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Sacerdócio e redenção: a encarnação do Verbo e o sacerdócio definitivo
2003-03-10 22:18:42

“Sacerdócio e redenção: a encarnação do Verbo e o sacerdócio definitivo”
Catequese do 1º Domingo da Quaresma
Sé Patriarcal, 9 de Março de 2003

Uma circunstância concreta na Igreja de Lisboa.
1. A escolha do sacerdócio como tema das Catequeses Quaresmais deste ano, foi sugerido pelo facto de a Diocese querer celebrar o meu Jubileu Episcopal. Há 25 anos, por desígnio insondável de Deus e manifestação da Sua bondade, fui identificado com Cristo na plenitude do Seu Sacerdócio, para o actuar sacramentalmente no meio do seu Povo, tornando-o digno e capaz de dar glória a Deus, oferecendo-lhe continuamente, em comunhão com Cristo glorioso, o sacrifício.


Não vos vou falar do meu sacerdócio, mas de Jesus Cristo, único e definitivo Sacerdote da nova aliança que nós celebramos, continuamente, no Seu sangue, sangue da nova e definitiva aliança. Convido-vos a fazer destas meditações um momento de adoração do Senhor Glorioso, nosso Salvador e Redentor, na plenitude do Seu mistério, pois a função sacerdotal identifica-se, n’Ele, com a totalidade do Seu ser de Verbo encarnado, ministério de mediação salvífica que Ele continua a exercer, até ao fim dos tempos, em favor do Seu Povo, através da eficácia da Sua humanidade gloriosa, exercida sacramentalmente na Igreja. O seu sacerdócio coincide com a sua mediação salvífica e com o seu amor redentor, que, neste mundo, se exprime sacramentalmente, na Igreja, em favor da humanidade. Nós precisamos de um sacerdote, porque precisamos de um Redentor. O Sacerdócio de Cristo identifica-se com a totalidade do seu mistério, e da Sua missão redentora.

Sacerdócio de Cristo e encarnação do Verbo.
2. O Sacerdócio de Cristo brota da encarnação do Filho de Deus, e não da eterna qualidade divina do Verbo. O sacerdote, na sua função mediadora entre Deus e os homens, tinha de ser escolhido entre os homens. Como diz a Carta aos Hebreus, porque Ele vai ser salvador dos homens, e não dos anjos, “teve de se tornar em tudo semelhante aos seus irmãos, afim de se tornar, nas Suas relações com Deus, um Sumo Sacerdote misericordioso e fiel, para expiar os pecados do Povo” (Heb. 2,17). É na sua humanidade que Cristo se torna sacerdote e o seu ministério sacerdotal começa no seio de Maria, no momento da encarnação. A acção do Espírito Santo que une a natureza humana de Jesus à natureza divina do Verbo, no seio de Maria, constitui a unção sacerdotal do Verbo encarnado. O próprio Jesus refere este seu próprio mistério, dizendo de Si mesmo: “Aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo” (Jo. 10,36). São João Crisóstomo exprime, assim, esta relação entre a encarnação e o sacerdócio de Cristo: “Não foi em virtude da Sua natureza que Ele se tornou Sumo Sacerdote, mas em virtude da graça, da condescendência e do abaixamento (Kenose)” . O facto de Deus se fazer homem é mistério de graça e de misericórdia, em ordem à salvação; o sacerdócio de Cristo é expressão desse mistério de misericórdia.

