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A Eucaristia e a Verdade da Igreja - Catequese do Cardeal-Patriarca no 5º Domingo da Quaresma
2005-03-16 19:15:07

1. Todos os homens são peregrinos da verdade. Eles buscam aquela luz, que pode ser compreensão ou intuição, que lhes revele o sentido do seu próprio mistério, o sentido da vida e da morte, a busca da felicidade, a razão de ser de todas as lutas e ideais, o juízo sobre o bem e o mal, a beleza do amor.

Nesta busca da verdade há uma questão primordial que se põe a todos: onde procurá-la e encontrá-la? Só nos dinamismos do próprio homem, reduzindo a verdade às descobertas da inteligência e às decisões da consciência? Procurá-la fora do homem, na cultura, na história, nas ideologias? Ou Deus, fonte da vida, é também, para o homem, a fonte da verdade? Nesse caso a verdade coincide com a descoberta da vida e a busca da verdade é, afinal, a busca de Deus e da contemplação do seu rosto. E quando a procura da verdade coincide com a busca de Deus, vamos descobrindo como é importante e decisivo o termos sido criados por Ele, pois essa luz que procuramos, Ele deixou-a impressa, pronta a brilhar, irradiante de sentido, em cada uma das suas criaturas. “O esplendor da verdade brilha em todas as obras do Criador, particularmente no homem criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gen. 1,26): a verdade ilumina a inteligência e modela a liberdade do homem, que, deste modo, é levado a conhecer e a amar o Senhor. Por isso reza o Salmista: «Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz da Vossa face» (Sal. 4, 7)”[1].

A Eucaristia é mistério de luz[2]
2. É uma afirmação carregada de consequências existenciais na vida da Igreja. Trata-se de afirmar que aquela busca da verdade encontra um momento de resposta no mistério da Eucaristia, porque nela pode brilhar para a Igreja a luz de Cristo. Jesus designou-se a si mesmo como “a luz do mundo” (Jo. 8,12). A “luz verdadeira que a todo o homem ilumina” (Jo. 1,9). Ao participarem na sua Páscoa, os cristãos deixam-se inundar por essa luz, tornam-se “luz no Senhor” e “filhos da luz” (Efes. 5,8).
Esta luz de Cristo é o esplendor da luz de Deus Criador, gravada no coração de cada homem. Como diz João Paulo II, “a luz da face de Deus resplandece em toda a sua beleza no rosto de Jesus Cristo, «imagem do Deus invisível» (Col. 1,15), «resplendor da sua glória» (Heb. 1,3), «cheio de graça e de verdade (Jo. 1,14): Ele é «o caminho, a verdade e a vida» (Jo. 14,6). Por isso, a resposta decisiva a cada interrogação do homem, e particularmente às suas questões religiosas e morais, é dada por Jesus Cristo, mais, é o próprio Jesus Cristo”[3].
A verdade, a Igreja encontra-a em Jesus Cristo, deixando-se iluminar pela sua luz. “Jesus Cristo, «luz dos povos», ilumina a face da sua Igreja, que Ele envia pelo mundo inteiro a anunciar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc. 16,15). Assim a Igreja, Povo de Deus no meio das nações, ao mesmo tempo que permanece atenta aos novos desafios da história e aos esforços que os homens realizam na procura do sentido da vida, oferece a todos a resposta que provém da verdade de Jesus Cristo e do seu Evangelho”[4].

A Eucaristia ilumina o coração
3. A Eucaristia é o momento privilegiado de abertura do crente a esta luz de Cristo, a luz de Cristo ressuscitado que brilha, para nós, no fulgor da acção do Espírito Santo. E a realidade do homem que pode ser penetrada por esta luz que brota do sacramento pascal, é o coração, entendido aqui como o mais íntimo do homem, a sua interioridade, a sua consciência. A luz de Cristo, que irradia da Eucaristia, desdobra o coração humano, fá-lo desabrochar, reencontrando mensagens de verdade e de amor nele semeadas desde a Criação e que fizeram dele imagem de Deus.
A luz da verdade que Cristo encerra e irradia para nós, na Eucaristia, não é exterior ao homem. Faz parte da sua intimidade, desde o acto criador de Deus e a comunhão com Cristo leva o homem a reencontrar-se com ela, captando-lhe a sua plenitude objectiva, na própria verdade de Jesus Cristo. Porque Ele é plenamente homem e na sua ressurreição inaugura a plenitude da humanidade, revela ao homem a verdade profunda do seu coração.
Este desabrochar do coração é o acto redentor a acontecer em nós, porque o pecado, embora tendo-a ofuscado, não apagou completamente essa luz da verdade no coração do homem, como escreve o Santo Padre na Encíclica “O Esplendor da Verdade”: “Nenhuma sombra de erro e de pecado pode eliminar totalmente do homem a luz de Deus Criador. Nas profundezas do seu coração, permanece sempre a nostalgia da verdade absoluta e a sede de chegar à plenitude do seu conhecimento. Prova-o, de modo eloquente, a incansável pesquisa do homem em todas as áreas e sectores. Demonstra-o ainda mais a sua busca do sentido da vida. O progresso da ciência e da técnica, esplêndido testemunho da capacidade da inteligência e da tenacidade dos homens, não dispensa a humanidade de pôr-se as questões religiosas últimas, mas antes, estimula-a a enfrentar as lutas mais dolorosas e decisivas, que são as do coração e da consciência moral”[5].
Este desabrochar do coração, é um desabrochar para o amor. A luz da verdade desabrocha, então, não tanto como certeza teórica, mas como exigência de amor e de bem. Só o amor compromete e realiza definitivamente a liberdade. Participando na generosidade radical de Jesus Cristo que oferece a própria vida, por amor, a verdade brilha no coração do crente como exigência de dom, de oferta, de serviço e de louvor. O coração humano manifesta-se como um coração bom, que anseia comungar e partilhar e descobre no desejo de amar a sua verdade. A graça própria da Eucaristia não é esclarecer dúvidas ou resolver incertezas; é, antes, deixar libertar o coração, que se torna o “coração novo” prometido nos Profetas, capaz de amar e de conhecer o Senhor, o Deus Vivo.
O que acontece na Eucaristia é o desabrochar da consciência moral, onde todas as concretizações vitais do mistério que celebramos ganham a urgência da fidelidade. Nunca, como na Eucaristia, percebemos a linguagem do Apóstolo Paulo quando diz que a salvação vem pela fé e não pela Lei e as suas obras. A comunhão com Cristo, na Eucaristia, é a plenitude da experiência da fé, e só aí radica a exigência da caridade em todas as suas expressões. A santidade de vida brota da Eucaristia como a água viva brota da nascente.

