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A Eucaristia, presença de Cristo no meio do seu Povo - Catequese do Cardeal- Patriarca de Lisboa no 4º Domingo da Quaresma
2005-03-10 18:01:29

1. A Eucaristia é designada, na tradição cristã, como “sacrum convivium”, sagrado convívio, santa convivência, designação que exprime a mais consoladora certeza da nossa fé: o Senhor está connosco, Ele é um Deus connosco. A nossa caminhada de fé é feita com Ele, seguindo-O; as nossas lutas são travadas com Ele, pois só a sua presença nos torna fortes; as nossas dores são vividas e oferecidas na sua cruz; as nossas alegrias encontram a expressão mais íntima no seu amor.

O desejo da convivência com Deus é o mais profundo anseio do povo bíblico. O Povo de Deus é um Povo que pertence a Deus e ao qual Deus pertence. Sentiram-no forte nas batalhas, fiel nas promessas, magnânimo na misericórdia, ciumento no amor. “Vós sereis o meu Povo e eu serei o vosso Deus” (…). Enquanto povo nómada, construiu no meio do acampamento uma tenda especial, a tenda da reunião, onde Moisés e Aarão podiam falar com Deus face a face, como um amigo fala ao seu amigo (cf. Ex. 25,8). E uma vez entrado na Terra Prometida, o Povo construiu o Templo, onde o santuário, o “santo dos santos”, era a morada do Deus vivo.

O crente israelita aprende a reconhecer a presença de Deus no meio do seu Povo, ao ritmo dos acontecimentos da história: Deus está presente onde age em favor do seu Povo, que o reconhece como Deus amigo e protector. A expectativa messiânica, categoria central da esperança de Israel, exprime o anseio de uma presença total e permanente de Deus. O Messias é anunciado como o “Emanuel”, o Deus connosco.

Ao reconhecerem em Jesus Cristo o Messias prometido e esperado, os cristãos acreditam que Jesus é o próprio Deus feito homem, forma inesperada e inaudita dessa presença total e permanente de Deus no meio do seu Povo. Jesus reconhece a validade deste desejo e a importância dessa presença. Como que a tranquilizar os discípulos, é a última palavra que lhes dirige antes de subir ao Céu, resumindo e reassumindo todas as promessas feitas desde Abraão: “Eu ficarei convosco, para sempre, até ao fim do mundo” (Mt. 28,20). Definitivamente a Igreja é o novo Povo de Deus, a que Cristo pertence, fazendo da sua peregrinação no tempo e na história, um caminho de intimidade e de fidelidade. A força da Igreja reside nesta santa convivência com Deus, em Jesus Cristo.

São muitas e insondáveis as expressões desta presença de Cristo no meio do seu Povo: o dom permanente do Espírito Santo, a sua Palavra, a sua habitação no coração de cada crente, que Ele envolve no amor da Santíssima Trindade. Entre todas estas expressões da presença de Cristo, ressalta a Eucaristia, que as reúne a todas. Para sublinhar esta centralidade da Eucaristia enquanto expressão da presença de Cristo na Igreja, a Tradição apelidou-a de “presença real”, expressão que os Santos Padres nos ajudam a entender: “Uma presença que se diz real, não por exclusão, como se as outras formas de presença não fossem reais, mas por antonomásia, enquanto, por ela, se torna substancialmente presente Cristo completo, na realidade do seu Corpo e do seu Sangue. Por isso, a fé pede-nos que estejamos diante da Eucaristia com a consciência de que estamos na presença do próprio Cristo. (…) A Eucaristia é mistério de presença, mediante o qual se realiza de modo excelso a promessa que Jesus fez de ficar connosco até ao fim do mundo”[1].