Mas se o sacerdócio é atributo da humanidade de Jesus, a sua origem e fundamento é a divindade do mesmo Jesus. E isso distingue, na sua origem e fundamento, o sacerdócio de Cristo do sacerdócio do Antigo Testamento, que apenas o anunciou em figura. Cristo não é designado por ninguém, neste mundo, para ser Sacerdote, pois essa qualidade da Sua humanidade Ele recebe-a da união hipostática, essa união misteriosa da natureza humana e divina, na pessoa e ministério de Jesus. Para o autor da Carta aos Hebreus isso é claro: “não foi Cristo que Se atribuiu, a Si mesmo, a glória de se tornar Sumo Sacerdote, mas recebeu-a d’Aquele que lhe disse: Tu és Meu Filho, Eu hoje te gerei” (Heb. 5,5). A união da natureza divina à natureza humana, realizada no seio de Maria, é uma consagração que Deus realiza da humanidade e que, em última análise, é uma consagração sacerdotal. Por ter a sua origem nesta acção consacratória da divindade, o sacerdócio de Cristo é o início de um tempo radicalmente novo, o tempo definitivo e significa uma ruptura com o sacerdócio levítico. Leiamos, ainda, a Carta aos Hebreus: “Isso (a abrogação da lei antiga) torna-se mais evidente se, à semelhança de Melquisedec, se apresenta um outro sacerdote, que não se tornou tal segundo a regra de uma prescrição carnal, mas segundo a potência de uma vida imprevisível. É esse o testemunho que d’Ele é dado: Tu és Sacerdote para a eternidade segundo a ordem de Melquisedec” (Heb. 7, 15-17).

Sacerdócio definitivo, ele é sacerdócio para a eternidade e anuncia o tempo definitivo da salvação em que os homens começam a viver, desde já, a vida definitiva em Deus. Inaugurado no tempo e na história, o sacerdócio de Cristo é, primordialmente, um sacerdócio para a eternidade, em que Ele, glorioso junto do Pai, continua a exercer o seu sacerdócio através da força do Espírito, conduzindo aqueles que redimiu para o tempo definitivo da Jerusalém celeste. Mas antes de contemplar esta dimensão de eternidade do sacerdócio de Cristo, fundamento do seu exercício, na Igreja, por via sacramental, contemplemos o modo como este sacerdócio de Cristo, exerce a função mediadora de que precisamos, como Ele é o Sumo Sacerdote que nos convém.

O mediador entre Deus e os homens.
3. A mediação entre Deus e os homens é a essência do sacerdócio. Deus precisa de ser escutado e acolhido pelos homens e estes precisam de ter acesso ao trono de Deus, para oferecer sacrifícios de louvor e acolher a vida que d’Ele vem, sob a forma de bênção. O sacerdócio do Antigo Testamento, base mesma da vivência da aliança entre Deus e o Seu Povo, era imperfeito e limitado. Os pecados dos sacerdotes tornavam-nos incapazes de acesso perfeito ao trono de Deus, e a Palavra do Senhor, manifestação do Seu amor e do Seu desejo de aliança, esbarrava na dureza do coração humano. Jesus é o sacerdote de que precisávamos para que a salvação fosse completa e definitiva: o seu acesso ao trono de Deus não está limitado pelos seus pecados, pois Ele é semelhante a nós em tudo, excepto no pecado, e o seu coração humano de Filho acolhe completamente a Palavra de Deus. A mediação é perfeita e, por isso, única e definitiva. “Sim, Ele é, exactamente, o Sumo Sacerdote de que precisávamos, santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores, elevado acima dos céus, que não precisa diariamente, como os outros sumo sacerdotes, de oferecer vítimas, em primeiro lugar, pelos seus próprios pecados e só depois pelos do povo porque o fez, de uma vez por todas, oferecendo-se a Si mesmo” (Heb. 7,26-27).

No Antigo Testamento a mediação entre Deus e o Povo, mesmo imperfeita ou talvez por isso mesmo, era exercida por ministérios diferentes: os reis, os sacerdotes, os profetas e mais tardiamente os próprios escribas, mediadores da doutrina e da Lei. Cristo reúne em si todas estas mediações, garantindo em plenitude, a comunhão entre Deus e os homens.

