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A Páscoa e a sua manifestação - Homilia do Cardeal-Patriarca no Domingo de Ramos
2005-03-22 06:18:26

1. Na História da Salvação, todos os acontecimentos salvíficos, que assinalam a intervenção de Deus em favor do seu Povo, são acompanhados da sua manifestação, que revela como toda a acção de Deus é concretização do seu amor salvífico. É difícil ao povo deixar comover o coração, se não percebe o mistério de amor que as acções concretas exprimem.

É por isso que os acontecimentos salvíficos precisam de ser interpretados, para que sejam recebidos como intervenção amorosa de Deus. Os factos e a interpretação que lhes revela o sentido e os enquadra no desígnio salvífico de Deus, são constitutivos dos acontecimentos da Salvação. A palavra dos Profetas tem essa função de desvendar a insondável intenção divina. Toda a palavra profética que constitui o Novo Testamento é interpretação de Jesus Cristo, sobretudo da sua morte e ressurreição, a mais radical expressão do amor de Deus pelos homens. Essa revelação profética é continuada pela palavra da Igreja, ao longo dos tempos, levando os homens de cada geração e de todas as latitudes e culturas, a sentirem-se amados e salvos por Deus, em Jesus Cristo.
Por vezes são outros acontecimentos que desvelam a mensagem profunda do acontecimento central.
O mistério do nascimento de Jesus em Belém é revelado pelo aparecimento do Anjo aos pastores e pela adoração dos Magos. A própria Palavra revelada oferece-nos o acontecimento e a sua “epifania”, isto é, a sua manifestação. Encontramos o mesmo ritmo revelador na liturgia deste primeiro Domingo da Paixão: o sentido salvífico da morte de Cristo começa a ser revelado por um outro acontecimento: a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, que nos dá a chave principal da interpretação salvífica da morte de Cristo e a situa no projecto salvífico de Deus: ela é a plena realização da missão messiânica de Jesus, como Ele a concebia, a missão do Servo sofredor, que oferece a vida para resgate da multidão. A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, aclamado como Messias-Rei, é a “epifania” do Calvário. Há uma convergência de mensagem entre a aclamação daquela multidão em festa: “Hossana ao Filho de David! Bendito o que vem em nome do Senhor. Hossana nas alturas”, e a conclusão da meditação sobre a Paixão de Cristo, feita por Paulo na Carta aos Filipenses: “E toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor” (Fil. 2, 11).

2. A manifestação do sentido salvífico da Paixão de Cristo, através da entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, abre-nos a uma perspectiva importante para a evangelização em todos os tempos e circunstâncias: o anúncio do sentido da morte de Jesus Cristo só é captado de modo a comover os corações, se se enquadrar num quadro cultural que o torne facilmente compreensível. Para os habitantes de Jerusalém, oprimidos pelo estrangeiro ocupante, o que agudizava as veleidades libertadoras e escatológicas, a expectativa messiânica oferecia esse quadro cultural. O Messias era esperado como libertador e rei de Israel, que introduziria o Povo escolhido na fase definitiva do seu triunfo. Encenar uma entrada messiânica em Jerusalém, com um “guião” oferecido pelos anúncios proféticos, era uma linguagem fácil de entender. Mas esta cena mostra-nos também que o acontecimento revelador não se pode separar do acontecimento revelado. Aquela entrada triunfal não vale por si; é, antes, uma sugestão do sentido da Paixão de Cristo, o Messias segundo a tradição do “Servo de Yahwé”. E a passagem de um acontecimento ao outro tem a exigência do acontecimento central, a morte de Cristo e a aceitação de um Messias sofredor, com a renúncia a todos os triunfalismos fáceis e imediatos que isso significa. E esta passagem não era fácil, como o veio a mostrar a atitude, não só daquela multidão, mas dos próprios discípulos de Jesus. Quem ficou prisioneiro daquela exaltação messiânica, acabou por ver em Jesus o Messias-Rei, de cariz político imediato, perspectiva messiânica que Ele próprio tantas vezes rejeitou e que só agrava o escândalo da sua morte humilhante. A história bíblica ensina-nos que os acontecimentos se iluminam uns aos outros e que é preciso captar qual é o acontecimento central, para cuja compreensão converge o sentido de todos os outros, mesmo os sofrimentos do homem e as atribulações da História. E nós sabemos que o acontecimento central para a libertação da humanidade é, para todos os homens e em todos os tempos, a morte e a ressurreição de Cristo. É por isso que celebramos a Páscoa.

