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João Paulo II pede referência à herança cristã europeia - 2ªparte
2003-06-28 16:42:38

Primeiro anúncio e anúncio renovado

46. Em várias partes da Europa, há necessidade do primeiro anúncio do Evangelho: aumenta o número das pessoas não baptizadas, seja pela consistente presença de imigrantes que pertencem a outras religiões, seja também porque famílias de tradição cristã não baptizaram os filhos devido ao jugo comunista ou a uma generalizada indiferença religiosa.78 Com efeito, a Europa faz parte já daqueles espaços tradicionalmente cristãos, onde, para além duma nova evangelização, se requer em determinados casos a primeira evangelização.


A Igreja não pode subtrair-se ao dever dum corajoso diagnóstico, que lhe permita predispor as terapias mais oportunas. Mesmo no « velho » continente existem extensas áreas sociais e culturais, onde se torna necessária uma verdadeira e própria missio ad gentes.79

47. Depois, por toda a parte há necessidade de um renovado anúncio, mesmo para quem já está baptizado. Muitos europeus contemporâneos pensam que sabem o que é o cristianismo, mas realmente não o conhecem. Frequentemente ignoram os próprios rudimentos da fé. Muitos baptizados vivem como se Cristo não existisse: repetem-se gestos e sinais da fé sobretudo por ocasião das práticas de culto, mas sem a correlativa e efectiva aceitação do conteúdo da fé e adesão à pessoa de Jesus. Em muita gente, as grandes certezas da fé foram substituídas por um sentimento religioso vago e pouco empenhativo; difundem-se várias formas de agnosticismo e de ateísmo prático que concorrem para agravar a divergência entre a fé e a vida; muitos há que se deixaram contagiar pelo espírito de um humanismo imanentista que enfraqueceu a sua fé, levando-os com frequência, infelizmente, a abandoná-la completamente; assiste-se a uma espécie de interpretação secularista da fé cristã, que a corrói, suscitando uma profunda crise da consciência e da prática moral cristã.80 Os grandes valores, que inspiraram amplamente a cultura europeia, foram separados do Evangelho, perdendo assim a sua alma mais profunda e dando lugar a vários desvios.

« Quando o Filho do Homem voltar, encontrará fé sobre a terra? » (Lc 18, 8). Encontrá-la-á sobre estas terras da nossa Europa de antiga tradição cristã? É uma questão em aberto que indica claramente a profunda dramaticidade de um dos mais sérios desafios que as nossas Igrejas são chamadas a enfrentar. Pode-se dizer, como foi sublinhado no Sínodo, que frequentemente este desafio não consiste tanto em baptizar os novos convertidos, mas em levar os baptizados a converterem-se a Cristo e ao seu Evangelho: 81 nas nossas comunidades, é preciso preocupar-se seriamente em levar o Evangelho da esperança àqueles que estão longe da fé ou se afastaram da prática cristã.

Fidelidade à única mensagem

48. Para se poder anunciar o Evangelho da esperança, é necessária uma sólida fidelidade ao próprio Evangelho. Por isso, a pregação da Igreja, em todas as suas formas, deve ser cada vez mais centrada sobre a pessoa de Jesus e orientar sempre mais para Ele. É preciso vigiar para que seja apresentado na sua integridade: não só como modelo ético, mas primariamente como o Filho de Deus, o Salvador único e necessário de todos, que vive e actua na sua Igreja. Para que a esperança seja autêntica e inabalável, a « pregação íntegra, clara e renovada de Jesus Cristo ressuscitado, da ressurreição e da vida eterna »82 deverá constituir uma prioridade na acção pastoral dos próximos anos.

Se o Evangelho a anunciar é idêntico em todos os tempos, são diversos os modos como tal anúncio pode ser realizado. Por conseguinte, cada um é convidado a « proclamar » Jesus e a fé n'Ele, em todas as circunstâncias; « atrair » os outros à fé, adoptando modos de vida pessoal, familiar, profissional e comunitária conformes ao Evangelho; « irradiar » alegria, amor e esperança ao seu redor, para que muitos, vendo as suas boas obras, glorifiquem o Pai que está nos Céus (cf. Mt 5, 16) e acabem « contagiados » e conquistados; tornar-se « fermento » que transforma e anima a partir de dentro toda a expressão cultural.83

Com o testemunho da vida

49. A Europa exige evangelizadores credíveis, cuja vida, em sintonia com a cruz e a ressurreição de Cristo, irradie a beleza do Evangelho.84 Tais evangelizadores hão-de ser adequadamente formados.85 Hoje torna-se ainda mais necessária a consciência missionária em todos os cristãos, a começar pelos Bispos, presbíteros, diáconos, consagrados, catequistas e professores de religião: « Cada baptizado, enquanto testemunha de Cristo, deve obter a formação adequada à sua condição, não só para evitar que a fé definhe por falta de cuidado num ambiente hostil como é o do mundo, mas também para dar apoio e impulso ao testemunho evangelizador ».86

O homem contemporâneo « escuta com maior benevolência as testemunhas do que os mestres, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas ».87 Por isso, são decisivas a presença e os sinais da santidade: esta é pressuposto essencial para uma autêntica evangelização, capaz de devolver a esperança. Precisa-se de testemunhos fortes, pessoais e comunitários, de vida nova em Cristo. É que não basta oferecer a verdade e a graça através da proclamação da Palavra e da celebração dos Sacramentos; é necessário acolhê-las e vivê-las em cada circunstância concreta, no modo de ser dos cristãos e das comunidades eclesiais. Esta é uma das maiores apostas que esperam a Igreja que está na Europa, neste início do novo milénio.

Formar para uma fé adulta

50. « A situação cultural e religiosa actual da Europa exige a presença de católicos adultos na fé e de comunidades cristãs missionárias que testemunhem a caridade de Deus a todos os homens ».88 Por conseguinte, o anúncio do Evangelho da esperança supõe que haja o cuidado de promover a passagem de uma fé apoiada na tradição social, e que tem o seu valor, a uma fé mais pessoal e adulta, esclarecida e convicta.

Por isso, os cristãos são chamados a possuir uma fé que lhes permita confrontar-se criticamente com a cultura actual resistindo às suas seduções; influir eficazmente nos sectores culturais, económicos, sociais e políticos; mostrar que a comunhão entre os membros da Igreja Católica e com os outros cristãos é mais forte do que qualquer vínculo étnico; transmitir com alegria a fé às novas gerações; construir uma cultura cristã que possa evangelizar a cultura mais ampla em que vivemos.89

51. Além de cuidarem de que o ministério da Palavra, a celebração da liturgia e o exercício da caridade tenham em vista a edificação e fortalecimento duma fé matura e pessoal, é preciso que as comunidades cristãs procurem propor uma catequese adaptada aos diferentes itinerários espirituais dos fiéis segundo as respectivas idades e estados de vida, prevendo-se ainda adequadas formas de acompanhamento espiritual e de redescoberta do próprio baptismo.90 Obviamente um ponto fundamental de referência neste trabalho há-de ser o Catecismo da Igreja Católica.

De modo particular, dada a sua inegável prioridade na acção pastoral, é preciso cultivar, e eventualmente reintroduzir, o ministério da catequese enquanto educação e desenvolvimento da fé de cada pessoa, para que a semente, lançada pelo Espírito Santo e transmitida no Baptismo, cresça e chegue à maturação. Referida constantemente à Palavra de Deus, conservada na Sagrada Escritura, proclamada na Liturgia e interpretada pela Tradição da Igreja, uma catequese orgânica e sistemática constitui, sem sombra de dúvida, um instrumento essencial e primário de formação dos cristãos para uma fé adulta.91

52. Nesta mesma linha, há que assinalar também a função importante da teologia. De facto, existe um nexo intrínseco e indivisível entre a evangelização e a reflexão teológica, porque esta, apesar de ciência com um estatuto e metodologia próprios, vive da fé da Igreja e está ao serviço da sua missão.92 Nasce da fé e é chamada a interpretá-la, mantendo a sua ligação imprescindível com a comunidade cristã em todas as suas articulações; posta ao serviço do crescimento espiritual de todos os fiéis,93 a teologia introdu-los na compreensão profunda da mensagem de Cristo.

