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"Não Há Democracia Que Resista Se Os Cidadãos Consideram o Estado Um Inimigo"
2003-06-26 12:54:21

Nascido em Fevereiro de 1936, padres desde Agosto de 1961, José da Cruz Policarpo foi ordenado bispo em 29 de Junho de 1978, faz no próximo domingo 25 anos. A partir de hoje, vários actos comemorativos assinalam o acontecimento: seis volumes de obras escolhidas do actual patriarca de Lisboa são hoje apresentados, sábado realiza-se um espectáculo na Igreja de São Vicente de Fora, em Lisboa.

P. - As suas obras escolhidas atravessam mais de um quarto de século. Que mudanças é que o cardeal-patriarca assinala no mundo, no país e na Igreja?
R. - Antes de mais, a grande mudança que ainda se está a processar, provocada pelo Concílio. Considero o Vaticano II o acontecimento maior do século XX. Comparável a esse só a queda do Muro de Berlim e as grandes mudanças na organização do mundo em termos políticos e ideológicos. O Concílio gera na Igreja e no mundo uma revolução. Depois, há um pós-Concílio que é complicado, que traz da parte da Santa Sé e deste Papa um esforço de reconduzir o Concílio à sua pureza. Houve muita coisa que se mudou em nome do Concílio e com o qual [ele] tinha pouco a ver. O Concílio, além de um monumento doutrinal, gerou um ambiente de abertura, de optimismo, de mudança...

P. - Um pretexto para mudança?
R. - Um desejo de mudança. Esse período, que eu situo entre os anos 80 e agora, é um período em que se assiste, na Igreja, à preocupação de travar aquelas euforias conciliares que tinham pouco a ver com a objectividade do Concílio.

P. - Há legitimidade nesses travões?
R. - Há, o travão é legítimo quando o carro vai descontrolado. [Um dos] grandes efeitos desta mudança conciliar foi, sem dúvida, a relação da Igreja com o mundo. A Igreja apresenta-se como a grande protagonista da esperança, do diálogo. Um outro é o que chamamos a aculturação, admitir que a fé pode ter várias expressões culturais. Outro grande eixo é o ecumenismo e o diálogo inter-religioso e, finalmente, o diálogo da Igreja com a cultura.

P. - A sociedade portuguesa foi protagonista da Revolução de 25 de Abril. A revolução ajudou a que a Igreja tomasse uma consciência maior dos dinamismos que o Concílio lhe projectava?
R. - É preciso não esquecer que a Igreja, já antes da Revolução de Abril, a partir do princípio da década de 60, se tinha transformado no principal espaço de crítica positiva e de diálogo sobre a situação portuguesa. Quando se olha para o antigo regime, vemos sempre o adjectivo de uma Igreja a colaborar com o regime, mas não era só isso: a Igreja tinha-se transformado num espaço de diálogo, durante um certo tempo incontestado, a partir de outro momento já contestado e vigiado de perto pela polícia política. O episcopado de então - eu não era bispo ainda - tem uma decisão que eu considero de uma lucidez muito grande, no alvorecer de uma democracia multipartidária e ainda em ambiente revolucionário: declarar que não há apoio da Igreja enquanto tal a nenhum partido confessional, a um partido tipo Democracia Cristã.

P. - Apesar de haver quem reclame essa herança ideológica.
R. - O partido a que se está a referir nunca reivindicou para si o apoio da Igreja, mas sim uma identidade internacional com o grupo Democrata-Cristão da Europa. Foi claro desde o princípio que nenhum partido poderia esperar o apoio da Igreja Católica.

P. - A democracia portuguesa corre riscos?
R. - A democracia portuguesa tem as vantagens e inconvenientes de todas as democracias ocidentais. Não vale a pena passar a vida a lamentarmo-nos dos males da democracia: [a verificação] desses males é possível, porque vivemos em democracia. A democracia tem dois desafios diante dela: não há aprofundamento da democracia sem debate cultural sério sobre o projecto de Portugal, sobre as grandes questões de Portugal. O outro é o formalismo político, que deve ser compensado com um autêntico sentido de qualidade nas decisões, de qualidade nos projectos, um autêntico sentido de serviço. A nossa democracia precisa urgentemente de uma consciência cívica de todos os cidadãos. Não há democracia que resista se os cidadãos consideram o Estado um inimigo ao qual se dá o menos possível e a quem se pede tudo. Portugal pode ser melhor se todos os portugueses tiverem consciência de que um Portugal melhor depende de cada um de nós.

P. - Mas há hoje uma grande onda de pessimismo a invadir o país, a nível económico, em relação ao futuro de Portugal. Está preocupado, comunga desse pessimismo?
R. - Não, tudo o que forem pessimismos não me peça. De todo. O que se passa aqui [é] uma espécie de caixa de ressonância das grandes questões que acontecem algures no mundo, em termos culturais [e] económicos. Esse é um problema que o Ocidente terá que repensar: em que medida a civilização poderá avançar [se a economia] significa 95 por cento da cultura e da busca de soluções.

P. - A economia tem um peso demasiado grande?
R. - Tem um peso demasiadamente grande na busca das soluções para a sociedade. Portugal, neste momento, não está nem melhor nem pior que a Espanha, a França e que a Alemanha. Estão em estados diferentes, mas os problemas repercutem-se e estas grandes crises decidem-se à volta de uma mesa.

P. - Como noutras crises, são os mais frágeis as vítimas dos problemas. Como se coloca perante esta crise e as principais vítimas?
R. - Tenho pena que seja assim. A Igreja, na sua missão...

P. - Olhando para o que têm sido as opções políticas do país...
R. - ... a Igreja pode denunciar isso, mas o estilo da denúncia perdeu eficácia.

P. - Perdeu eficácia?
R. - Perdeu, porque as pessoas habituaram-se tanto a ser denunciadas por tudo, que aparecer uma voz em público a fazer mais uma...

P. - Já não há lugar para os profetas?
R. - Não, a denúncia não é a característica principal de um profeta.

P. - Qual deve ser então a atitude fundamental da Igreja?
R. - Uma atenção muito concreta à pessoa concreta. Falar dos pobres, toda a gente fala. Estar presente junto dos pobres, nem toda a gente está. O que se espera da Igreja é uma atenção muito concreta. Sempre fui muito sensibilizado ao princípio da competência. A honestidade e a competência são duas componentes importantes para estarmos ao serviço dos outros e da sociedade. A missão da Igreja, neste momento, é suscitar de uma esperança objectiva, objectivada em valores. A palavra também está gasta, mas os valores o que são? São o sentido da vida, saber o que [se] quer da vida, e o que queremos da vida do povo a que pertencemos.

Fonte Público

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