3. Que acontecimentos ou realidades humanas poderão, no nosso contexto cultural, abrir as inteligências e os corações para o sentido humano e libertador da morte de Cristo? Toda a cultura, e também a actual, tem as suas recusas e oferece aberturas à compreensão desse mistério. Qualquer encenação actual do triunfo messiânico de Jesus seria, certamente, insignificativa, embora as categorias bíblicas sejam elemento integrador da nossa cultura ocidental. Que factos e dinamismos da nossa realidade actual poderão ajudar a abrir os corações ao mistério da morte de Cristo, permitindo perceber e exclamar que Ele é verdadeiramente Senhor, manifestação do amor de Deus por nós?
O primeiro sinal a sugerir o sentido da Palavra de Jesus, podemos encontrá-lo, sem dúvida e neste momento que passa, na pessoa de João Paulo II e na sua “paixão”, que vive com a alegria da entrega da própria vida, numa unidade clara com todo o seu ministério e missão. Ele percebeu que contribui tanto para a evangelização e para a salvação do mundo, neste apagamento doloroso da sua vida, enfraquecida pela idade e pela doença, como nas suas viagens triunfais pelas cinco partes do mundo. Esta compreensão da fecundidade apostólica do sofrimento e do apagamento da vida, só é possível à luz da Páscoa e abre-nos para a compreensão da misteriosa fecundidade da morte de Cristo. Também por isso viveremos esta Páscoa numa comunhão especial com o Santo Padre.
Mas lancemos o nosso olhar para tantos exemplos de dom da própria vida em favor de outros irmãos, marcados pelo sofrimento, pela doença, pela miséria ou atingidos por catástrofes naturais. Em todas essas circunstâncias continuam a agigantar-se exemplos de sacrifício da própria vida, para salvar os outros, factos que não podem ser isolados em si mesmos, em análises limitadas de circunstância; é preciso enquadrá-los na grandeza da humanidade, fecundada pela morte de Jesus Cristo.
E se visitássemos os hospitais, onde se encontra concentrado o drama do sofrimento humano, ou os lares para idosos, onde a velhice e a doença são terra onde germina dificilmente a alegria? E as prisões, onde ao desgaste da culpa se acrescenta a humilhação da pena e a perda da liberdade, alterando profundamente o horizonte da vida? E os desempregados, pais e mães de família, que perderam o direito à dignidade de construírem com o seu trabalho a felicidade da sua família? E as vítimas inocentes de guerras, de terrorismos e conflitos, para cujos mecanismos e causas nada contribuíram?
Enquanto a sociedade, como um todo, passar ao lado, indiferente a todo esse sofrimento, centrada, apenas, no aumento de riquezas e comodidades, fazendo da perda do poder de compra o seu principal problema, dificilmente os corações se abrirão à esperança libertadora de que a morte de Cristo é sinal eficaz.

4. A narração da Paixão do Senhor mostra-nos que nela se concentraram todos os desvios da humanidade; a traição de um discípulo e amigo, que O entrega a troco de dinheiro; a dispersão assustada dos discípulos, que na prática, fogem e O abandonam; a mentira dos testemunhos, a ambiguidade dos objectivos, a perplexidade e fraqueza de quem julga, a crueldade abusiva na execução da pena, não respeitando a dignidade do condenado. Olhemos o nosso mundo, não ignoremos as traições e os que estão dispostos a tudo por dinheiro, ou a indiferença dos amigos na hora da provação, ou as incertezas da justiça humana. Olhemos o nosso mundo de frente, porque também essas fraquezas fazem parte da sociedade que queremos transformar; olhemo-lo, não para condenar, mas para compreender, à luz do drama humano, como continua a ser importante que um homem, Jesus Cristo, tenha suportado tudo isso, tenha oferecido e vencido tudo isso, no amor. E que a generosidade da sua morte continua a ser o maior testemunho do amor de Deus por nós. E se alcançarmos, num mesmo olhar, todos os nossos irmãos que sofrem e a Ele, o nosso Irmão sofredor, teremos aberto o nosso coração à luz da Páscoa, anunciando a morte do Senhor, proclamando a sua ressurreição, até que Ele venha.

Sé Patriarcal, 20 de Março de 2005
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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