Uma presença amorosa que gera comunhão
2. A presença de Deus no meio do seu Povo não é uma presença qualquer. Revela-o a Ele, como mistério de amor, manifesta o seu desígnio, que é um desígnio de amor. Não se trata, por parte de Deus, da omnipresente vigilância do senhor e dono e não pode ser, para nós homens, um “deus à mão de semear”, a quem recorremos quando precisamos. É uma presença amorosa que só se torna viva para aqueles que aceitam entrar na voragem de uma aliança de amor. Diria que todas as expressões da presença de Deus, sempre reais por parte de Deus, só se tornam verdadeiramente reais para nós quando as aceitamos como desafio de amor. O Senhor morto e ressuscitado, realmente presente na Eucaristia, silencioso e talvez abandonado, só se transforma em presença devoradora quando alguém se deixa devorar pelo seu amor. Só nesse momento a Eucaristia se afirma como o momento em que o tempo e a eternidade se encontram, na única expressão da dimensão definitiva da vida, o amor de Jesus Cristo.

Já no Antigo Testamento a presença de Deus era vista assim, como um mistério de aliança, tantas vezes comparada pelos profetas à intimidade do amor esponsal. E segundo o evangelista São João, Jesus tem uma linguagem diferente para os fariseus e para os discípulos. Aos fariseus, que começavam a persegui-l’O, Jesus diz: “Já estarei no meio de vós por pouco tempo; depois irei para aquele que Me enviou. Procurar-me-eis e não Me encontrareis. Onde Eu estou, vós não podeis vir” (Jo. 7,33-34). Mas aos discípulos, no mesmo contexto do anúncio da sua morte, apresentada como um regresso ao Pai, Jesus diz: “Não vos deixarei órfãos. Regressarei para junto de vós. Daqui a pouco o mundo não Me verá mais; mas vós ver-Me-eis, porque Eu vivo e vós vivereis. Nesse dia compreendereis que Eu estou em meu Pai e vós em Mim e Eu em vós” (Jo. 14, 18-21).

Jesus dá a entender que a sua morte física não interromperá a sua presença no meio dos discípulos, porque Ele não deixa de os amar e de os envolver no amor do Pai. “Como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor” (Jo. 15,9). Há uma relação de intimidade entre os discípulos e Jesus, que os projecta para o amor trinitário de Deus e que é a garantia desta presença perene de Jesus entre os discípulos. Aqueles que não O amaram, não poderão beneficiar dessa presença. O próprio Jesus explica essa diferença dos discípulos e dos não discípulos: “Se alguém Me ama, guardará a Minha Palavra e Meu Pai amá-lo-á e Nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada” (Jo. 14,23).

É esta intensidade de amor entre Jesus e os discípulos que sugere a Eucaristia como forma perene da presença de Jesus entre os discípulos. De facto o Apóstolo São João introduz, assim, a narração da Ceia: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim, e durante a Ceia…” (Jo. 13,1-2). Ao instituir a Eucaristia, Jesus quis dar à sua Páscoa, forma perene e permanente de comunhão com os discípulos. Aquela Ceia pascal celebrada por Jesus com os discípulos foi daqueles momentos únicos em intensidade de comunhão, que vencem o tempo porque abraçam a eternidade. A Eucaristia, enquanto sacramento da Páscoa, dá actualidade, em cada tempo, a essa intensa comunhão de amor vivida pela comunidade dos discípulos, que se transformou em Igreja.

Uma presença unitiva
3. A forma de presença de Cristo no meio do seu Povo que a Eucaristia proporciona, não é uma presença qualquer. É uma comunhão de amor que só é possível porque há uma comunhão de vida, um “viver em”, uma inabitação ao nível do ser. Na Eucaristia, Cristo vive em nós e nós vivemos em Cristo, somos um com Ele porque formamos um só corpo. Ouçamos João Paulo II: “A incorporação em Cristo, realizada pelo Baptismo, renova-se e consolida-se continuamente através da participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer não só que cada um de nós recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós. Ele intensifica a sua amizade connosco: «Chamei-vos amigos» (Jo. 15,14). Mais ainda, nós vivemos por Ele: «O que Me come viverá por Mim» (Jo. 6,57). Na comunhão eucarística, realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo: «Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós»”[2].

