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Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa
2001-04-28 15:58:00

Introdução

1- Tem-se verificado, na sociedade portuguesa, um conjunto de factos e de fenómenos que consideramos sintomas preocupantes de uma alteração cultural que anuncia uma crise de civilização. Sem excluir as tomadas de posição pontuais, ao ritmo dos acontecimentos, para esclarecer a consciência dos fiéis, queremos, com esta Nota Pastoral, alertar para um quadro civilizacional de valores culturais que possa constituir o pano de fundo a proporcionar aos católicos e a toda a sociedade um juízo dos factos e das situações, na perspectiva da doutrina da Igreja sobre a pessoa humana e sobre a sociedade.


Defendemos uma cultura da liberdade e da responsabilidade de consciência, de modo a que os cristãos não precisem, perante cada circunstância concreta, da palavra da Igreja, aplicada a cada facto ou acontecimento. O magistério da Igreja defende uma causa nobre demais - a causa da dignidade da pessoa humana - para aparecer perante a opinião pública como um regatear contínuo, denunciando decisões, defendendo perspectivas e valores esquecidos. É importante que cada cristão, para poder reagir responsavelmente, na liberdade da sua consciência, nas diversas circunstâncias, possa estar ciente do quadro cultural de valores que inspira as tomadas de posição concretas da Igreja, na fidelidade à doutrina evangélica e aos princípios inspiradores da nossa cultura.
O Papa João Paulo II, em recente discurso dirigido aos participantes na Assembleia Geral da Pontifícia Academia para a Vida, sublinha esta perspectiva: “A melhor maneira de superar e vencer a perigosa cultura da morte, consiste em dar fundamentos sólidos e conteúdos luminosos a uma cultura da vida que se contraponha, com vigor, a essa cultura da morte. Não é suficiente, mesmo se necessário e um dever, limitar-se a expor e denunciar os efeitos mortíferos da cultura da morte. É preciso, sobretudo, regenerar continuamente o tecido interior da cultura contemporânea, entendida como mentalidade vivida, como conjunto de convicções e comportamentos, como estruturas sociais que a sustentam” (Osservatore Romano, 04-03-2001).

Sintomas de mutação cultural

2- Na nossa sociedade sente-se cada vez mais que as regras inspiradoras dos comportamentos, as próprias leis e o sentido global da vida individual e comunitária, deixaram de se inspirar em padrões éticos de valores, num quadro cultural que defina um projecto e um ideal, na linha da nossa tradição cultural, e decorrem ao sabor de critérios imediatistas e pragmáticos, onde não se escondem intenções de alguns grupos de provocar rupturas fracturantes, em relação à tradicional cultura portuguesa, ou mesmo em relação à influência da doutrina da Igreja na sociedade.
Inculca-se um exercício da liberdade sem limites, não percebendo que a dignidade desta reside na responsabilidade; o fenómeno da corrupção tolda o valor da liberdade económica; a crescente marginalização social, agravada com o eclodir de manifestações de violência, gera insegurança e prejudica a harmonia de uma sociedade que se quereria cada vez mais justa; surgem sintomas de falta de confiança no sistema judicial, base indispensável de um Estado de direito, onde cada pessoa sinta garantida a defesa dos seus direitos e da sua dignidade; a toxicodependência e a delinquência juvenil alertam para uma crise da juventude, cuja solução é dificultada pela falta de apoio e protecção à família e pela ausência de uma ousada e inovadora concepção da política de educação; a globalização, acentuada com a mediatização da vida, fez surgir novos poderes, fragilizando aqueles em que, tradicionalmente, assenta a harmonia da sociedade; o poder político está fragmentado e enfraquecido, há sintomas preocupantes de perda de confiança nas instituições, há cada vez mais margem para a ilegalidade e para a anomia.
Nós os Bispos, e toda a Igreja, assumimos as nossas responsabilidades neste processo, desejando contribuir para a sua equação, no quadro da nossa missão específica e na esfera que nos é própria. A Igreja faz parte da sociedade civil, como comunidade organizada. Com a doutrina que propõe e que recebeu do Evangelho e da tradição, com a sua experiência de serviço, quer colaborar com o Estado, com as outras organizações da sociedade civil, em ordem à construção de um Portugal digno da sua tradição e da sua história e à altura das suas responsabilidades, presentes e futuras, na Europa e no mundo. É urgente repensar Portugal, aprofundando a convivência democrática, acentuando, sem hesitações, aquelas linhas de força culturais que garantam a unidade progressiva da nossa civilização, marcada pela abertura à universalidade, pela convivência na diversidade, pela afirmação, sem receios, da tradição humanista de inspiração cristã.