No cumprimento da sua missão de anunciar o Evangelho da esperança, a Igreja na Europa vê com apreço e gratidão a vocação dos teólogos, valoriza e promove o seu trabalho.94 Com estima e afecto, convido-os a perseverarem no serviço que realizam, unindo sempre pesquisa científica e oração, mantendo um diálogo atencioso com a cultura contemporânea, aderindo fielmente ao Magistério e colaborando com ele em espírito de comunhão na verdade e na caridade, respirando o sensus fidei do povo de Deus e ajudando a alimentá-lo.



II. Dar testemunho na unidade e no diálogo



A comunhão entre as Igrejas particulares

53. O anúncio do Evangelho da esperança será mais forte e eficaz, se puder contar com o testemunho duma profunda unidade e comunhão na Igreja. Cada uma das Igrejas particulares não pode enfrentar sozinha o desafio que a espera. Há necessidade duma autêntica colaboração entre todas as Igrejas particulares do continente, que seja expressão da sua comunhão essencial; colaboração essa requerida também pela nova realidade europeia.95 Coloca-se neste âmbito o contributo dos organismos eclesiais do continente, a começar pelo Conselho das Conferências Episcopais Europeias. Trata-se dum instrumento eficaz para uma busca conjunta do caminhos mais idóneos para evangelizar a Europa.96 Com o « intercâmbio dos dons » entre as diversas Igrejas particulares, põem-se em comum as experiências e reflexões da Europa do Ocidente e do Oriente, do Norte e do Sul, assumindo orientações pastorais comuns; por isso, o referido Conselho tem-se revelado uma expressão sempre mais significativa do sentimento colegial entre os Bispos do continente, para juntos anunciarem, com ousadia e fidelidade, o nome de Jesus Cristo, única fonte de esperança para todos na Europa.

Unidos com todos os cristãos

54. Ao mesmo tempo, apresenta-se como um imperativo irrenunciável o dever duma fraterna e convicta colaboração ecuménica.

O êxito da evangelização está estreitamente relacionado com o testemunho de unidade que todos os discípulos de Cristo conseguirem dar: « Todos os cristãos são chamados a desempenhar esta missão de acordo com a própria vocação. A tarefa da evangelização compreende o comportamento de um com o outro e o comportamento conjunto dos cristãos, que deve partir do interior; evangelização e unidade, evangelização e ecumenismo estão indissoluvelmente ligados entre si ».97 Lembro aqui as palavras escritas por Paulo VI ao Patriarca ecuménico Atenágoras I: « Possa o Espírito Santo guiar-nos no caminho da reconciliação, para que a unidade das nossas Igrejas se torne um sinal cada vez mais luminoso de esperança e de conforto para toda a humanidade ».98

Em diálogo com as outras religiões

55. Como sucede em todo o serviço da « nova evangelização », também é necessário, no anúncio do Evangelho da esperança, que se procure instaurar um profundo e lúcido diálogo inter-religioso, de modo particular com o hebraísmo e o islamismo. Este diálogo, « entendido como método e meio para um conhecimento e enriquecimento recíproco, não está em contraposição com a missão ad gentes; pelo contrário, tem laços especiais com ela e constitui uma sua expressão ».99 Praticar o referido diálogo não significa deixar-se conquistar por uma « mentalidade de indiferentismo, muito difundida infelizmente também entre os cristãos, frequentemente radicada em concepções teológicas incorrectas e geradora de um relativismo religioso que leva a pensar que “tanto vale uma religião como outra” ».100

56. Trata-se, antes, de tomar uma consciência mais viva dos laços que unem a Igreja ao povo hebreu e do papel singular de Israel na história da salvação. Como se dissera já na I Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Europa e foi reiterado no último Sínodo, é preciso reconhecer as raízes comuns que existem entre o cristianismo e o povo hebreu, chamado por Deus a uma aliança que permanece irrevogável (cf. Rm 11, 29),101 tendo alcançado a sua plenitude definitiva em Cristo.

Por isso, é necessário promover o diálogo com o hebraísmo, sabendo que isso tem uma importância fundamental tanto para a autoconsciência cristã como para a superação das divisões entre as Igrejas, e trabalhar para que floresça uma nova primavera no relacionamento recíproco. Isto exige que cada comunidade eclesial procure, na medida em que as circunstâncias lho permitirem, praticar o diálogo e a colaboração com os crentes da religião hebraica. Uma tal prática requer, para além do mais, que « se recorde a parte de responsabilidade que os filhos da Igreja possam ter tido na origem e difusão duma atitude antisemita na história e que se peça perdão a Deus disso mesmo, promovendo na medida do possível encontros de reconciliação e de amizade com os filhos de Israel ».102 Mas, neste contexto, é forçoso lembrar também os numerosos cristãos que, sobretudo em períodos de perseguição e por vezes à custa da própria vida, ajudaram e salvaram estes seus « irmãos mais velhos ».

57. Trata-se ainda de deixar-se estimular a um melhor conhecimento das outras religiões, para se poder instaurar um colóquio fraterno com as pessoas que aderem a elas e vivem actualmente na Europa. De modo particular, é importante um correcto relacionamento com o islamismo. Tal relacionamento, como várias vezes ao longo destes anos se deram conta os Bispos europeus, « deve ser conduzido com prudência, com clareza de ideias acerca das suas possibilidades e dos seus limites, e com confiança no plano salvífico de Deus em relação a todos os seus filhos ».103 Para além do mais, é preciso ter consciência da notável diferença existente entre a cultura europeia, que tem profundas raízes cristãs, e o pensamento muçulmano.104

A tal propósito, é necessário preparar adequadamente os cristãos, que vivem diariamente em contacto com os muçulmanos, para conhecerem de modo objectivo o islamismo e saberem relacionar-se com ele; essa preparação deve ser dada particularmente aos seminaristas, aos presbíteros e a todos os agentes pastorais. Além disso é compreensível que a Igreja, quando pede às instituições europeias que tenham a peito promover a liberdade religiosa na Europa, insista ao mesmo tempo com países de diversa tradição religiosa, onde os cristãos são minoria, para uma reciprocidade de tratamento, isto é, ver lá garantida e observada a liberdade religiosa.105

Neste âmbito, « compreende-se a desilusão e o sentimento de frustração dos cristãos que acolhem, por exemplo na Europa, crentes de outras religiões dando-lhes a possibilidade de exercerem o seu culto, e que se vêem proibidos de exercer o culto cristão » 106 nos países onde tais crentes são a maioria tendo feito da sua religião a única autorizada e promovida. A pessoa humana tem direito à liberdade religiosa e, em qualquer parte do mundo, todos « devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana ».107



III. Evangelizar a vida social



Evangelização da cultura e inculturação do Evangelho

58. O anúncio de Jesus Cristo deve alcançar também a cultura europeia contemporânea. A evangelização da cultura deve mostrar que hoje, nesta Europa, também é possível viver em plenitude o Evangelho enquanto itinerário que dá sentido à existência. Para isso, a pastoral deve assumir a tarefa de plasmar uma mentalidade cristã na vida ordinária: na família, na escola, na comunicação social, no mundo da cultura, do trabalho e da economia, na política, nos tempos livres, na saúde e na doença. É preciso fazer uma serena análise crítica da situação cultural actual da Europa, avaliando as tendências salientes, os factos e as situações de maior relevância do nosso tempo à luz da centralidade de Cristo e da antropologia cristã.