Ele é o Rei Sacerdote.
4. Durante séculos os reis de Israel exerceram funções sacerdotais. Com a decadência da realeza e, sobretudo, com a ocupação do trono de Israel por reis pagãos, os sacerdotes concentraram em si as atribuições sacerdotais da realeza. A própria unção sacerdotal dos sumos-sacerdotes é a unção real (cf. Lev. 8,12). Jesus, que se chama o “ungido”, não consta que tenha recebido a unção do óleo. A unção que o consagra sacerdote é a efusão do Espírito Santo em plenitude, sensivelmente significada nos momentos cruciais do ministério de Jesus. No início da vida pública, quando se faz baptizar, pelo Baptista, no Jordão: “Ora quando todo o povo tinha sido baptizado e no momento em que Jesus, baptizado também Ele, se encontrava em oração, o Céu abriu-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele, em forma de pomba. E do Céu veio uma voz: Tu és o Meu Filho bem amado; tens todo o meu enlevo” (Lc. 3, 21-22). Mas é a acção do Espírito Santo sobre a humanidade de Jesus, ressuscitando-o dos mortos, que o consagra e entroniza na Sua glória celeste, realeza do Sumo Sacerdote definitivo. Diz a Carta aos Hebreus: “Tu O coroaste de glória e de honra, puseste tudo sobre os seus pés… aquele que, por momentos, foi rebaixado abaixo dos anjos, Jesus, vemo-lo coroado de glória e de honra, porque Ele sofreu a morte” (Heb. 2,7-9).

Sacerdote e Profeta.
5. Uma das concretizações da mediação sacerdotal, no Antigo Testamento, era o serviço da Palavra. Era função dos sacerdotes comunicar, de geração em geração, as narrações dos feitos de Yahwé em favor do Seu Povo, que eram fórmulas da profissão de fé de Israel, e comunicar a Lei garantindo a sua autenticidade e incentivando ao seu cumprimento. Mas durante um largo período da história de Israel, talvez o mais atribulado, complementarmente aos sacerdotes neste seu serviço da Palavra, surgem os profetas, que actualizam na sua exigência presente a Palavra da salvação, apresentando-a como Palavra viva e exigente, que transforma os corações e conduz a história. Apesar de alguns dos grandes profetas serem sacerdotes, uma inevitável tensão entre os profetas e o templo acaba por acontecer.

Jesus unifica, na plenitude do seu sacerdócio, estas duas mediações da Palavra. Palavra eterna de Deus, ninguém como Ele pode comunicar aos homens, com a qualidade de um testemunho, o que ouviu junto do Pai; ninguém, como Ele, garante o sentido autêntico da Lei e a actualidade transcendente da Palavra que converte, muda o coração e inaugura o Reino de Deus. Toda a mediação sacerdotal realizada por Jesus é mediação da Palavra eterna de Deus. Na sua boca, a Palavra de Deus é eficaz e mais incisiva que uma espada. Ela revela toda a verdade e nada lhe permanece oculto. Ele é o Sumo Sacerdote poderoso que nos ajuda a aguentar a veemência da Palavra, solidificando-nos na fé. “Tendo um Sumo Sacerdote soberano que atravessou os Céus, Jesus o Filho de Deus, permaceçamos firmes na profissão de fé. (…) Avancemos, pois, com segurança, para o trono da graça para obter misericórdia e encontrar a graça, para uma ajuda oportuna” (Heb. 4,15-16).

Sacerdote do Santuário definitivo.
6. Segundo o autor da Carta aos Hebreus uma realidade que marca a diferença fundamental entre o sacerdócio levítico e o sacerdócio de Cristo é o santuário onde Ele pontifica como Sumo Sacerdote. Nunca vimos Jesus exercer funções sacerdotais no Templo de Jerusalém, que Ele, aliás, respeita, como templo de Deus. Esse não era o seu santuário. A Carta aos Hebreus descreve, assim, o santuário onde Ele é sacerdote: “Cristo, surgido como Sumo Sacerdote dos bens futuros, atravessou um tabernáculo, maior e mais perfeito, que não tinha sido feito pela mão dos homens, ou seja, que não pertence a esta criação, entrou, uma vez por todas, no santuário, não pelo sangue de bodes ou novilhos, mas pelo seu próprio sangue, tendo-nos adquirido uma redenção eterna” (Heb. 9,11-12).

