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Cristo Sacerdote: a plenitude do dom e da oferta
2003-03-18 21:37:32

“Cristo Sacerdote: a plenitude do dom e da oferta”
Catequese do 2º Domingo da Quaresma - Sé Patriarcal, 16 de Março de 2003


Introdução

1. Nesta segunda Catequese sobre o Sacerdócio de Nosso Senhor Jesus Cristo, centrar-nos-emos na perfeição definitiva do sacrifício por Ele oferecido a Deus em nome de toda a humanidade. É que a verdade e a perfeição do sacerdócio decide-se, em última análise, na relação do sacerdote com o sacrifício que oferece e com Deus a Quem o oferece. E nessa relação com o sacrifício o sacerdócio de Cristo, embora na continuidade dos sacrifícios da antiga lei, introduz uma radicalidade que lhe marca a novidade inaudita e definitiva. A partir da morte de Cristo, vivida como sacrifício por Ele oferecido, a verdade de todo o sacerdócio, vivência sacramental do sacerdócio de Cristo, decide-se na relação dos sacerdotes com o sacrifício de Cristo, perpetuado na Eucaristia.


O sacerdote e o sacrifício

2. Embora oferecer sacrifícios seja apenas uma das funções sacerdotais, todas elas acabam por se reunir nos sacrifícios e no modo como são oferecidos. “São duas realidades ligadas e não se pode falar de uma sem a outra. É devido à eficácia permanente e definitiva do sacrifício oferecido por Cristo que o seu sacerdócio aparece como único. Por outro lado esta eficácia extraordinária do sacrifício de Cristo depende da transcendência daquele que oferece” .

Oferecer sacrifícios define a função sacerdotal. Diz a Carta aos Hebreus: “Todo o Sumo sacerdote, com efeito, é estabelecido para oferecer dons e sacrifícios; daí a necessidade que ele sente de ter algo para oferecer” (He. 8,3). A relação do sacerdote com o sacrifício radicaliza-se quando o sacerdote se oferece a si mesmo, porque oferecer coisas não basta para satisfazer a exigência da santidade de Deus e o seu desejo de oferta em favor dos homens, seus irmãos. Nesse caso a oferta a Deus de sacrifícios, não se limita a exprimir a verdade da função sacerdotal, mas toda a verdade existencial da pessoa do sacerdote que identifica a sua vida com o sacrifício oferecido.

Embora Nosso Senhor Jesus Cristo, na sua vida pública, nunca se tenha identificado com a estrutura sacerdotal do Antigo Testamento, Ele assume-se como sacerdote, na Sua vida e missão, sobretudo no sentido que dá à Sua morte. Nela, vivida como obediência ao desígnio de Deus, Jesus acaba por resumir o sentido de toda a Sua vida, na oferta que dela faz, por obediência ao Pai, assumindo-se como sacerdote que oferece a Deus o único sacrifício eficaz, que atinge perfeitamente todos os objectivos procurados pelo sacerdócio do Antigo Testamento. Este é preparatório do sacerdócio de Cristo; por outro lado o sacrifício de Cristo introduz uma superação radical que só a sua qualidade de Filho podia realizar.

Para captarmos esta novidade radical no Sacerdócio de Cristo e no sacrifício que Ele oferece ao Pai, vamos perscrutar os principais dinamismos do sacerdócio no Antigo Testamento e verificar como anunciam o sacerdócio de Cristo e a maneira como este os supera.


A busca de comunhão com o Deus transcendente

3. A oferta de sacrifício surge na religião de Israel como um meio de vencer a distância entre a infinita santidade de Deus e a condição humana, degradada pelo pecado, infidelidade a uma aliança. Por detrás da linguagem e dos ritos, descobre-se um sentido profundo da santidade de Deus, a obsessão pelo pecado e um desejo profundo de purificação. “Este sentimento religioso repousa sobre a dupla convicção de que o homem está separado por um abismo intransponível, de Deus que é o totalmente Outro e de que, por outro lado, o homem tem uma necessidade absoluta, para viver, de encontrar nesse totalmente Outro, apoio e protecção” . O sacrifício é atitude humana de busca de Deus, algo que o homem oferece para entrar em comunhão com Deus. São muitas as exigências morais deste gesto de oferecer: o que se oferece deve ser digno da santidade de Deus e aquele que oferece deve ter uma vida de santidade pessoal na linha da exigência da comunhão com Deus que procura com a oferta de sacrifícios.

