciso repelir o liberalismo moderno e o socialismo com centralização e burocratização. Nessa altura, foi feita uma tentativa para restabelecer o paradigma medieval e de Contra-Reforma da igreja face à modernidade. Recordo muito claramente as muitas conversas que tive com teólogos e bispos durante o Concílio Vaticano segundo. Concordavam que o centralismo, o legalismo e o triunfalismo eram opções erradas. Tudo isto seria ultrapassado no Concílio.
Com a vossa grande experiência, sabem que houve muitas vezes ofensas ao espírito de colegialidade ao longo das décadas passadas. Os bispos foram obrigados a seguir a linha do Vaticano, à custa da sua credibilidade perante e o seu clero e o seu povo.
Assim, o «segundo grande pedido» que lhe faço é: elejam um Papa que:
- restaure a colegialidade do Bispo de Roma com os outros bispos que existiram na igreja a partir dos primeiros séculos e foram solenemente confirmados pelo Concílio Vaticano segundo;
- não entenda unilateralmente a igreja como um aparelho de poder, excluindo o diálogo e a verdadeira democracia, mas como uma comunidade de fé, como o povo de Deus, com o Papa e os bispos ao seu serviço;
- portanto, não entenda os cargos da igreja como «governo sagrado» ( = hierarquia), mas como serviço (= diaconia) aos homens e mulheres;
- não se apresente como único governante, mas como principal bispo, incorporado no Colégio de Bispos, ao serviço de todo o ecumenismo;
- não espere obediência cega nem aponte a linha a seguir pelos bispos, mas os encare como «bons pastores» com a sua própria responsabilidade, em associação com o Papa, identificando-se antes de mais com o povo das suas dioceses e dos seus países no espírito de Jesus Cristo.
Numa palavra, caros irmãos, elejam um «bispo colegial». Porque, «Só têm um Senhor, e são todos irmãos» (Mateus, 23.8).

Um pastor favorável às mulheres

Reverendos cardiais: desde o Concílio Vaticano Segundo que ficaram bem conscientes que um governo da igreja eficaz não pode tratar metade da raça humana, a metade feminina, como membros de segunda classe da igreja que devem submeter-se silenciosamente aos homens.
Felizmente, os tempos do patriarcado já lá vão, quando as mulheres aceitavam silenciosamente que competia aos homens que detinham cargos na igreja definir a «sua» natureza e o «seu» papel na igreja. Hoje, com as mulheres cristãs a emanciparem-se, são elas próprias que definem o seu papel, e também na igreja. O domínio dos homens e a supressão das mulheres já não podem ser legitimados na igreja actual, mesmo em nome do deus Pai e do homem Jesus.
Karol Wojtyla, com a sua grande veneração por Maria, que foi admirado por algumas mulheres católicas tradicionais, deparou com o repúdio enérgico de milhões de mulheres modernas. Por um lado, porque considerava que o seu uso da contracepção as tornava parte da «cultura da morte» e, por outro, porque declarou que o seu género as tornava incapazes para cargos superiores. Proclamou mesmo que isso era a vontade de Deus e uma doutrina infalível. Ao longo do seu pontificado, cada vez menos mulheres aceitaram que os homens no poder as tratassem como meros objectos para receberem ordens.
Assim, o «terceiro grande pedido» que lhes faço, em nome dos inúmeros homens e mulheres da nossa igreja é: elejam um Papa que:
- rejeite o sexismo e o patriarcado na igreja e a divisão dos membros da igreja em duas classes;
- garanta o direito dos teólogos a manifestarem livremente os seus pontos de vista;
- se coíba de dar veredictos moralizadores sobre problemas complexos como a contracepção, o aborto e a sexualidade;
- respeite o direito dos que exercem a casar, um direito claramente garantido no Novo Testamento e na igreja do primeiro milénio, e que repense a proibição discriminatória de casamento dos padres que remonta apenas ao século XI;
- não exclua permanentemente e sem misericórdia os divorciados que voltam a casar de tomarem parte na eucaristia;
- reconheça o direito das mulheres religiosas à sua própria maneira de viver e vestir;
- permita a ordenação de mulheres que, à luz do Novo Testamento, é urgentemente necessária para a nova situação actual;
- corrija a encíclica proibitiva de Paulo VI, Humanae vitae, sobre a pílula, que afastou inúmeras mulheres católica da sua igreja, e reconheça explicitamente a responsabilidade pessoal dos cônjuges pelo controlo de natalidade e pelo número de filhos que têm;
- encare, portanto, seriamente as diferentes capacidades, vocações e carismas da igreja, importantes para erigir uma comunidade de mulheres e homens em parceria.
Numa palavra, caros irmãos, escolham um «Papa favorável às mulheres». Porque, «em Cristo, não há macho nem fêmea» (Gálatas, 3.28).