Recordando a fecundidade cultural do cristianismo ao longo da história da Europa, também hoje é preciso mostrar a perspectiva evangélica, teórica e prática, da realidade e do homem. Além disso, considerando a grande relevância que têm as ciências e as realizações técnicas na cultura e na sociedade da Europa, a Igreja, através dos seus instrumentos de aprofundamento teórico e de iniciativa prática, é chamada a apresentar as suas sugestões acerca dos conhecimentos científicos e das suas aplicações, indicando o carácter insuficiente e inadequado duma concepção inspirada pelo cientismo, que pretende reconhecer como objectivamente válido apenas o saber experimental, e oferecendo os critérios éticos que o homem possui inscritos na sua natureza.108

59. No caminho da evangelização da cultura, coloca-se o importante serviço que realizam as escolas católicas. Há que trabalhar para que seja reconhecida uma efectiva liberdade de educação e a igualdade jurídica entre escolas estatais e não estatais. Estas são às vezes o único meio para apresentar a tradição cristã àqueles que andam longe da Igreja. Aos fiéis empenhados no mundo da escola, exorto-os a perseverarem na sua missão, irradiando a luz de Cristo Salvador nas suas específicas actividades educativas, científicas e académicas.109 De modo particular, há que valorizar o contributo dos cristãos que se consagram à pesquisa e à docência nas Universidades: com o « serviço do pensamento », eles transmitem às jovens gerações os valores dum património cultural enriquecido por dois milénios de experiência humanista e cristã. Convicto da importância das instituições académicas, peço ainda que, nas diversas Igrejas particulares, seja promovida uma adequada pastoral universitária, favorecendo deste modo a resposta às necessidades culturais actuais.110

60. Não se pode esquecer também o contributo positivo da valorização dos bens culturais da Igreja. De facto, podem constituir um factor peculiar para suscitar de novo um humanismo de inspiração cristã. Com a sua adequada conservação e lúcido aproveitamento, tais bens, enquanto testemunho vivo da fé professada ao longo dos séculos, podem tornar-se um válido instrumento para a nova evangelização e a catequese, convidando a redescobrir o sentido do mistério.

Ao mesmo tempo, sejam promovidas novas expressões artísticas da fé, através de um diálogo assíduo com os cultores da arte.111 Com efeito, a Igreja tem necessidade da arte, literatura, música, pintura, escultura e arquitectura, porque « deve tornar perceptível e até o mais fascinante possível o mundo do espírito, do invisível, de Deus » 112 e porque a beleza artística, como reflexo do Espírito de Deus, é um cifrado do mistério, um convite a buscar o rosto de Deus que se tornou visível em Jesus de Nazaré.

A educação dos jovens para a fé

61. Encorajo, depois, a Igreja na Europa a prestar crescente atenção à educação dos jovens para a fé. Quando se perscruta o futuro, o nosso pensamento não pode deixar de fixar-se neles: devemos encontrar-nos com a inteligência, o coração, o carácter dos jovens, para lhes oferecer uma sólida formação humana e cristã.

Em qualquer ocasião que registe a participação de muitos jovens, não é difícil descobrir a presença de diversas atitudes neles. Constata-se o desejo de estarem juntos para saírem do isolamento, uma sede mais ou menos consciente de absoluto; encontra-se neles uma fé secreta que pede para ser purificada pois deseja seguir o Senhor; intui-se a decisão de continuarem o caminho já abraçado e a exigência de partilharem a fé.

62. Para tal, é preciso renovar a pastoral juvenil, estruturando-a segundo as faixas etárias, adaptando-a às exigências próprias de crianças, adolescentes e jovens. Além disso, é necessário torná-la mais orgânica e coerente com as questões dos jovens ouvidos pacientemente para serem protagonistas da evangelização e da edificação da sociedade.

Neste caminho, devem-se promover ocasiões de encontro entre os jovens, nos quais se favoreça um clima de escuta mútua e de oração. Não é preciso ter medo de ser exigentes com eles no que se refere ao seu crescimento espiritual. Seja-lhes indicado o caminho da santidade, animando-os a tomarem decisões empenhativas no seguimento de Jesus, sustentados por uma intensa vida sacramental. Assim, poderão resistir às seduções duma cultura, que muitas vezes lhes propõe apenas valores efémeros ou mesmo contrários ao Evangelho, e tornarem-se eles próprios capazes de mostrar uma mentalidade cristã em todos os âmbitos da existência, incluindo os de divertimento e passatempo.113

Tenho ainda vivos nos olhos os rostos felizes de tantos jovens, verdadeira esperança da Igreja e do mundo, sinal eloquente do Espírito que não Se cansa de suscitar novas energias. Encontrei-os quer no meu peregrinar pelos vários países quer nas inesquecíveis Jornadas Mundiais da Juventude.114

A solicitude pelos mass-media

63. Vista a importância dos meios de comunicação social, a Igreja na Europa não pode deixar de reservar uma particular atenção ao variegado mundo dos mass-media. Isso comporta, para além do mais, a adequada formação dos cristãos que trabalham nos mass-media e dos seus utentes tendo por objectivo um bom domínio das novas linguagens. Há-de pôr-se um cuidado especial na escolha de pessoas preparadas para a comunicação da mensagem através dos mass-media. Será muito útil também um intercâmbio entre as Igrejas de informações e estratégias sobre os diversos aspectos e iniciativas relativos a tal comunicação. E não se deve transcurar a criação de meios locais, mesmo a nível paroquial, de comunicação social.

Ao mesmo tempo, é preciso entrar dentro dos processos da comunicação social, para torná-la mais respeitadora da verdade da informação e da dignidade da pessoa humana. A este propósito, convido os católicos a tomarem parte na elaboração de um código deontológico para todos os que trabalham no sector da comunicação social, deixando-se guiar pelos critérios recentemente indicados pelos organismos competentes da Santa Sé 115 e que os Bispos assim tinham elencado no Sínodo: « Respeito pela dignidade da pessoa humana, pelos seus direitos, incluindo o direito à própria privacidade; serviço à verdade, à justiça e aos valores humanos, culturais e espirituais; estima pelas diversas culturas, evitando que se dissolvam na massa, tutela dos grupos minoritários e dos mais débeis; busca do bem comum, acima dos interesses particulares ou do predomínio de critérios meramente económicos ».116

A missão « ad gentes »

64. Um anúncio de Jesus Cristo e do seu Evangelho, que se limitasse unicamente ao âmbito europeu, acusaria sintomas de uma inquietante carência de esperança. A obra de evangelização é animada por verdadeira esperança cristã, quando se abre para os horizontes universais, levando a oferecer gratuitamente a todos aquilo que, por nossa vez, tínhamos recebido em dom. A missão « ad gentes » torna-se assim expressão duma Igreja plasmada pelo Evangelho da esperança, que se renova e rejuvenesce sem cessar. Ao longo dos séculos, foi esta a consciência da Igreja na Europa: multidões sem conta de missionários e missionárias, saindo ao encontro de outros povos e civilizações, anunciaram o Evangelho de Jesus Cristo às nações do mundo inteiro.