Este texto situa o sacerdócio de Cristo no horizonte da eternidade; o santuário onde pontifica é o Céu, junto do trono de Deus. Ele é o pontífice dos bens futuros. Isto leva os Santos Padres a classificarem o sacerdócio de Cristo como um sacerdócio celeste, que inaugura a eternidade. Mas não há um sacerdócio terrestre de Jesus Cristo? A expressão suprema do seu sacerdócio, o seu sacrifício na Cruz, não aconteceu neste tempo e na nossa história? A Carta aos Hebreus é clara a essa respeito: “Na verdade, se Jesus estivesse na terra, nem sequer seria sacerdote, pois há sacerdotes que oferecem dons, segundo a Lei; esses asseguram o serviço de uma cópia e de uma sombra das realidades celestes” (Heb. 8,4). Comentando este texto, São João Crisóstomo afirma: “Se Ele é sacerdote, e é-o sem dúvida, é preciso encontrar-Lhe um outro lugar”. E este lugar é o Céu. O Céu é o santuário de todo o sacerdócio de Cristo, mesmo daqueles actos sacerdotais que Ele realizou neste mundo. “O sacrifício de Cristo sobre a Cruz é celeste e não ritual, porque ele realiza o corpo espiritual de Cristo, formado pelo Espírito” . Para este Santo Padre, os actos terrestres do sacerdócio de Cristo, são integralmente celestes, porque totalmente “pneumáticos”, isto é, obra do Espírito. A distinção não é entre sacerdócio terrestre e sacerdócio celeste de Jesus Cristo, mas entre sacerdócio celeste de Jesus Cristo antes e depois da Páscoa. Antes da Páscoa este sacerdócio celeste de Jesus Cristo começa na encarnação, no seio de Maria, engloba toda a vida e missão de Jesus, e encontra a sua plenitude no sacrifício da Cruz. A ceia pascal, com a instituição da Eucaristia, surge como expressão perene desse sacerdócio celeste, fazendo a união entre os acontecimentos pré-pascais e os acontecimentos escatológicos.
A morte de Jesus na Cruz, celebrada e oferecida como um sacrifício, é a máxima manifestação do sacerdócio de Jesus Cristo. Aprofundaremos este aspecto na próxima catequese. Mas todo o drama da morte de Cristo, em termos de estrutura sacerdotal do Antigo Testamento, nada tem de litúrgico. Só porque Jesus é o Sacerdote do tempo novo, Ele faz da Cruz um altar porque o altar do santuário onde pontifica é o trono de Deus; aceita ser a vítima do sacrifício, porque a Deus agrada mais a obediência total à Sua vontade do que o sangue de toiros e carneiros; Ele, a vítima, cruenta por maldade dos homens, pura e imaculada na radicalidade da Sua obediência, só Ele a pode oferecer, pois só Ele a conhece e lhe conhece o sentido no desígnio insondável do Pai.

7. Sacerdócio celeste, Cristo continua a exercê-lo, na glorificação da Sua humanidade, junto de Deus. E assim a Igreja, novo Povo de Deus, tem uma diferença essencial no que à vivência do sacerdócio diz respeito, em relação ao primeiro Israel, o Povo da primeira aliança.
Este exercia um sacerdócio que anunciava o futuro, a plenitude da mediação sacerdotal realizada pelo Verbo encarnado. A Igreja, Povo da nova e definitiva Aliança, inauguração do tempo definitivo, vive desse único sacerdócio de Jesus Cristo, Verbo encarnado e hoje glorificado junto do Pai. Porque está unida a Cristo ressuscitado, a Igreja é um povo sacerdotal; porque participa da realidade definitiva de Cristo Ressuscitado, o sacerdócio eterno de Jesus Cristo exprime-se na Igreja por via sacramental. Cristo celeste, na sua oferta contínua do sacrifício de louvor para glória de Deus Pai, associa continuamente a Si, enquanto oferente e oferta, a Igreja como actualização da redenção. Na Igreja há um único sacerdócio, o de Cristo, vivido sacramentalmente pela Igreja neste tempo de peregrinação, na expectativa do dia sem ocaso, em que a plenitude de Cristo, tudo em todos, anulará a necessidade de mediação, pois toda a Igreja gloriosa, corpo do Senhor, oferecerá o sacrifício de louvor.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

(1) S. João Crisóstomo, 7.ª Homilia, in A. HOUSSIAU et J. P. MONDET, Le Sacerdoce du Christ et de ses serviteurs selon les Pères de l’Église, p. 133

(2) Ibidem, p. 138

Fonte Ecclesia

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