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Mensagem do Patriarca de Lisboa na Noite de Natal
2003-12-27 09:47:50

Caríssimos telespectadores e rádio-ouvintes,

1. É com muita alegria que vos saúdo, em nome da Igreja, nesta noite de Natal. Festa cristã que celebra o nascimento de Jesus Cristo, é a Sua mensagem de amor e de paz que dá sentido e enche de beleza e de ternura esta noite, tão enriquecida pela cultura e pela tradição. Para que isso aconteça, é preciso que abramos o nosso coração à luz que vem do alto, que nele semeará a paz. Jesus Cristo será sempre, para todos os tempos e para todos os homens, uma mensagem de Deus.


Vai já sendo hábito que, neste dia e nesta circunstância, vos fale de alguma dimensão da nossa vida comunitária particularmente actual, para a olharmos à luz da mensagem de Jesus. Este ano escolhi a dimensão europeia da nossa vida como povo e como Nação, devido à sua importância e actualidade. A Europa tem sido tema e notícia nos últimos meses e não me refiro apenas à festa do futebol europeu que se celebrará, entre nós, no próximo mês de Junho. No próximo ano dez novos países vão integrar a União Europeia, que se prepara para se dotar de um Tratado Constitucional, passo em frente, porventura irreversível, na solidificação da dimensão europeia para a maior parte dos países do Continente, entre os quais Portugal. É preciso que tomemos consciência desse facto: a nossa vida como comunidade nacional será cada vez mais influenciada pelas leis e pelos dinamismos da União Europeia. A sublinhar a importância e a actualidade do tema está a Exortação Apostólica sobre a Igreja na Europa, publicada pelo Santo Padre João Paulo II, na sequência do 2º Sínodo dos Bispos sobre a Europa. Nela o Papa manifesta a solicitude da Igreja pela Europa e pelos processos de construção do Continente, oferecendo a sua perspectiva e contributo específicos.

2. Verificamos, com alegria, que o futuro da Europa é olhado sob o signo da esperança, que não exclui, antes integra, problemas e preocupações. Recentemente desloquei-me a Vilnius, capital da Lituânia, um dos países que proximamente farão parte da União Europeia, constituindo com os outros países bálticos a sua fronteira mais a norte. Impressionaram-me as expectativas, mesmo euforia, com que encaram esse momento histórico. Com ele esperam exorcizar, de uma vez por todas, o perigo de anexação pelos blocos e pelos impérios, confirmando a sua independência democrática, a expressão da sua identidade cultural e o desenvolvimento consolidado da economia. Mas sobre esse cenário de entusiasmo pairam algumas preocupações. País de maioria católica, agora a saborear o dom da liberdade, se por um lado tenta vencer as marcas da sociedade ateia que lhes foi imposta, por outro temem a relativização de valores espirituais e morais que o ateísmo prático de uma sociedade de consumo acarreta. Perante o seu entusiasmo e o fundado das suas preocupações, senti-me, como cidadão da União Europeia, corresponsável pelo destino daquele povo longínquo, do qual, até agora, tão pouco conhecíamos. É preciso, para a construção desta “Pátria Europeia”, objectivar a esperança.
O tão discutido preâmbulo da futura Constituição Europeia – não sei se no momento em que ouvis esta mensagem, este texto ainda prevalece – afirma: “Unida na sua diversidade, a Europa deve ser um espaço privilegiado da esperança humana”. E João Paulo II intitula a sua Exortação Apostólica sobre a Europa, “Jesus Cristo, vivo na Sua Igreja, fonte de esperança para a Europa”. São dois anúncios complementares da esperança. Um vindo dos responsáveis políticos sobre a Europa, que afirmam acreditar que é possível construir a unidade, apesar da diversidade de línguas e de culturas. E construção da unidade significa o empenho na superação das divisões, e compromisso em prosseguir em conjunto os grandes objectivos da paz e da justiça. A outra, vinda do Santo Padre, é uma confissão de fé, que é bom recordar na noite de Natal: Jesus Cristo é a fonte e o fundamento da verdadeira esperança.
Esta Exortação Apostólica significa um compromisso da Igreja com a construção da Europa. A Igreja, na Europa, porque acredita que é nela que Jesus Cristo está vivo, compromete-se a ser profeta da esperança, anunciando à Europa o Evangelho da esperança. Num olhar atento sobre a realidade do Continente, verificamos que, se sobressaem as indiscutíveis conquistas no progresso das nossas sociedades e na consolidação da paz, pairam sombras que não podemos disfarçar: o materialismo de uma sociedade de consumo, a relativização ética dos critérios da vida e da convivência, a permanência de injustiças sociais e de situações que geram incerteza, as dificuldades do acolhimento aos imigrantes etc. É urgente consolidar a esperança, que dará sentido à vida e à história de povos que decidiram partilhar o seu destino e caminhar de mãos dadas.
Nesta solidificação da esperança há dimensões que, pela sua importância decisiva, têm de ser, claramente, postas em relevo: uma compreensão do progresso que integre a economia no quadro de outras dimensões essenciais à realização do homem; politicas sociais que sejam a expressão da justiça, da solidariedade e da generosidade; uma opção clara pelos caminhos objectivos de construção da paz; uma atitude de acolhimento em relação àqueles que, vindos de outros povos e culturas, procuram a Europa, porque procuram a vida. Todos estes elementos devem integrar uma atitude cultural envolvente, que se possa definir como a especificidade de uma cultura europeia. A objectividade cultural é importante para a consolidação da esperança.