Igual ardor missionário deve animar a Igreja na Europa actual. A diminuição do número de presbíteros e consagrados, em certos países, não deve impedir qualquer Igreja particular de assumir as exigências da Igreja universal. Cada uma procurará favorecer a preparação para a missão ad gentes, a fim de poder responder generosamente à solicitação que ainda se levanta de muitos povos e nações, desejosos de conhecer o Evangelho. As Igrejas doutros continentes, sobretudo da Ásia e da África, têm os olhos postos ainda nas Igrejas da Europa, esperando que elas continuem a cumprir a sua vocação missionária. Os cristãos na Europa não podem falhar à sua história.117

O Evangelho: livro para a Europa de hoje e de sempre

65. Ao cruzar a Porta Santa na abertura do Grande Jubileu do ano 2000, tinha bem erguido à vista da Igreja e do mundo o livro do Evangelho. Possa este gesto, realizado também por cada Bispo nas respectivas catedrais do mundo, indicar o compromisso que espera hoje e sempre a Igreja no nosso continente.

Igreja na Europa, entra no novo milénio com o Livro do Evangelho! Todos os fiéis acolham esta exortação conciliar: « Aprendam “a sublime ciência de Jesus Cristo” (Fil 3, 8) com a leitura frequente das divinas Escrituras, porque “a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo” ».118 Que a Bíblia Sagrada continue a ser um tesouro para a Igreja e para cada cristão: no estudo cuidadoso da Palavra, encontraremos alimento e força para realizar quotidianamente a nossa missão.

Tomemos este Livro nas nossas mãos! Recebamo-lo do Senhor, que continuamente no-lo oferece através da sua Igreja (cf. Ap 10, 8). Comamo-lo (cf. Ap 10, 9), para que se torne vida da nossa vida. Saboreemo-lo profundamente: embora sem nos poupar canseiras, conseguirá dar-nos alegria porque é doce como o mel (cf. Ap 10, 9-10). Ficaremos cheios de esperança e capazes de comunicá-la a todo o homem e mulher que encontrarmos no nosso caminho.



CAPÍTULO IV

CELEBRAR O EVANGELHO DA ESPERANÇA

« Ao que está sentado sobre o trono
e ao Cordeiro sejam dadas
acções de graças, honra, glória e poder
para todo o sempre » (Ap 5, 13)

Uma comunidade orante

66. O Evangelho da esperança, anúncio da verdade que liberta (cf. Jo 8, 32), deve ser celebrado. Diante do Cordeiro do Apocalipse, tem início uma solene liturgia de louvor e de adoração: « Ao que está sentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas acções de graças, honra, glória e poder para todo o sempre » (Ap 5, 13). A própria visão, que revela Deus e o sentido da história, tem lugar « no dia do Senhor » (Ap 1, 10), o dia da ressurreição recordado pela assembleia dominical.

A Igreja, que acolhe esta revelação, é uma comunidade que reza. Ao rezar, escuta o seu Senhor e aquilo que o Espírito lhe diz (cf. Ap 2, 1-3. 22); adora, louva, agradece, e também implora a vinda do Senhor: « Vem, Senhor Jesus! » (Ap 22, 1620), afirmando deste modo que só d'Ele espera a salvação.

Também é pedido a ti, Igreja de Deus que vives na Europa, para seres comunidade que reza, celebrando o teu Senhor através dos sacramentos, da liturgia e da vida inteira. Na oração, descobrirás a presença vivificante do Senhor. Deste modo, enraizando n'Ele toda a tua acção, poderás propor de novo aos europeus o encontro com Ele mesmo, esperança verdadeira e única capaz de satisfazer plenamente o anseio de Deus, oculto nas diversas formas de busca religiosa que surgem na Europa contemporânea.



I. Redescobrir a liturgia

O sentido religioso na Europa actual

67. Apesar de haver vastas áreas de descristianização no continente europeu, existem todavia sinais que ajudam a esboçar o rosto de uma Igreja que, acreditando, anuncia, celebra e serve o seu Senhor. De facto, não faltam exemplos de cristãos autênticos que vivem momentos de silêncio contemplativo, participam fielmente em iniciativas espirituais, vivem na sua existência diária o Evan- gelho e testemunham-no nos vários sectores das suas obrigações. Além disso, podem-se divisar manifestações de um « povo santo » que demonstram como também é possível na Europa actual viver o Evangelho a nível pessoal e numa autêntica experiência comunitária.

68. A par de muitos exemplos de fé genuína, existe na Europa também uma religiosidade vaga e, por vezes, insidiosa. Os seus sinais são frequentemente genéricos e superficiais, se não mesmo contraditórios nas próprias pessoas que os fornecem. Trata-se de fenómenos evidentes de fuga para o espiritualismo, sincretismo religioso e esotérico, procura de factos extraordinários a todo o custo, chegando-se mesmo a opções transviadas, como a adesão a seitas perigosas ou a experiências pseudo-religiosas.

O generalizado desejo de alimento espiritual deve ser acolhido com compreensão e purificado. Ao homem que se dá conta, embora confusamente, de não poder viver só de pão, é necessário que a Igreja possa testemunhar de forma persuasiva a resposta que Jesus deu ao tentador: « Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus » (Mt 4, 4).

Uma Igreja que celebra

69. No contexto da sociedade actual, frequentemente fechada à transcendência, sufocada por comportamentos consumistas, presa fácil de antigas e novas idolatrias e, ao mesmo tempo, sedenta de algo que ultrapasse o imediato, a tarefa que espera a Igreja na Europa é simultaneamente árdua e entusiasmante. Tal tarefa consiste em redescobrir o sentido do « mistério »; renovar as celebrações litúrgicas para que sejam sinais mais eloquentes da presença de Cristo Senhor; proporcionar novos espaços de silêncio, oração e contemplação; voltar aos sacramentos, sobretudo à Eucaristia e à Penitência, como fontes de liberdade e de nova esperança.

Por isso, a ti, Igreja que vives na Europa, dirijo um premente convite: sê uma Igreja que reza, louva a Deus, reconhece-Lhe o primado absoluto e exalta-O com jubilosa fé. Redescobre o sentido do mistério: vive-o com humilde gratidão; testemunha-o com alegria convicta e contagiante. Celebra a salvação de Cristo: acolhe-a como um dom que faz de ti seu sacramento; faz da tua vida o verdadeiro culto espiritual agradável a Deus (cf. Rm 12, 1).

O sentido do mistério

70. Alguns sintomas revelam uma atenuação do sentido do mistério nas próprias celebrações litúrgicas, quando o objectivo destas é precisamente reforçá-lo. Por isso, é urgente que se reavive na Igreja o autêntico sentido da liturgia. Esta, como foi recordado pelos padres sinodais,119 é instrumento de santificação, celebração da fé da Igreja, meio de transmissão da fé. Constitui, juntamente com a Sagrada Escritura e os ensinamentos dos Padres da Igreja, uma fonte viva de autêntica e sólida espiritualidade. Como bem salienta a tradição das venerandas Igrejas do Oriente, os fiéis, através da liturgia, entram em comunhão com a Santíssima Trindade, experimentando como dom da graça a sua participação na natureza divina. Ela torna-se assim antecipação da Bem-aventurança final e participação na glória celeste.

71. Nas celebrações, é preciso pôr novamente ao centro Jesus, para deixar-se iluminar e guiar por Ele. Podemos encontrar aqui uma das respostas mais eficazes que as nossas Comunidades são chamadas a dar a uma religiosidade vaga e inconsistente. A liturgia da Igreja não tem como objectivo aplacar os desejos e os medos do homem, mas escutar e acolher Jesus, o Vivente, que honra e louva o Pai, para louvá-Lo e honrá-Lo com Ele. As celebrações eclesiais proclamam que a nossa esperança vem de Deus, por meio de Jesus nosso Senhor.

Trata-se de viver a liturgia como obra da Santíssima Trindade. Nos mistérios celebrados, é o Pai que trabalha para nós; é Ele que nos fala, perdoa, escuta, dá o seu Espírito; a Ele nos dirigimos, a Ele escutamos, louvamos, invocamos. É Jesus que actua para a nossa santificação, tornando-nos participantes do seu mistério. É o Espírito Santo que age com a sua graça e faz de nós o Corpo de Cristo, a Igreja.