É por isso que só os baptizados podem celebrar a Eucaristia e viver intensamente esta santa convivência com Cristo, pois essa união no Corpo de Cristo é a graça própria do Baptismo. E assim a Eucaristia exprime e aprofunda a união a Cristo, num só baptismo, construindo a Igreja. “A nossa união com Cristo, que é dom e graça para cada um, faz com que, n’Ele, sejamos parte também do seu Corpo total, que é a Igreja. A Eucaristia consolida a incorporação em Cristo operada no baptismo pelo dom do Espírito (cf. 1Cor. 12,13-27)”[3].

A Eucaristia é uma presença que só a fé e o amor revelam e tornam viva. É a maneira de estar presente própria de Deus, silenciosa e invisível para quem não acredita e não ama, mas com toda a força de incendiar os corações e se transformar em comunhão de vida. Na Eucaristia, Deus já não está, apenas, presente no meio do seu Povo, mas vive em cada um dos membros desse Povo.

Uma presença que cativa e prende o coração
4. Esta forma de presença eucarística, que só se torna viva na comunhão de amor, gera entre Cristo e os cristãos um “enamoramento” progressivo, tão misterioso e forte como intenso e misterioso é o amor de Deus. E é neste quadro que se situa a relação entre a celebração da Eucaristia e a presença real de Jesus nas espécies eucarísticas. Uma relação forte de amor, que gera presença, não se interrompe, à espera da próxima vez. Não pode haver oposição entre Eucaristia celebração e Eucaristia reserva, pois são o mesmo sacramento. A reserva eucarística exprime essa presença contínua de Jesus e proporciona que a união tome a forma da adoração e da fidelidade amorosa. Ouçamos, ainda, o Santo Padre João Paulo II: “A presença de Jesus no sacrário deve constituir como que um pólo de atracção para um número cada vez maior de almas enamoradas d’Ele, capazes de permanecerem longamente a escutar a sua voz e, de certo modo, a sentir o palpitar do seu coração: «Saboreai e vede como é bom o Senhor!» (Sal. 34-33,9).

Que a adoração eucarística fora da Missa se torne, durante este ano, um compromisso especial para as diversas comunidades religiosas e paroquiais. Permaneçamos longamente prostrados diante de Jesus presente na Eucaristia, reparando com a nossa fé e o nosso amor as negligências, esquecimentos e até ultrajes que o nosso Salvador se vê obrigado a suportar em tantas partes do mundo. Aprofundemos na adoração a nossa contemplação pessoal e comunitária, servindo-nos também de subsídios de oração baseados sempre na Palavra de Deus e na experiência de tantos místicos antigos e recentes”[4].

A adoração eucarística pode proporcionar momentos de grande intimidade. Se há momentos em que Deus nos dá a graça de podermos experimentar sensivelmente a beleza do seu amor, a adoração eucarística é um desses momentos, sacramento cuja graça própria é o dom da oração. Escutemos, ainda, este testemunho de João Paulo II: “É bom demorar-se com Ele e, inclinando sobre o seu peito como o discípulo predilecto (cf. Jo. 13,25), deixar-se tocar pelo amor infinito do seu coração. Se actualmente o Cristianismo se deve caracterizar sobretudo pela «arte da oração», como não sentir de novo a necessidade de permanecer longamente, em diálogo espiritual, adoração silenciosa, atitude de amor, diante de Cristo presente no Santíssimo Sacramento? Quantas vezes, meus queridos irmãos e irmãs, fiz esta experiência, recebendo dela força, consolação, apoio!”[5].

Assim, a Eucaristia enquanto “santa convivência” é o anúncio, porque antecipação, daquela alegria escatológica que consistirá no “sagrado convívio” com o Pai, o Filho e o Espírito Santo e todos os eleitos desde a criação do mundo. Na Eucaristia está a semente da alegria de uma humanidade reunida no amor.

Sé Patriarcal, 6 de Março de 2005
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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[1] Mane Nobiscum Domine (M.N.D.), n. 16
[2] Ecclesia de Eucharistia (E.E.), n. 22
[3] Ibidem, n. 23
[4] M.N.D., n. 18
[5] E.E. n. 25

Fonte Ecclesia

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