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O Portugal de Fátima
2005-02-17 13:07:13

A morte da última pastorinha de Fátima fez interromper a campanha eleitoral e o ainda primeiro- -ministro propor um dia de luto nacional. Confesso que não fui ver se o falecimento dos dois anteriores pastorinhos também deu lugar a tal manifestação de pesar, mas Lúcia merece-o.

Não só Fátima é um acontecimento maior do Século XX Português como a especial atenção e carinho com que o Papa João Paulo II foi destacando o culto e as suas personagens simbolizou a sua consagração como memória de um combate religioso e ideológico que ultrapassou outras versões das aparições de Maria, de Lourdes ao México. A "Lourdes" de Portugal ficará para sempre na memória como uma peça do grande combate contra o comunismo no século passado.

Fátima é um fenómeno tardio do culto mariano, cada vez mais expurgado por uma política conservadora de reconhecimento por parte da hierarquia da Igreja Católica. Os EUA, pródigos em criatividade religiosa e religiosidade propriamente dita, ainda nos anos 50 conheceram várias aparições católicas mas sem aprovação pela Igreja. A mais conhecida foi a de Necedah, no estado do Wisconsin no início dos anos 50, quando Mary Ann Van Hoof lhe falou, provocando a mobilização de milhares de católicos. As aparições mais consolidadas, no entanto, são antigas, como a de Guadalupe, no México (apareceu a Juan Diego, em 1531), ou Lourdes, França (apareceu a Bernardette Soubirous, em 1858).

Muito embora a participação maciça no culto tenha diminuído nos últimos 30 anos, os santuários a que deram origem são ainda alvo da mobilização de milhares de peregrinos e tenderam a internacionalizar-se 12 milhões no México, 4,5 milhões em França, quase 2 milhões em Portugal (dados dos anos 80). Fátima, aliás, deu origem a uma organização internacional católica com tonalidades de Exército Azul, que nos anos 70 ainda reivindicava 25 milhões de aderentes em 110 países. Bons tempos (Michael Carroll, The Cult of the Virgin Mary, Princeton, Princeton University Press, 1986).

No tempo de Salazar. Lembro-me como se fosse hoje da última grande "cheia" de Fátima aquando da visita de Paulo VI, em 1967, pois fui lá com 13 anos, como todos os outros do meu colégio católico. Portugal vivia os últimos anos de Salazar no poder, a Guerra Colonial ia lançada e aquela década ia mudando a estrutura social do País.

Não pense o leitor que o que me espantou fosse a multidão de aleijados e dos que se aleijavam voluntariamente roçando os joelhos no chão, sobretudo das classes populares. Esse era o prato televisivo de Maio desde que me lembro da caixa a preto e branco.

O que me espantou foi ver lá "toda a gente". Até o meu pai, que fazia parte da família "republicana e laica" de alguns advogados da Baixa de Lisboa, cedeu à minha católica mãe e foi a Fátima. A presença do Papa baralhou os dados, mesmo dos católicos que contestavam com alguma firmeza algumas dimensões desse culto.

Excluída alguma deriva de continentes à la Saramago (mas mais ao norte do que ele desejaria), não é de prever um regresso a este passado mobilizador em Portugal. Mas o mais importante é que o seu lugar de convergência entre um pietisme popular de uma sociedade rural enquadrada pelo clero e uma ditadura de direita chefiada por um pio católico chamado Oliveira Salazar desapareceu.

Só nos anos 30, à medida que o salazarismo se vai consolidando e assumindo os contornos de compromisso entre um ditador com fraca potência de mobilização política do Estado e uma Igreja Católica à qual será dado o quase monopólio de socialização das almas nacionais, é que os mistérios de Fátima assumem contornos mais próximos da "Salvação da Rússia" da opressão comunista.

A história de como os segredos de Fátima foram evoluindo é no fundamental conhecida dos dramas da guerra e da miséria popular para uma "conversão" do império eslavo no final dos anos 20, já com Lúcia fechada num convento em Tuy. Algum clero mais galvanizado politicamente foi-lhe dando o tónus de "Cruzada" no início dos 30 e a própria Lúcia foi acarinhando o ditador português como escolhido por Deus para nos governar e salvar do comunismo, coisa que ele efectivamente fez com grande zelo.

Ditadores católicos. Não houve nesses tempos de chumbo grande novidade. Estávamos numa altura em que os ditadores deste lado da guerra eram incensados pela Igreja Católica, mandam as regras sublinhar após anos de despautério anticlerical.

Portugal e Espanha foram particularmente bafejados pela sorte, pois os seus ditadores eram de facto pios católicos. Salazar era mesmo o que chamaríamos em linguagem gramsciana um "intelectual orgânico" da Igreja. Franco era um militar "beato", o que era ligeiramente diferente e para aqui indiferente. Mussolini tinha algumas dimensões prosaicas que faziam desconfiar mais, a começar pelo que hoje designaríamos tendências pedófilas (do sexo feminino, pelo menos). Apesar de inicialmente incentivado, não era definitivamente "dos nossos". Mas na Península Ibérica a "interioridade" entre a Igreja e os "Novos Estados" foi muito forte.

Fátima nunca escapará a ser também símbolo deste casamento, felizmente terminado com divórcio tardio, entre uma hierarquia católica chefiada por Cerejeira e um ditador chamado Oliveira Salazar. A coisa é sabida entre velhos e historiadores. Mas convém lembrá-lo em época de interrupção conjuntural da campanha eleitoral, pois quase tudo o que lhe está associado não constituiu um episódio brilhante da história nacional mais recente.
O mundo à nossa procura

António Costa Pinto
acpinto53@hotmail.com

Fonte DN

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