A liturgia deve ser vivida como anúncio e antecipação da glória futura, meta última da nossa esperança. De facto, como ensina o Concílio, « pela liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos nos dirigimos, (...) até Nosso Senhor Jesus Cristo aparecer como nossa vida e nós aparecermos com Ele na glória ».120

Formação litúrgica

72. Se já tanta estrada se fez depois do Concílio Ecuménico Vaticano II para viver o sentido autêntico da liturgia, resta ainda muita por fazer. São necessárias uma contínua renovação e uma constante formação de todos: ordenados, consagrados e leigos.

A verdadeira renovação, longe de servir-se de actos arbitrários, consiste em desenvolver cada vez melhor a consciência do sentido do mistério, para fazer das liturgias momentos de comunhão com o mistério grande e sagrado da Santíssima Trindade. Celebrando as acções sagradas como relacionamento com Deus e acolhimento dos seus dons, expressão de autêntica vida espiritual, a Igreja na Europa poderá verdadeiramente alimentar a sua esperança e oferecê-la a quem a perdeu.

73. Para isso, é necessário um grande esforço de formação. Tendo como finalidade favorecer a compreensão do verdadeiro sentido das celebrações da Igreja e ainda uma adequada instrução sobre os ritos, tal formação requer uma autêntica espiritualidade e a educação para vivê-la em plenitude.121 Por conseguinte, há que promover ainda mais uma verdadeira « mistagogia litúrgica », com a participação activa de todos os fiéis, cada qual segundo as próprias competências, nas acções sagradas, particularmente na Eucaristia.



II. Celebrar os sacramentos

74. Um lugar de grande relevo há-de ser reservado à celebração dos sacramentos, enquanto actos de Cristo e da Igreja, ordenados a prestar culto a Deus, à santificação dos homens e à edificação da Comunidade eclesial. Sabendo que neles age o próprio Cristo por meio do Espírito Santo, sejam celebrados com o máximo cuidado e criando as condições adequadas. As Igrejas particulares do continente terão a peito reforçar a sua pastoral dos sacramentos para dar a conhecer a sua verdade profunda. Os padres sinodais puseram em evidência esta necessidade, para contrastar dois perigos: por um lado, certos ambientes eclesiais parecem ter perdido o genuíno sentido do sacramento e poderiam banalizar os mistérios celebrados; por outro, muitos baptizados, seguindo costumes e tradições, continuam a recorrer aos sacramentos em momentos significativos da sua existência, mas não vivem de acordo com as indicações da Igreja.122

A Eucaristia

75. A Eucaristia, dom supremo de Cristo à Igreja, torna sacramentalmente presente o sacrifício de Cristo oferecido pela nossa salvação: « Na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa ».123 Nela, « fonte e centro de toda a vida cristã »,124 bebe a Igreja, na sua peregrinação, achando lá a fonte de toda a esperança. De facto, a Eucaristia « dá estímulo à nossa caminhada na história, lançando uma semente de activa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres ».125

Todos somos convidados a confessar a fé na Eucaristia, « penhor da glória futura », seguros de que a comunhão com Cristo, agora vivida como peregrinos na existência mortal, antecipa o encontro supremo daquele dia em que « seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é » (1 Jo 3, 2). A Eucaristia é uma « amostra de eternidade no tempo », é presença divina e comunhão com ela; memorial da Páscoa de Cristo, é por sua natureza portadora da graça na história humana. Abre para o futuro de Deus; sendo comunhão com Cristo, com o seu Corpo e o seu Sangue, ela é participação na vida eterna de Deus.126

A Reconciliação

76. Juntamente com a Eucaristia, deve desempenhar papel fundamental na recuperação da esperança o sacramento da Reconciliação: « De facto, a experiência pessoal do perdão recebido de Deus por cada um de nós é fundamento essencial de esperança para o nosso futuro ».127 Uma das raízes para o desânimo que hoje invade a muitos, há que buscá-la na incapacidade de se reconhecerem pecadores e de se deixarem perdoar; tal incapacidade fica-se a dever frequentemente à solidão de quem, vivendo como se Deus não existisse, não tem ninguém a quem pedir perdão. Ao invés, quem se reconhece pecador e se entrega à misericórdia do Pai celeste, experimenta a alegria duma verdadeira libertação e pode prosseguir ao longo do caminho da vida sem se fechar na própria miséria.128 Deste modo, recebe a graça de um novo início e reencontra motivos para esperar.

Por isso, é necessário que o sacramento da Reconciliação seja revitalizado na Igreja da Europa. Há que reafirmar, porém, que a forma deste sacramento é a confissão pessoal dos pecados seguida da absolvição individual. Tal encontro do penitente com o sacerdote deve ser promovido de todas as formas previstas no rito do Sacramento. Perante a perda generalizada do sentido do pecado e o acentuar-se de uma mentalidade eivada de relativismo e subjectivismo em campo moral, é preciso que cada comunidade eclesial providencie uma séria formação das consciências.129 Os padres sinodais insistiram para que seja claramente reconhecida a verdade do pecado pessoal e a necessidade do perdão pessoal de Deus através do ministério do sacerdote. As absolvições colectivas não são uma forma alternativa de administrar o sacramento da Reconciliação.130

77. Dirijo-me aos sacerdotes, exortando-os a disponibilizarem-se generosamente para atender de confissão e a darem eles mesmos o exemplo aproximando-se regularmente do sacramento da Penitência. Recomendo-lhes que tenham o cuidado de actualizar-se no campo da teologia moral, para poderem enfrentar com competência as problemáticas ultimamente surgidas no âmbito da moral pessoal e social. Além disso, prestem particular atenção às condições concretas de vida em que se encontram os fiéis e procurem pacientemente levá-los a reconhecerem as exigências da lei moral cristã, ajudando-os a viverem o sacramento como um encontro feliz com a misericórdia do Pai celeste.131

Oração e vida

78. A par da celebração eucarística, é preciso promover também outras formas de oração comunitária,132 ajudando a descobrir a ligação que existe entre elas e a oração litúrgica. De modo particular, conservando viva a tradição da Igreja latina, sejam promovidas as diversas manifestações do culto eucarístico fora da Missa: adoração pessoal, exposição e procissão, entendidas como expressão de fé na presença real do Senhor que permanece no Sacramento do Altar.133 Na celebração pessoal e comunitária da Liturgia das Horas, que se reveste de singular valor mesmo para os fiéis-leigos, como lembrou o Concílio Vaticano II,134 procure-se ensinar a ver a referida conexão com o mistério eucarístico. As famílias sejam incitadas a reservar espaço para a oração feita em comum, podendo assim interpretar à luz do Evangelho toda a existência matrimonial e familiar. Deste ponto de partida e escutando a Palavra de Deus, formar-se-á aquela liturgia doméstica que acompanhará os sucessivos momentos da família.135

Qualquer forma de oração comunitária pressupõe a oração individual. É entre a pessoa e Deus que nasce aquele colóquio autêntico que se exprime no louvor, na acção de graças, na súplica dirigida ao Pai por Jesus Cristo e no Espírito Santo. Nunca seja transcurada a oração pessoal, que é de algum modo a respiração do cristão. Na educação para ela, leve-se também a descobrir a sua ligação com a oração litúrgica.