A dificuldade de realizar estas duas exigências acaba por marcar a imperfeição dos sacrifícios da liturgia judaica: as ofertas são pobres e a santidade dos sacerdotes deixa muito a desejar, embora seja uma exigência continuamente proclamada pelos profetas. Quanto à vítima oferecida vai-se delineando, na pregação profética, de que o melhor que o homem tem para oferecer, não são coisas, mas um coração arrependido, um coração obediente à vontade de Deus. Mesmo os sacerdotes do Antigo Testamento são convidados, ao mesmo tempo que oferecem as vítimas rituais, a oferecerem-se a si mesmos, na pureza do coração.

Só o Filho de Deus, feito homem para traçar um destino novo à humanidade, pode superar definitivamente a barreira que separa o homem da transcendência de Deus e oferecer como vítima do sacrifício, não apenas um coração arrependido, mas um coração de Filho, completamente obediente à vontade do Pai.


O sentido dos sacrifícios do Antigo Testamento e o Sacrifício de Cristo

4. O primeiro valor procurado e expresso pelos sacrifícios do Antigo Testamento é a adoração do Deus três vezes Santo. A sua principal expressão é o holocausto, o sacrificar algo que pertence ao homem, símbolo da sua vida, em honra de Deus, afirmação de que Deus é o Senhor da vida e que tudo o que o homem possui vem de Deus e a Deus pertence. Como ao holocausto está ligado o sangue derramado, depressa o sangue se transforma num símbolo principal, sobretudo símbolo da aliança de amor entre Deus e o Seu Povo, em que o amor misericordioso de Deus faz os homens participar do coração de Deus (cf. Ex. 24,5-8).

O acesso à santidade de Deus através do holocausto de adoração, sugere a segunda forma de sacrifício, o da comunhão com a divindade através do banquete sagrado. Na ratificação da Aliança, no Êxodo, esta é celebrada tanto pelo sangue da vítima aspergido, como pelo banquete de comunhão (Ex. 24,11).

Mas o sentimento que brota mais fortemente de todos estes sacrifícios é o da obtenção do perdão dos pecados. A festa da expiação e do grande perdão torna-se a celebração central da Liturgia de Israel. E esta busca da reconciliação e do perdão acaba por estar presente em todos os sacrifícios: nos holocaustos, em que o sangue se torna sangue purificador e redentor e no banquete sagrado, que exprime o grande desejo de regresso à intimidade de comunhão com Deus.

Jesus reunifica, definitivamente, num único sacrifício, toda esta busca de reconciliação e intimidade com Deus. Unifica o holocausto, oferta da Sua vida, com o banquete sagrado na Ceia; o seu sangue derramado é sinal de aliança definitiva e pode ser, não apenas aspergido, mas comungado por aqueles que redime. A ceia não é, apenas, um sucedâneo do holocausto. Realiza plenamente a densidade da Cruz, explicitando perfeitamente o que vinha sendo anunciado: os ritos como sinais eficazes do único sacrifício. A Eucaristia é a novidade definitiva do sacerdócio de Jesus Cristo.


O Sacerdócio do Servo de Yahwé

5. Jesus, não reivindicando para si a classe sacerdotal, assume claramente a missão do Servo, apresentado pelo Profeta Isaías (cf. Is. 53). “O Filho do homem não veio para ser servido, mas para dar a Sua vida como resgate de uma multidão” (Mc. 11,49).

A figura do Servo, em Isaías 53, significa uma novidade na compreensão do sacerdócio e do sacrifício. Antes de mais, volta a unir, na mesma missão, o múnus profético e sacerdotal. O Servo é um profeta sacerdote. Na linha dos profetas intercessores, reza pelo Povo e sela a sua oração com o seu próprio sacrifício. Pela primeira vez aparece a ideia que alguém pode assumir sobre Si todos os pecados do Povo e redimi-los pelo Seu sofrimento, e a consciência de que essa substituição vicária é querida por Deus, faz parte do desígnio de Deus. A partir desse momento a obediência à vontade de Deus é parte constitutiva da oferta sacrificial.