Um mediador ecuménico

Reverendos cardiais: mesmo aqueles de vós que vêm de países com uma maioria de católicos compreendem que desde o Concílio Vaticano segundo nem mesmo a Igreja Católica Romana se pode colocar acima das outras como a «única igreja que traz a salvação», como a única verdadeira igreja de Jesus Cristo. E certamente conhecerão católicos que já não aceitam que as igrejas se coloquem aparte de outra devido a certas diferenças doutrinais e que os cristãos devam discriminar contra outro, mesmo ao nível familiar, por pertencerem a confissões diferentes.
Para muitos cristãos, não há lugar para:
- uma arrogância confessional em relação ao ministério no que se refere às acções dos clérigos protestantes e anglicanos (homens e mulheres e, sobretudo, na eucaristia); uma igreja que encara um casamento a unir duas confissões como transgressão; que encara a participação activa numa eucaristia protestante como crime religioso; e que pretende uma proibição estrita dos serviços ecuménicos ao domingo;
- uma rejeição confessional da amizade que já não é compreendida nem aceite pela grande maioria dos cristãos, católicos e protestantes, o que certamente lhes parece ofender o espírito de Jesus. Pois sabe-se que Jesus convidou toda a gente para a sua mesa, incluindo os que foram excluídos pela sociedade devota.
Durante o seu longo pontificado, João Paulo II fez repetidamente gestos de boa vontade. E mostrou ser possível aprovar uma declaração conjunta católica-luterana sobre a Doutrina da Justificação. Mas muita gente ficou desapontada pelo facto de as palavras e gestos não terem sido seguidos por verdadeiras acções ecuménicas. Pelo contrário, devido à constante reivindicação de poder de Roma, as relações com o Conselho Mundial das Igrejas deu poucos frutos, e as relações com a Igreja Ortodoxa Russa foram afectadas pelos esforços de missão da Igreja Católica Romana.
Donde, o «quarto grande pedido», feito também em nome de muitos amigos de outras igrejas cristãs: elejam um Papa que:
- faça seus os resultados das comissões de diálogo ecuménico e os coloque energicamente em prática;
- reconheça finalmente os ministérios protestante e anglicano, como há muito foi recomendado pelas comissões ecuménicas e como já é prática em muitos lugares;
- revogue os repúdios que datam do tempo da reforma e da excomunhão de Lutero;
- acolha e promova a hospitalidade eucarística e as várias formas de colaboração prática que há muito vem sendo timidamente praticadas em muitos grupos e comunidades.
Numa palavra, caros irmãos, escolham um «mediador ecuménico» como Papa. Pois o Evangelho de João diz, referindo-se a todos os crentes: «Rezo para que possam todos ser um» (João, 17.21).

Um garante da liberdade e abertura na igreja

Pelo menos desde o Vaticano II que passou o tempo em que podíamos dizer que a nossa fé cristã era a única religião legítima na Terra, e podíamos difamar a fé dos outros como produto da ignorância, decadência e pecado. Há duas coisas incompatíveis com o espírito de Jesus de Nazaré, que mostrou simpatia, amor mesmo, por muitos não judeus:
- o colonialismo europeu que, em nome de Cristo destruiu deliberadamente outras religiões e culturas, sobretudo na América Latina e em África;
- O imperialismo romano, que tentou controlar igrejas cristãs (apostólicas) e jovens há muito estabelecidas, impondo-lhes uma lei canónica que era em muitos aspectos questionável e uma liturgia fortemente regulada, em vez de apoiar a igreja na sua manutenção, administração e disseminação.
Em muitas das suas peregrinações, João Paulo II procurou encontros com os representantes de outras religiões. As orações pela paz em Assis, que iniciou em 1986 e 2002, foram sinais importantes disto. No entanto, permitiu que uma declaração doutrinal que aprovou afirmasse que os não cristãos viviam «objectivamente em situação altamente defeituosa». Isso ofendeu muitos não cristãos e afectou grandemente a credibilidade do Papa. Por isso, para além das suas declarações sobre o judaísmo e o Holocausto, não fez avançar o diálogo crítico e auto-crítico com as religiões do mundo de qualquer forma que mereça referência.
Donde, o «quinto grande pedido» que lhes faço, para nos darem um mundo melhor e mais pacífico: elejam um papa que:
- com todos as suas pretensões à verdade não reclame o monopólio da verdade;
- queira não só instruir as outras religiões, mas também aprender com elas, com as suas tradições de estética espiritual, litúrgicas, éticas, teológicas e filosóficas, sem quaisquer confusões sincretistas;
- confira às igrejas nacionais, regionais e locais uma autoridade apropriada, de modo a puderem moldar o seu estilo de vida e organização à sua própria responsabilidade;
- encare seriamente e responda mesmo às perguntas desconfortáveis (como as relacionadas com a explosão populacional, o controlo de natalidade e a infalibilidade da igreja);
- que, deste modo, represente não a primazia absolutista romana mas uma primazia pastoral (segundo o modelo de João XXIII), renovada à luz do Evangelho e do empenhamento da igreja.
Numa palavra, caros irmãos, elejam um «garante da liberdade e abertura» da igreja. Porque, «Onde está o Espírito, há liberdade» (2 Coríntios. 3.17).

Conclusão

Em contraste com o tempo de João XXIII e do Concílio Vaticano segundo, em amplas partes da nossa igreja actual impera o pessimismo e o derrotismo. Isso enche-me de preocupação, visto que toda a minha vida como teólogo trabalhei para as pessoas puderem «conservar esperança na nossa igreja mau grado as grandes desilusões». Agora, cabe-vos «fortalecer a esperança das pessoas» e fazer sair a igreja da crise de esperança elegendo um novo Papa. Muita gente, dentro e fora da Igreja Católica espera que a meada das reformas seja desatada, que os velhos problemas estruturais sejam abertamente discutidos e seja encontrada uma solução – quer pessoalmente pelo Papa, pelo Sínodo dos Bispos ou, finalmente, por um Concílio Vaticano terceiro.


Por Hans Küng, 14 Abr. 2005

*Nascido há 75 anos na Suíça, Hans Küng é considerado um dos maiores teólogos católicos contemporâneos e também um dos mais polémicos. Preside actualmente à Fundação Ética Global e é consultor das Nações Unidas

Fonte Visão

voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia