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Quaresma, o roxo social
2001-03-22 21:25:53

Dos dias mundiais de qualquer coisa costuma-se dizer que não são mais que alibis para o esquecimento corrente do essencial. Dos tempos litúrgicos e da relação que com eles têm os cristãos se poderia dizer o mesmo: são fogachos de mobilização que rapidamente se diluem na normalidade da cultura dominante.

A renúncia e a penitência têm cotação baixa na bolsa dos valores das sociedades contemporâneas. O roxo da penitência e da renúncia é invariavelmente preterido pelas cores garridas do fascínio aquisitivo e pelos tons berrantes do poder, em todas as suas formas. A grande provocação da Quaresma situa-se precisamente aí: transformar o arrependimento e a privação em atitudes sensatas, conferindo prioridade ao desapossamento. E mais: o que a experiência quaresmal traz de perturbador à nossa cultura é o acolhimento da morte como facto central de uma existência inscrita num horizonte de superação permanente.
No nosso tempo, há, de facto, convicções sociais cada vez mais fortes que vêm carregadas de arrogância e de auto-convencimento. É um fascínio que se funda essencialmente na crença, veiculada pela globalização, de que todo o longínquo se tornou acessível e de que todo o inalcansável se tornou possível. Esta crença assenta fundamentalmente em três dinâmicas muito intensas, disseminadas como padrões da cultura global contemporânea. A primeira dessas dinâmicas é a da apropriação das diferenças. A segunda é a da apropriação do futuro. E a terceira é a da apropriação da vida.
Em primeiro lugar, a globalização tornou-se sinónimo de padronização e de apagamento das alternativas. A fragilidade do pensamento único encerra uma força perversa: a de hierarquizar as culturas e as identidades em função da sua capacidade de se afirmarem como globais e de nomearem as outras como locais. O diferente passou a ser sinónimo de inferior ou até de desprezível. Em segundo lugar, a arrogância cega do nosso modelo de desenvolvimento conduziu a formas perversas de aniquilamento do futuro. É essa cegueira deliberada que torna as alterações climáticas em pecado colectivo e que faz da dívida dos países mais pobres um roubo de horizonte a milhões de seres humanos e, por isso, uma estrutura de pecado. Estas duas dinâmicas convergem para uma terceira embriaguez do presente: a apropriação da vida, possibilitada seja pelo desvelar do segredo do genoma humano, seja pelo controlo remoto da biodiversidade por grandes firmas multinacionais através das patentes registadas sobre os organismos geneticamente modificados.
Ao pecado da soberba e aos seus rostos sociais modernos importa contrapor um sentido quaresmal da vida. Sugiro três motes para essa conversão. O primeiro é o multiculturalismo. A aprendizagem de um multiculturalismo genuíno - feito tanto de diálogo e de reciprocidade entre as diferenças quanto de revisão do fechamento aos estrangeiros mais pobres - é a penitência necessária para o pecado do novo-riquismo europeu. O segundo mote é o do cuidado. A Comissão Independente sobre População e Qualidade de Vida, presidida por Maria de Lurdes Pintasilgo, no seu fundamental relatório "Cuidar o Futuro", sublinhou que enquanto a hipertrofia do mercado tem absolutizado a melhoria das condições materiais da existência e reforçado continuamente a concentração sobre o "eu", a recentragem da política sobre a ética do cuidado dará densidade a uma dinâmica de comunicação e de parceria em vista de objectivos completamente diferentes: acabar com a pobreza, restringir o desperdício de recursos, promover a qualidade de vida dos outros. A prática social do cuidado é, pois, a penitência necessária para o pecado do desprezo consciente dos outros, desta e das futuras gerações. Enfim, o terceiro mote é o do património comum. Só o reencontro do alcance prático subversivo do princípio do destino universal dos bens travará as vertigens perversas da apropriação da vida e do futuro. Por isso, fazer da ideia de património comum um novo eixo regulador da vida social torna-se sinónimo de renúncia à gula proprietarista e de penitência ajustada ao pecado da assimetria como modelo de organização social.
Se estas vestes roxas passarem a ser sedutoras, a Páscoa será realmente redentora.
José Manuel Pureza
Professor Universitário

Fonte Ecclesia

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