Uma cultura marcada pelo cristianismo

3- Com a implantação do cristianismo na Península Ibérica, ainda no tempo do Império Romano, introduziu-se na evolução cultural dos povos que aqui habitavam e dos que para aqui vieram, fruto das grandes migrações, um factor decisivo, embora não único, pois a perspectiva cultural de inspiração cristã sempre conviveu com outras matrizes culturais, dos povos que chegavam, do judaísmo, do islamismo. Esse factor foi a inspiração cristã, decisiva em ordem à unidade e harmonia de uma cultura.
Portugal nasceu como país independente num enquadramento eclesial claro, dimensão que nunca deixou de estar presente, mesmo que de forma dialéctica, no evoluir da nossa já longa história. Vários momentos houve em que forças de influência, ideológica ou política, normalmente importadas, tentaram diminuir, ou mesmo anular, esta matriz cristã da nossa cultura. Mesmo num quadro de pluralismo dialogante, próprio de uma sociedade democrática, e apesar das claras manifestações de apreço pela Igreja, pelos seus valores e testemunho de serviço, vindos de governantes e da sociedade civil, notamos, por vezes, manifestações remanescentes desses desígnios ocultos de contraditar a influência da Igreja. As tais opções fracturantes, determinadas por motivos ideológicos, mais que pela sadia procura de soluções justas e adequadas, dificilmente escondem a intenção de impor linhas culturais que contradigam a posição da Igreja sobre as matérias em discussão.
Queremos afirmar claramente, a todos e de modo particular aos fiéis católicos, que estamos conscientes disso e que essas manifestações não nos impedem de pautar a nossa intervenção na sociedade pela doutrina em que acreditamos, e de contribuirmos, pelo diálogo e pela tolerância, para a harmonia de uma sociedade plural. Aos católicos reafirmamos que, quando as leis se afastam da doutrina da Igreja, em matéria moral e de respeito pela dignidade da pessoa humana, elas não obrigam em consciência. O que é legal não significa, necessariamente, o bem moral. Esse é, aliás, um sintoma preocupante das sociedades ocidentais, em que a ordem legal se afasta, tantas vezes, da ordem ética, o que leva muitos a considerar como moralmente legítimo o que é simplesmente legal.


Uma cultura da dignidade da pessoa humana

4- Este é um dos absolutos da Doutrina Social da Igreja: uma sociedade justa e harmónica não se constrói sobre o desrespeito pela dignidade da pessoa humana, permitido pelas leis ou praticado na clandestinidade dos processos sociais. E esta dignidade não se afirma, apenas, em relação aos indivíduos, mas também na valorização das instituições que enquadram e promovem essa dignidade, como é o caso da família. Todos os atropelos à família são agressões a essa dignidade sagrada da pessoa.
Soluções pragmáticas e imediatistas, procuradas para situações sociais graves, como é o caso da toxicodependência, podem estar marcadas por esse desrespeito. Todas as normas que regulem o comportamento da sociedade em relação às pessoas, de modo particular aos doentes, aos idosos, aos detidos, às minorias culturais e étnicas, aos delinquentes, aos marginais, têm de salvaguardar a sua dignidade como pessoas. Nunca a sociedade e, muito menos, o Estado a podem esquecer ou diminuir para resolver problemas concretos.