3. Ora é precisamente sobre a identidade cultural da Europa que se têm centrado as discussões a propósito do preâmbulo do projecto de Constituição Europeia. Poder-se-á falar da especificidade de uma cultura europeia? Será isso importante na actual fase da vida do Continente? A mim parece-me, não apenas importante, mas porventura, decisivo. Antes de mais porque a cultura é o quadro envolvente, de natureza espiritual, inspirador de todos os processos de desenvolvimento e da busca de soluções práticas para problemas concretos. A cultura é a fonte do sentido da história. Ora acresce que a Europa, sobretudo no espaço da União, é cada vez mais, uma pátria de acolhimento de milhões de pessoas vindas de outros universos culturais. A Europa só os poderá acolher, sem se negar a si mesma, se estiver segura da sua identidade cultural.
Mas em que consiste essa especificidade da cultura europeia? Todos sabemos que a riqueza cultural da Europa se fundamenta na imensa variedade de elementos que, ao longo dos séculos, modelaram uma identidade europeia: a herança clássica greco-latina; o contributo específico dos diversos povos que, ao longo de milénios, aportaram a estas paragens; a influência das grandes religiões, tais como o judaísmo, o cristianismo, mesmo o islamismo, na definição do sentido do homem e da história; a imensa riqueza das filosofias e da construção de uma racionalidade, que desabrochou na definição de uma secularidade e da autonomia do profano frente ao sagrado; os contactos dos povos europeus com outros povos e outras culturas, através das chamadas descobertas; a pluralidade étnica e linguística dos seus habitantes. Uma cultura europeia não pode renunciar a toda esta variada riqueza da sua génese. Não se trata de uma cultura monolítica, definida a partir de um único factor hegemónico, na certeza de que, quanto mais monolíticas forem as culturas, menos promovem a liberdade. Mas podemos, isso sim, perguntar se, nesta riqueza de elementos, há um que pela sua importância histórica, exerceu o papel de elemento unificador. É que uma cultura, independentemente dos elementos que entraram no caldear da sua definição, é uma experiência de unidade, fazedora de harmonia.