Jesus assume-se como aquele que realiza plenamente a missão do Servo. Assume os pecados de toda a humanidade como seus, Ele que pessoalmente nunca pecou e oferece a Sua vida como redenção e reposição da justiça, repondo os direitos de Deus. A morte de Cristo é um autêntico sacrifício que realiza a grande expiação e repõe a justiça (cf. Rom. 3,21-26). Ele é a vítima imaculada, porque não conheceu pecado; Ele é o sacerdote que convém, pois deu prioridade absoluta à obediência à vontade de Deus. A Sua obediência até à morte é matéria do sacrifício e dignidade do Sacerdote oferente.


Cristo o sacerdote definitivo do sacrifício perfeito

6. Todo o Novo Testamento considera a morte de Jesus um sacrifício e Cristo o sacerdote que o oferece, tanto no Calvário como na Ceia, unificados na única oferta de um mesmo sacrifício. Jesus, no patíbulo da Cruz, é apresentado como o grande sacerdote, vestido com as vestes do pontífice, entrevistas na Sua túnica inconsútil (cf. Jo. 19,23). O que São João apenas sugere no Evangelho, afirma explicitamente no Apocalipse: “Ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro, rodeando um como que Filho do homem, revestido com uma longa veste, apertada ao seu corpo por uma faixa em ouro” (Ap. 1,13).

Para contemplarmos a grandeza sacerdotal de Cristo e a pureza do sacrifício que oferece, contemplemos, em resumo, os traços sacerdotais com que o Novo Testamento, sobretudo o Evangelista São João, olham o sacrifício da Cruz:

* A consagração sacerdotal. Todo o capítulo 17 de São João é a atitude de um sacerdote que se consagra e santifica, preparando-se para oferecer o sacrifício. É Deus que O consagra, desde a encarnação, na Sua dignidade de sacerdote (cf. Jo. 10,36). Consagrado pelo Pai desde o primeiro momento da Sua existência, Jesus pede ao Pai, que no momento de oferecer o sacrifício definitivo, manifeste n’Ele a sua Glória: “Pai, chegou a hora, glorifica o Teu Filho, para que o Teu Filho Te glorifique” (Jo. 17,1). Essa consagração inicial permite-lhe consagrar-Se para o sacrifício oferecido pelos homens: “Por eles, eu consagro-me a Mim mesmo, para que também eles sejam consagrados na verdade” (Jo. 17,19). Nesse momento decisivo é o Pai, e Jesus sabe-o, que lhe atribui a qualidade de Sumo Sacerdote da Nova Aliança, como explicita a Carta aos Hebreus: “Não foi Cristo que se atribuiu a Si Mesmo a glória de se tornar Sumo Sacerdote, mas recebeu-a d’Aquele que lhe disse: Tu és Meu Filho, Eu hoje Te gerei” (Heb. 5,5), manifestando a profunda relação entre a encarnação do Verbo e a Sua dignidade sacerdotal.

* A identificação de Jesus com o cordeiro pascal da liturgia judaica. Já o Baptista o tinha apontado como o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (cf. Jo. 1, 29). Na nova liturgia da Nova Aliança, inaugurada na Ceia Pascal, como perenidade do único sacerdote e do único sacrifício, Cristo é o verdadeiro Cordeiro Pascal: sem defeito, nem mancha, imolado para selar com o Seu sangue a Aliança definitiva. São Paulo confirma esta interpretação: “Cristo, nosso Cordeiro Pascal, foi imolado” (1Cor. 5,7). Torna-se claro que Jesus se tornou o Cordeiro Pascal, cumprindo a missão do Servo. Tal como estava prescrito na liturgia judaica, ao cordeiro pascal não se deveria partir nenhum osso. Segundo São João, é para cumprir esta prescrição que os soldados não quebrarão as pernas a Jesus, já morto (cf. Jo. 19,33).

Torna-se clara a convicção da Igreja apostólica de que Jesus é o novo Cordeiro Pascal, o que situa a Eucaristia como realização plena da Ceia pascal judaica, enquanto libertação da escravidão do pecado. O Apóstolo São Pedro afirma-o claramente: “Sabei que não foi por nada de corruptível, prata ou ouro, que vós fostes libertos da vã conduta herdada dos vossos pais, mas pelo sangue precioso, como de um cordeiro sem mancha e sem censura, Jesus Cristo” (1Pet. 1, 18-19).

Nisto reside a garantia da nossa salvação, na Igreja que dela é o sacramento: temos um Sacerdote Imaculado, temos uma vítima digna da glória de Deus, participamos nessa oblação de eternidade em cada Eucaristia que celebramos.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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