Uma cultura da liberdade na responsabilidade

5- Se a sociedade deve respeitar a dignidade de cada pessoa, o exercício da liberdade deve ser a expressão desse respeito por cada pessoa em relação a si mesma e em relação ao seu semelhante. A dignidade da liberdade afirma-se na generosidade e na responsabilidade.
Há, na nossa sociedade, manifestações da defesa do exercício da liberdade, sem exigência da respectiva responsabilidade. Isso verifica-se, sobretudo, no que à vida privada diz respeito. A chamada liberdade sexual é disso um exemplo paradigmático. A liberdade sexual é, hoje, um novo tabu, onde ninguém ousa tocar, mesmo numa perspectiva envolvente e global de educação para a responsabilidade. E perante os problemas sociais, alguns graves, que daí decorrem, como o das doenças sexualmente transmissíveis, o crescente aumento de adolescentes que engravidam, o aborto, as soluções protagonizadas pela legislação procuram precaver ou remediar os efeitos, sem tocar na questão de fundo, que seria a promoção de uma sexualidade generosa e responsável. Universaliza-se o preservativo, facilita-se o aceso à chamada pílula do dia seguinte, criam-se salas de injecção assistida para os toxicodependentes, trocam-se gratuitamente as seringas, e, nas campanhas de promoção ou nos proémios justificativos das leis nunca se diz uma palavra que vá na linha de sugerir uma responsabilidade no exercício da liberdade.
Não nos podemos esquecer que admitir a irresponsabilidade num aspecto da vida, significa comprometer toda a educação para a responsabilidade. Como queremos, então, promover a responsabilidade pessoal e colectiva, na economia, nas obrigações fiscais, na fidelidade aos deveres profissionais, na circulação rodoviária e no respeito pelos bens que são da comunidade? Não somos só nós a dizê-lo, pois alguns artigos de opinião já o afirmaram: alguma legislação recente é geradora de comportamentos irresponsáveis. Dirigir um país não pode ser só administrar as crises, tem de assentar num projecto de valores a promover e a defender. Deveria ser esse projecto cultural a definir as propostas políticas de sociedade a apresentar aos portugueses para a sua escolha democrática.

Uma cultura da vida

6- O mistério da vida, que todos recebemos de Deus, constitui a principal motivação para a liberdade e a responsabilidade. A vida é o primeiro valor a defender e a promover, através de uma educação que ajude a concebê-la como projecto livre e criativo, a ser vivido com os outros e para os outros, se preciso com generosidade heróica nos momentos mais difíceis.
Para uma existência conduzida na perspectiva cristã, é chocante a facilidade com que se aceita pôr a vida radicalmente em questão, para resolver problemas circunstanciais de indivíduos e de grupos. Uma mulher tem uma gravidez indesejada, que poderia ter evitado com a prática de uma sexualidade responsável? Facilita-se o aborto, se possível logo nas primeiras horas após a concepção. O sofrimento torna-se penoso, devido a doenças consideradas incuráveis? Ajuda-se a morrer com dignidade, colaborando no suicídio. Não é fácil encaminhar todos os toxicodependentes para projectos de recuperação a promover e a acarinhar? Instalam-se salas de injecção assistida. Etc.
Está a substituir-se uma cultura da vida por uma cultura da morte. E quem promover uma cultura da morte acabará por comprometer uma Nação. A coragem na promoção e na defesa da vida define a grandeza de um projecto nacional.
Portugal está prestes a alterar a sua Constituição para permitir a inclusão no Código Penal da pena de prisão perpétua. Sabemos que isso é uma consequência da nossa inserção na comunidade internacional. Desejamos vivamente que esse facto não nos afaste de uma compreensão das penas de prisão como período, não apenas de castigo, mas de regeneração da pessoa do detido, cuja dignidade e direito à vida continuam invioláveis.