79. Reserve-se uma especial atenção também à piedade popular.136 Esta, presente em larga escala nas diversas regiões da Europa através das confrarias, das peregrinações e procissões nos numerosos santuários, enriquece o caminho do ano litúrgico, inspirando usos e costumes familiares e sociais. Todas estas formas devem ser objecto duma cuidadosa pastoral de promoção e renovamento, ajudando a desenvolver tudo o que nelas seja genuína expressão da sabedoria do povo de Deus. Tal é, sem dúvida, o santo rosário. Neste ano que lhe é dedicado, apraz-me recomendar mais uma vez a sua recitação, porque « o rosário, quando descoberto no seu pleno significado, conduz ao âmago da vida cristã, oferecendo uma ordinária e fecunda oportunidade espiritual e pedagógica para a contemplação pessoal, a formação do povo de Deus e a nova evangelização ».137

No campo da piedade popular, é preciso vigiar constantemente sobre aspectos ambíguos de determinadas manifestações, preservando-as de desvios secularistas, de consumismos imprudentes ou mesmo de riscos de superstição, para mantê-las sob formas maturas e autênticas. Há que realizar uma obra pedagógica, explicando como a piedade popular deve ser vivida sempre de harmonia com a liturgia da Igreja e em conexão com os sacramentos.

80. Não se pode esquecer que o « culto espiritual agradável a Deus » (cf. Rm 12, 1) realiza-se sobretudo na existência quotidiana, vivida na caridade através do dom livre e generoso de si mesmo, inclusive em momentos de aparente impotência. Assim, a vida é animada por uma esperança inabalável, porque assente apenas na certeza do poder de Deus e da vitória de Cristo: é uma vida repleta das consolações de Deus, com as quais somos chamados, por nossa vez, a consolar aqueles que encontrarmos no nosso caminho (cf. 2 Cor 1, 4).



O dia do Senhor

81. Momento paradigmático e altamente evocativo para a celebração do Evangelho da esperança é o dia do Senhor.

No contexto actual, as circunstâncias tornam precária a possibilidade de os cristãos viverem plenamente o domingo como dia do encontro com o Senhor. Não é raro acontecer que fique reduzido a « fim de semana », a mero tempo de evasão. Por isso, é preciso uma acção pastoral articulada a nível educativo, espiritual e social, que ajude a viver o seu verdadeiro sentido.

82. Renovo, pois, o convite para se recuperar o significado mais profundo do dia do Senhor: 138 seja santificado com a participação na Eucaristia e com um repouso rico de alegria cristã e de fraternidade. Seja celebrado como centro de todo o culto, incessante prenúncio da vida sem fim, que reaviva a esperança e anima a caminhar. Por isso, não haja medo de defendê-lo contra qualquer ataque e esforçar-se por que seja salvaguardado na organização do trabalho, para que possa ser um dia para o homem a bem da sociedade inteira. De facto, se o domingo for privado do seu significado originário e deixar de haver nele possibilidade de dar espaço adequado à oração, ao repouso, à união e à alegria, pode acontecer que « o homem permaneça encerrado num horizonte tão restrito, que já não lhe permite ver o “céu”. Então, mesmo bem trajado, torna-se intimamente incapaz de “festejar” ».139 E, sem a dimensão da festa, a esperança não encontraria uma casa onde habitar.



CAPÍTULO V

SERVIR O EVANGELHO DA ESPERANÇA

« Conheço as tuas obras, a tua caridade,
o teu serviço, a tua fé, a tua paciência » (Ap 2, 19)



O caminho do amor

83. A palavra que o Espírito diz às Igrejas contém um juízo sobre a sua vida. Este debruça-se sobre factos e comportamentos: « Conheço as tuas obras » é a introdução que, à maneira de um refrão e com poucas variações, aparece nas cartas escritas às sete Igrejas. As obras revelam-se positivas, quando são fruto do esforço, da paciência, das provas suportadas, da tribulação, da pobreza, da fidelidade nas perseguições, da caridade, da fé, do serviço. Neste sentido, podem ser lidas como a descrição duma Igreja que, além de anunciar e celebrar a salvação que lhe vem do Senhor, também a « vive » na sua existência concreta.

Para servir o Evangelho da esperança, é pedido também à Igreja na Europa que percorra a estrada do amor. Trata-se duma estrada que passa através da caridade evangelizadora, do empenho multiforme no serviço, da opção por uma generosidade sem tréguas nem confins.



I. O serviço da caridade

Na comunhão e solidariedade

84. A caridade, recebida e oferecida, é para qualquer pessoa a experiência originária donde nasce a esperança. « O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se não o experimenta e não o assume, se não participa nele vivamente ».140

Por isso, à Igreja na Europa actual põe-se o desafio de ajudar o homem contemporâneo a experimentar o amor de Deus Pai e de Cristo no Espírito Santo, através do testemunho da caridade, a qual por si mesma possui uma intrínseca força evangelizadora.

O « Evangelho », este anúncio feliz para todo o homem, consiste em última análise nisto: Deus amou-nos primeiro (cf. 1 Jo 4, 10.19); Jesus amou-nos até ao fim (cf. Jo 13, 1). Por intermédio do dom do Espírito, é oferecida aos crentes a caridade de Deus, tornando-os participantes da sua própria capacidade de amar: a caridade preme no coração de cada discípulo e da Igreja inteira (cf. 2 Cor 5, 14). Precisamente porque dada por Deus, a caridade torna-se mandamento para o homem (cf. Jo 13, 34).

Viver na caridade torna-se, assim, um anúncio feliz para toda a pessoa, tornando visível o amor de Deus, que não abandona ninguém. Enfim, significa dar ao homem perdido verdadeiras razões para continuar a esperar.

85. É vocação da Igreja, enquanto « sinal credível – embora sempre inadequado – do amor concreto, fazer encontrar os homens e mulheres com o amor de Deus e de Cristo, que vem à procura deles ».141 « Sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano »,142 a Igreja confirma-se como tal quando as pessoas, as famílias e as comunidades vivem intensamente o Evangelho da caridade. Por outras palavras, as nossas comunidades eclesiais são chamadas a ser verdadeiras escolas de comunhão.

Por sua própria natureza, o testemunho da caridade deve estender-se para além das fronteiras da comunidade eclesial, envolvendo toda a pessoa, de tal modo que o amor por todos os homens se torne estímulo de autêntica solidariedade em toda a vida social. Quando a Igreja serve a caridade, simultaneamente faz crescer a « cultura da solidariedade », concorrendo assim para dar nova vida aos valores universais da convivência humana.

Nesta perspectiva, é preciso redescobrir o sentido autêntico do voluntariado cristão. Este, nascido da fé e por ela continuamente alimentado, deve saber conjugar capacidade profissional e amor genuíno, impelindo aqueles que o praticam a « elevarem os sentimentos de simples filantropia até à altura da caridade de Cristo; a reavivarem diariamente, por entre fadigas e cansaços, a consciência da dignidade de cada homem; a irem à procura das carências das pessoas, iniciando – se necessário – novos caminhos em lugares onde a necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos consistentes ».143



II. Servir o homem na sociedade

Devolver a esperança aos pobres

86. Pede-se, à Igreja inteira, para dar novamente esperança aos pobres. Acolhê-los e servi-los significa, para ela, acolher e servir Cristo (cf. Mt 25, 40). O amor preferencial pelos pobres é uma dimensão necessária do ser cristão e do serviço do Evangelho. Amá-los e testemunhar-lhes que são particularmente amados por Deus significa reconhecer que as pessoas valem por si mesmas, independentemente das condições económicas, culturais, sociais em que se encontrem, ajudando-as a valorizarem as suas potencialidades.

87. Depois, é preciso deixar-se interpelar pelo fenómeno do desemprego, que constitui um grave flagelo social em muitas nações da Europa. A isto, há que acrescentar os problemas ligados ao aumento dos fluxos migratórios. À Igreja, pede-se que continue a recordar que o trabalho constitui um bem pelo qual se deve responsabilizar toda a sociedade.