4. É aqui que se situa a discussão, tão viva nos últimos meses, se sim ou não o preâmbulo da Constituição Europeia, ao tentar definir a génese da especificidade da cultura europeia, deve referir explicitamente a importância do cristianismo nesse longo burilar da identidade cultural europeia. Uma prova da importância desta discussão, é que ela se transformou, por vezes, em polémica apaixonada. E quando se atinge esse nível de paixão, perde-se facilmente a objectividade, necessária para centrar as questões no seu rigor histórico e na análise estrutural da cultura.
E de facto têm-se feito algumas confusões. Ao pedir essa referência explícita ao cristianismo como elemento unificador da cultura europeia, não se trata de impor o cristianismo a ninguém, nem de, “confessionalizar” a União Europeia, em contrapartida à visão, hoje pacificamente aceite, da laicidade dos Estados. Não se propõe que o texto constitucional faça uma confissão de fé cristã, nem que desconheça a variedade de elementos que compõem a cultura europeia. Trata-se, apenas, de reconhecer objectivamente, a importância unificadora do cristianismo no processo cultural europeu, ao longo dos séculos.
Que ninguém interprete este desejo da Igreja como uma manifestação de poder; que não nos respondam recordando-nos, apenas, os erros históricos da Igreja. Sejamos capazes de olhar para o futuro, reconhecer a identidade dos grandes valores que hoje definem a Europa, e lançar as bases para um aprofundamento do sentido inspirador de uma Europa que todos queremos mais justa, solidária e fraterna, voz decisiva na construção da paz mundial. É o amor pela Europa e o empenhamento no seu futuro que nos leva a pedir que os construtores da nova Europa não esqueçam nenhum dos alicerces sobre que assenta esse edifício.

5. A relação do cristianismo com a Europa é uma longa história de amor e de sofrimento. O cristianismo não se define como uma religião europeia, sendo a sua vocação universal. Mas ele recebeu muito da Europa. A riqueza da cultura greco-romana ofereceu-lhe o quadro de pensamento e a linguagem para exprimir a sua fé, nascida no contexto semita, aculturando-a e universalizando-a, fornecendo-lhe o quadro filosófico para a expressão aprofundada dessa mesma fé. A estrutura organizativa do império romano ofereceu-lhe o quadro institucional para a sua expansão.
Devido ao facto de, durante séculos, a Europa e o Médio Oriente serem a parte do mundo então conhecida, o cristianismo, sem negar a sua vocação de universalidade, que reafirma claramente no dinamismo missionário, quando se alarga o horizonte do conhecimento do mundo, percorreu a primeira parte da sua história no processo europeu, dando à Europa no seu evoluir o melhor da sua inspiração e da sua dedicação. A sua arte, o pensamento inspirador, a força de resistência e de progresso, foram continuamente insuflados no processo europeu pelo ideal evangélico prosseguido pelos grandes construtores da Europa. E isto foi verdade desde a queda do império romano até aos fundadores da União Europeia. E foi o ardor da fé cristã que ofereceu à Europa o quadro cultural da sua expansão no mundo e do diálogo inter-cultural então começado. Os principais valores de que hoje se ufana a Europa como espaço de liberdade, de defesa dos direitos humanos, de construção da justiça, da igualdade e da paz, recebeu-os, em grande parte, desse caminhar de mãos dadas com o cristianismo.
Sabemos que houve falhas, erros, divisões. Esse é o repto lançado às Igrejas pela Europa do futuro: não haverá verdadeira unidade da Europa sem reconstrução da unidade entre as Igrejas cristãs e sem um diálogo lúcido e respeitoso com outras culturas e religiões, que cada vez mais convivem connosco na mesma casa europeia. Mesmo quando o pensamento europeu se autonomizou, fê-lo num diálogo ou confronto dialéctico com o cristianismo e com a visão cristã do homem e da história.
Nós os cristãos, presença significativa na Europa de hoje, amamos demasiadamente a Europa, para não sofrermos se a Europa se esquecer ou sequer silenciar esta longa caminhada de amor e sofrimento.
Nesta noite de Natal, festa do nascimento de Jesus Cristo, assumamo-nos como europeus e cidadãos do mundo e peçamos a Deus que continue a semear no coração de cada europeu, a semente evangélica do amor, da justiça, da fraternidade e da paz.

Bom Natal!

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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