A verdade e a caridade são a mesma realidade
4. Esta é uma questão da sabedoria cristã, ou seja, da inteligibilidade da existência cristã: a harmonia entre a verdade e o amor. O que é que é mais importante no Cristianismo, a proclamação e a defesa da verdade ou o amor com as suas exigências e loucuras? A resposta só a encontram aqueles que perceberam, no mais íntimo do seu coração, que, em Jesus Cristo, a verdade e o amor são a mesma realidade, que brota da comunhão vital com Cristo. E a Eucaristia é o caminho para essa descoberta e o sacramento dessa harmonia. O mesmo Senhor que afirmou “Eu sou a Verdade” também nos disse que é a Vida. Ele, a Palavra eterna, o Verbo do Pai, só é verdade para nós quando nos unimos a Ele na comunhão de amor. Quando nos unimos a Ele nessa união vital, brota para nós uma luz nova sobre Deus, sobre o homem, sobre o caminho da vida. Para o cristão, a verdade é a luz que brilha no rosto de Cristo ressuscitado e nos faz ver de novo todas as coisas.
Esta é a luz da fé, que nos garante não nos desviarmos da Verdade. O Concílio Vaticano II afirmou que o Povo de Deus, guiado pelo sentido da fé, nunca se desviará da verdade, de tal modo que esse “sensus fidei” se torna critério e referência na explicitação da Verdade vivida e acreditada pela Igreja[6]. Ora na Eucaristia só a luz da fé nos conduz à verdade que é vivida e experimentada na densidade do amor. Na Eucaristia, a glória de Cristo, que se manifestou na luminosidade da transfiguração e da ressurreição, “está velada”. O sacramento eucarístico é o “mistério da fé” por excelência. E, todavia, precisamente através deste sacramento da sua total ocultação, Cristo torna-se mistério de luz, mediante o qual o fiel é introduzido na profundeza da vida divina”[7]. A Eucaristia, sacramento do amor, revela-nos a dimensão mística da verdade cristã. A verdade é recebida e acolhida como revelação de Deus, que é sempre uma expressão do seu amor infinito.

Quando digo que a Eucaristia é momento de revelação, não quero sugerir que Deus pode revelar coisas novas. A sua revelação está completa no dom do seu Filho Jesus Cristo, Palavra eterna de Deus. Mas essa plenitude da revelação de Deus, em Jesus Cristo, pode ser acolhida, por nós, na Eucaristia, como surpresa amorosa de Deus. Se a Eucaristia é a actualização da Páscoa, que se torna presente em cada celebração, porque não o há-de ser da revelação de Deus? Aí podemos mergulhar, sempre de novo, no insondável abismo do coração de Deus.
A Eucaristia, enquanto momento de revelação da verdade e do amor, começa na maneira como acolhemos, em cada celebração, a Palavra de Deus. Nesse contexto, a proclamação da Palavra tem uma especial densidade de amor pessoal de Jesus Cristo. “É o próprio Cristo que fala quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura”[8]. E isto é possível, porque a assembleia eucarística é congregada pela fé e pelo amor a Jesus Cristo. O Senhor que procuramos, para com Ele celebrar a Páscoa, abre-nos o seu coração e revela-nos a Palavra do Reino e dos caminhos da vida.
Esta dimensão mística da verdade, graça própria da Eucaristia, não é alheia a todos os outros caminhos de recepção e proclamação da verdade revelada. Ela ajudará os catequistas, os pregadores, os teólogos, a nunca isolarem a verdade do amor e a não caírem em visões abstractas da verdade, que podem ser acolhidas como doutrina, mas não desencadeiam as exigências da caridade. Toda a luz de Cristo que, na Eucaristia, ilumina o nosso coração, vem carregada de sugestões para a prática da caridade, tanto como adoração de Deus, como amor dos irmãos. Só a verdade de Deus, que resplandece no rosto eucarístico de Cristo, nos impede de confundir a caridade com as expressões naturais do amor, tantas vezes desfiguradas pelo pecado; só o amor exigirá de nós que não façamos da verdade revelada uma afirmação fria de princípios, mas a luz que nos revela os caminhos da caridade e nos conduz ao amor.

Sé Patriarcal, 13 de Março de 2005
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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[1] Veritatis Splendor (V.S.), n. 1
[2] Mane Nobiscum Domine, n. 11
[3] V.S. n. 2
[4] Ibidem
[5] Ibidem, n. 1
[6] Lumen Gentium
[7] M.N.D. n. 11
[8] Ibidem, n. 12

Fonte Ecclesia

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