Ao propor os critérios éticos que devem guiar o mercado e a economia segundo um escrupuloso respeito da centralidade do homem, a Igreja não desistirá de procurar dialogar com as pessoas empenhadas a nível político, sindical e empresarial.144 Tudo isto deve tender à edificação de uma Europa vista como comunidade de povos e de pessoas, uma comunidade solidária na esperança, não se deixando sujeitar exclusivamente às leis do mercado, mas decididamente intencionada a salvaguardar a dignidade do homem mesmo nas relações económicas e sociais.

88. Seja dado adequado relevo também à pastoral dos doentes. Considerando que a doença é uma situação que levanta questões essenciais sobre o sentido da vida, « numa sociedade do progresso e da eficiência, numa cultura caracterizada pela idolatria do corpo, pela remoção do sofrimento e da dor e pelo mito da perene juventude »,145 o cuidado dos doentes deve ser tido como uma das prioridades. Com tal finalidade, há que promover, por um lado, uma conveniente presença pastoral nos diversos centros do sofrimento, por exemplo através da solicitude de capelães hospitalares, de membros de associações de voluntariado, de instituições sanitárias eclesiásticas; e, por outro, um apoio às famílias dos doentes. Além disso, será necessário acompanhar o pessoal médico e paramédico com meios pastorais adequados, que o sustente na exigente vocação ao serviço dos doentes. Com efeito, na sua actividade os agentes sanitários prestam diariamente um nobre serviço à vida. Deles se espera que dêem aos seus pacientes também aquele apoio espiritual especial que supõe o calor dum autêntico contacto humano.

89. Por último, não se pode esquecer que às vezes é feito um uso indevido dos bens da terra. De facto, faltando à sua missão de cultivar e guardar a terra com sabedoria e amor (cf. Gn 2, 15), o homem tem em muitas regiões devastado bosques e planuras, poluído as águas, tornado irrespirável o ar, alterado os sistemas hidrogeológicos e atmosféricos e desertificado imensas extensões.

Neste caso, servir o Evangelho da esperança significa empenhar-se de modo novo num correcto uso dos bens da terra,146 estimulando uma atenção tal que, além de tutelar os habitat naturais, defenda a qualidade da vida das pessoas, preparando para as gerações futuras um ambiente mais harmonioso com o projecto do Criador.

A verdade do matrimónio e da família

90. A Igreja na Europa, em todas as suas articulações, deve propor sem cessar e fielmente a verdade do matrimónio e da família.147 É uma necessidade que sente arder-lhe dentro, porque sabe que um tal dever é qualificante para ela em virtude da missão evangelizadora que lhe foi confiada pelo seu Esposo e Senhor, e que hoje se apresenta com excepcional premência. De facto, não poucos factores culturais, sociais e políticos concorrem para desencadear uma crise cada vez mais evidente da família. Tais factores comprometem de várias formas a verdade e a dignidade da pessoa humana e põem em discussão, desfigurando-o, o próprio conceito de família. O valor da indissolubilidade matrimonial é ignorado sempre mais; reclamam-se formas de reconhecimento legal para as convivências de facto, equiparando-as aos matrimónios legítimos; não faltam tentativas para serem aceites modelos com casais onde a diferença sexual não resulta essencial.

Neste contexto, pede-se à Igreja que anuncie com renovado vigor aquilo que diz o Evangelho sobre o matrimónio e a família, para individuar o seu significado e valor no desígnio salvífico de Deus. É preciso, de modo particular, reiterar que ambas as instituições são realidades que derivam da vontade de Deus. Impõe-se redescobrir a verdade da família, enquanto íntima comunhão de vida e de amor,148 aberta à geração de novas pessoas; e também a sua dignidade de « igreja doméstica » e a sua participação na missão da Igreja e na vida da sociedade.

91. Segundo os padres sinodais, é necessário reconhecer que muitas famílias, pela sua existência vivida quotidianamente no amor, são testemunhas visíveis da presença de Jesus que as acompanha e sustenta com o dom do seu Espírito. Para apoiá-las no seu caminho, dever-se-á aprofundar a teologia e a espiritualidade do matrimónio e da família; proclamar, com firmeza, integralmente e mediante exemplos eficazes, a verdade e a beleza da família baseada no matrimónio, visto como união estável e fecunda dum homem e duma mulher; promover, em cada comunidade eclesial, uma pastoral familiar adequada e orgânica. Ao mesmo tempo é preciso prestar, com materna solicitude por parte da Igreja, uma ajuda àqueles que se encontram em situações difíceis, como, por exemplo, mães solteiras, pessoas separadas, divorciadas, filhos abandonados. Em todas as circunstâncias é necessário estimular, guiar e apoiar o devido protagonismo das famílias, singularmente ou associadas, na Igreja e na sociedade, e diligenciar para que se promovam políticas familiares autênticas e adequadas por parte dos diversos Estados e da própria União Europeia.149

92. Um cuidado particular deve ser reservado à educação para o amor nos jovens e noivos, através de específicos itinerários de preparação para a celebração do sacramento do matrimónio, ajudando-os a viverem castamente até esse momento. Na sua obra educadora, a Igreja estenderá a sua solicitude aos recém-casados, acompanhando-os também depois da celebração das núpcias.

93. Finalmente, a Igreja é chamada a atender, com materna bondade, àquelas situações matrimoniais onde a esperança facilmente sucumbe. Em particular, « diante de inúmeras famílias desfeitas, a Igreja sente-se chamada, não a exprimir um juízo severo e insensível, mas antes a fazer penetrar dentro de tantos dramas humanos a luz da palavra de Deus, acompanhada pelo testemunho da sua misericórdia. É com este espírito que a pastoral familiar procura ocupar-se também das situações dos crentes que se divorciaram e voltaram a casar pelo civil. Eles não estão excluídos da comunidade; pelo contrário, são convidados a participar na sua vida, percorrendo um caminho de crescimento no espírito das exigências evangélicas. Sem esconder a verdade da desordem moral objectiva em que se encontram e das consequências que daí derivam para a prática sacramental, a Igreja pretende mostrar-lhes toda a sua solidariedade materna ».150

94. Se, para servir o Evangelho da esperança, é necessário reservar uma adequada e prioritária atenção à família, inegável é também que as próprias famílias têm uma tarefa insubstituível a desempenhar relativamente ao mesmo Evangelho da esperança. Por isso, com confiança e afecto, renovo a todas as famílias cristãs, que vivem nesta Europa, este convite: « Famílias, tornai-vos naquilo que sois! ». E vós sois uma reposição viva da caridade de Deus: de facto, tendes a « missão de guardar, revelar e comunicar o amor, qual reflexo vivo e participação real do amor de Deus pela humanidade e do amor de Cristo Senhor pela Igreja, sua esposa ».151

Vós sois o « santuário da vida (...); o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico ».152

Vós sois o fundamento da sociedade, enquanto lugar primeiro de « humanização » da pessoa e da vida civil,153 modelo para a instauração de relações sociais vividas no amor e na solidariedade.

Sede vós mesmas testemunhas credíveis do Evangelho da esperança! É que vós sois « Gaudium et spes »,154 alegria e esperança.