Uma cultura de verdade e de coerência

7- O cristianismo valoriza a importância da verdade como alicerce da cultura. A verdade, que os crentes recebem através da Palavra de Deus e que cada homem procura com a inquietação da inteligência, define a fisionomia espiritual do homem, fundamenta os valores que prossegue, inspira os caminhos a percorrer.
Uma cultura assente na verdade e na coerência não se exprime apenas nos discursos, mas na generosidade das acções e na rectidão dos processos. A recentemente aprovada Lei sobre a liberalização da chamada pílula do dia seguinte é um caso chocante. Chama-se anti-concepção de emergência quando todos sabem que é abortiva e que, pelo menos, deveria ficar sob a alçada da lei, a qual, apesar de reprovável, deveria ser aplicada correctamente. Porque não se pode negar o seu efeito de interrupção do normal percurso de um óvulo fecundado, porque se sabe que as mulheres a procuram, em período fértil, depois de uma relação sexual potencialmente fecundante, distingue-se entre fecundação e nidação, como se não fosse claro que no zigoto se iniciou a aventura de um novo ser humano, que merece o respeito de todos e precisa de ser defendido.
Quere-se regulamentar os direitos cívicos de uniões de facto, mesmo entre pessoas do mesmo sexo, e consideram-se famílias alternativas, atingindo a dignidade da família, que no seu fundamento antropológico e afectivo, assente numa responsabilidade e compromisso duradouros, selados pelo contrato matrimonial, é a base sólida da estabilidade da sociedade. As nossas famílias mereciam mais apreço e reconhecimento da sua dignidade.
Uma sociedade justa, harmónica e pacífica só pode edificar-se sobre a verdade. Só esta nos conduz à liberdade: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á” (João, 8, 31-32).


Uma cultura da solidariedade

8- Livre e responsável, a pessoa humana é chamada a ser solidária. A solidariedade é a expressão da dimensão comunitária da sociedade, em que o bem comum prevalece sobre o interesse particular, de indivíduos, grupos ou minorias, em que a partilha sublinha a fraternidade e o sentido de serviço inspira a convivência colectiva.
Uma das consequências do pragmatismo imediatista na busca das soluções é o acentuar de atitudes de individualismo, por vezes egoísta, de pessoas e de grupos, toldando a perspectiva do bem comum da sociedade e dando, por vezes, dimensão nacional a interesses de grupos, que pouco ou nada dizem ao conjunto do Povo português.
Precisamos de acentuar uma cultura da solidariedade, em que os direitos dos indivíduos cedam perante as exigências do bem comunitário, e a Nação apareça como comunidade de ideal, na análise dos problemas e na busca das soluções. Para os cristãos, o dever do amor fraterno é a base da solidariedade.

Uma cultura da esperança

9- Uma cultura inspirada nos valores evangélicos é, necessariamente, repassada de esperança. Esta análise pretende ser não apenas uma denúncia, mas um incentivo. Há na nossa sociedade valores positivos, de competência, de generosidade, de abertura aos outros e mesmo de fé, suficientemente fortes para inspirarem um projecto; há cidadãos competentes, generosos, rectos, que dedicam as suas vidas ao bem comum. É preciso que nos convençamos de que o futuro de Portugal depende de todos nós e não apenas dos Governos. Portugal será o que os portugueses quiserem, e as nossas crianças terão amanhã a sociedade que nós, hoje, merecermos para elas.
Estamos no início de um novo século e de um novo milénio, um tempo novo portador de esperança. Apelamos, de modo particular, aos jovens, aos educadores, aos agentes culturais e fazedores de opinião, a que dêem conteúdo a esta esperança, acreditando que um mundo novo é possível, tendo a coragem, se necessário, de ser diferente.
Levantemos âncora e façamo-nos ao largo, pois espera-nos o mar imenso do futuro.

Fátima, 26 de Abril de 2001



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