Servir o Evangelho da vida

95. O envelhecimento e diminuição da população que se verifica em diversos países da Europa não pode deixar de ser motivo de preocupação; de facto, a queda da natalidade é sintoma de uma relação não serena com o próprio futuro; é uma manifestação clara de falta de esperança, é sinal daquela « cultura da morte » que atravessa a sociedade actual.155

A par da queda da natalidade, há que recordar outros sinais que concorrem para se formar o eclipse do valor da vida e desencadear uma espécie de conjura contra a mesma. Entre eles, conta-se antes de mais a difusão do aborto, recorrendo inclusive a preparados químico-farmacológicos que tornam possível praticá-lo sem ter de recorrer ao médico e subtraindo-se a qualquer forma de responsabilidade social; isto é favorecido pela presença no ordenamento de muitos Estados do continente de legislações permissivas de um acto que permanece um « crime abominável »156 e sempre constitui uma desordem moral grave. Não se podem esquecer também os atentados perpetrados através de « intervenções sobre embriões humanos, que, apesar de visar objectivos em si legítimos, implicam inevitavelmente a sua morte », ou por meio do emprego desonesto das técnicas de diagnóstico pré-natal, postas ao serviço não de possíveis terapias precoces, mas de « uma mentalidade eugenista que aceita o aborto selectivo ».157

Há que mencionar ainda a tendência, que se regista em algumas partes da Europa, a considerar que se possa permitir pôr fim conscientemente à vida própria ou de outro ser humano: daí a difusão da eutanásia, mascarada ou actuada às claras, não faltando solicitações e tristes exemplos de legalização dela.

96. À vista deste estado de coisas, é necessário « servir o Evangelho da vida » nomeadamente através de « uma mobilização geral das consciências e um esforço ético comum, para se actuar uma grande estratégia a favor da vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida ».158 Este é um desafio imenso que temos a responsabilidade de enfrentar, sabendo que « o futuro da civilização europeia depende muito duma decidida defesa e promoção dos valores da vida, núcleo do seu património cultural »; 159 trata-se efectivamente de restituir à Europa a sua verdadeira dignidade, ou seja, a dignidade de ser um lugar onde toda a pessoa veja afirmada a sua incomparável dignidade.

De bom grado faço minhas estas palavras dos padres sinodais: « O Sínodo dos Bispos europeus incita as comunidades cristãs a fazerem-se evangelizadoras da vida. Encoraja os esposos e as famílias cristãs a apoiarem-se mutuamente na fidelidade à sua missão de colaboradores de Deus na geração e educação de novas criaturas; vê com apreço toda a generosa tentativa de reagir contra o egoísmo no âmbito da transmissão da vida, que é alimentado por falsos modelos de segurança e felicidade; pede aos Estados e à União Europeia que actuem políticas de longo alcance, que promovam as condições concretas de habitação, emprego e serviços sociais, idóneas para favorecer a constituição da família que realize a sua vocação à maternidade e à paternidade, e assegurem assim à Europa de hoje o recurso mais precioso: os europeus de amanhã ».160

Construir uma cidade digna do homem

97. A caridade operosa obriga-nos a apressar o Reino futuro. Por isso mesmo, colabora na promoção dos valores autênticos que estão na base duma civilização digna do homem. De facto, como recorda o Concílio Vaticano II, « os cristãos, peregrinos da cidade celestial, devem buscar e saborear as coisas do alto. Mas, com isso, de modo algum diminui, antes aumenta a importância do seu dever de colaborar com todos os outros homens na edificação dum mundo mais humano ».161 A expectativa dos novos céus e da nova terra, longe de afastar da história, intensifica a solicitude pela realidade presente onde já cresce a novidade que é germe e figura do mundo que há-de vir.

Animados por tais certezas de fé, trabalhamos para a construção duma cidade digna do homem. Embora não seja possível construir na história uma ordem social perfeita, todavia sabemos que todo o esforço sincero por construir um mundo melhor é acompanhado pela bênção de Deus e que qualquer germe de justiça e de amor plantado no tempo presente floresce para a eternidade.

98. Ao construir esta cidade digna do homem, sirva de inspiração a doutrina social da Igreja. De facto, através dela, a Igreja coloca ao continente europeu a questão da qualidade moral da sua civilização. Tal doutrina nasce do encontro da mensagem bíblica com a razão, por um lado, e, por outro, com os problemas e as situações referentes à vida do homem e da sociedade. Com o conjunto dos princípios que oferece, contribui para pôr bases sólidas para uma convivência à medida do homem, na justiça, verdade, liberdade e solidariedade. Tendo em vista defender e promover a dignidade da pessoa, fundamento não só da vida económica e política, mas também da justiça social e da paz, ela é capaz de sustentar as colunas mestras do futuro do continente.162 A doutrina em questão contém também as referências para se poder defender a estrutura moral da liberdade, de modo a salvaguardar a cultura e a sociedade europeia da utopia totalitária tanto da « justiça sem liberdade », como da « liberdade sem verdade » à qual aparece associado um falso conceito de « tolerância », ambas elas prenúncio de erros e de horrores para a humanidade, como tristemente dá testemunho a história recente da própria Europa.163

99. A doutrina social da Igreja, pela sua ligação intrínseca com a dignidade da pessoa, pode ser compreendida também pelos que não pertencem à comunidade dos crentes. Por isso, é urgente divulgar o seu conhecimento e estudo, vencendo a ignorância que há dela mesmo entre os cristãos. Exige-o a nova Europa em vias de construção, carecida de pessoas educadas segundo tais valores, prontas a trabalhar pela realização do bem comum. Para isso é necessária a presença de leigos cristãos nas diversas responsabilidades da vida civil, da economia, da cultura, da saúde, da educação e da política, actuando de modo a poder permeá-las com os valores do Reino.164

Em prol duma cultura do acolhimento

100. Entre os desafios que hoje se apresentam no serviço ao Evangelho da esperança, conta-se o fenómeno crescente das migrações, que interpela a capacidade da Igreja para acolher toda a pessoa, qualquer que seja o povo ou a nação a que pertença. E impele também toda a sociedade europeia com as suas instituições a procurarem uma ordem justa, formas de convivência respeitosas de todos e da legalidade também, num processo que leve à integração possível.

Considerando o estado de miséria, de subdesenvolvimento ou mesmo de insuficiente liberdade, que infelizmente ainda caracteriza diversos países, entre as causas que constrangem muitos a deixar a própria terra, é preciso um corajoso empenhamento de todos para realizar uma ordem económica internacional mais justa, que seja capaz de promover o autêntico desenvolvimento de todos os povos e países.

101. O fenómeno migratório põe à prova a capacidade que tem a Europa de dar espaço a formas de acolhimento e hospitalidade inteligente. Exige-o a visão « universalista » do bem comum: é necessário alongar o olhar até abraçar as exigências da família humana inteira. O próprio fenómeno da globalização reclama abertura e partilha, se não quiser ser raiz de exclusão e marginalização mas sim de participação solidária de todos na produção e intercâmbio dos bens.

Cada um deve trabalhar para o crescimento duma cultura do acolhimento perfeita, que, tendo em conta a dignidade igual de toda a pessoa e o dever da solidariedade para com os mais débeis, pretende que sejam reconhecidos a cada imigrante os direitos fundamentais. É responsabilidade das autoridades públicas controlar os fluxos migratórios segundo as exigências do bem comum. O acolhimento deve realizar-se sempre no respeito das leis, comportando consequentemente, quando necessário, a firme repressão dos abusos.

102. É necessário ainda empenhar-se por individuar possíveis formas de genuína integração dos imigrados legitimamente acolhidos no tecido social e cultural das diversas nações europeias. Uma tal integração requer, por um lado, que não se deva ceder ao indiferentismo quanto aos valores humanos universais e, por outro, que se tenha a peito salvaguardar o património cultural próprio de cada nação. Uma convivência pacífica e um intercâmbio recíproco das riquezas interiores tornará possível a edificação duma Europa que saiba ser casa comum, na qual cada um possa sentir-se acolhido, ninguém se veja discriminado, todos sejam tratados e vivam responsavelmente como membros de uma única e grande família.


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