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Fazei bem a vós mesmos
2003-02-25 21:22:45

Está a começar a Quaresma. Está a começar a aberrante, a insólita, a incompreensível Quaresma. Quarenta dias de oração, jejum e esmola, cumpridos todos os anos pelos cristãos em preparação da Páscoa da Ressurreição. Quarenta dias de penitência para fazer bem a nós mesmos.

A Quaresma é um dos momentos do ano em que os cristãos sentem mais o abismo que os separa do mundo. No Natal, nos santos populares, em tantas outras festas, a sociedade participa, de certa maneira, na cerimónia que os cristãos celebram. Participa de longe, participa na exteriorização, na alegria, mas participa. Até na Páscoa da Ressurreição, os folares, os ovos de chocolate e as amêndoas nos unem em gozo ao mundo.

Mas na Quaresma não. Quarenta dias de oração, jejum e esmola é algo que nos distingue de toda a gente. Nem sequer os que meditam na vida, os que jejuam na dieta para a praia ou os que são solidários com os pobres, nem sequer esses compreendem algo como a Quaresma. A Quaresma parece ser de outro universo. Parece que os cristãos perdem de vista a sociedade no fim do Carnaval e só a reencontram com o coelho dos ovos doces. É difícil fazer o mundo compreender a Quaresma. É difícil fazer o mundo compreender que a penitência da Quaresma é para fazer bem a nós mesmos.

Isto mostra bem como é ilusória a liberdade tão apregoada no nosso tempo. Se houvesse mesmo liberdade, testemunharíamos uma larga diversidade de comportamentos. Se a liberdade tivesse mesmo influência na nossa vida, como se diz ter, a Quaresma seria apenas mais uma das muitas práticas livres. Mas a sedução do consumo, a tentação do prazer, o consenso dos media impõem à liberdade uma esmagadora homogeneidade cinzenta de hábitos. A liberdade é destruída, não pela opressão, mas pela sedução. Pela sedução que destrói a liberdade tanto quanto a opressão. Com a agravante que as pessoas não percebem que ela está destruída. Por isso, quem quer viver a Quaresma a sério sente-a, não como uma opção entre múltiplas alternativas livres, mas como um estranho corpo aberrante, opondo-se ao monótono conformismo que a capa de liberdade esconde.

O cristão vive, não para a Quaresma mas para a Páscoa, não para a Paixão mas para a Ressurreição. O mundo também quer a Páscoa e a Ressurreição. Assim, neste mundo são a Quaresma e a Paixão que distinguem os cristãos na sociedade. O que os distingue é, não a finalidade última, a felicidade, mas o meio de lá chegar, a penitência. A sociedade vive embevecida numa ilusão de plástico, numa falsa Ressurreição, numa Páscoa sem Paixão. Os cristãos são os únicos que sabem que a única verdadeira Ressurreição exige antes a Paixão. Por isso somos os únicos que vivemos a Quaresma. O mundo quer, como nós, a alegria da Ressurreição, mas acha que pode chegar lá sem passar pela penitência da Quaresma.

A sociedade quer, tanto quanto os cristãos, a felicidade. Mas a Quaresma é aberrante porque, no meio da sedução, a sociedade não entende que “a felicidade está mais em dar do que em receber” (Act 20, 35). A felicidade ilusória deste mundo não entende que este é o caminho da felicidade. A razão porque o mundo não vive a Quaresma é porque quer uma felicidade que se baseie no receber. O cristão vê o mundo ao contrário.

Mas o cristão faz isso também para viver bem neste mundo. Quem ora aprende a viver bem no mundo. Quem faz jejum sabe suportar bem os azares que a vida lhe traz. Quem dá esmola entende como viver no meio das carências que lhe aconteçam. Fazemos penitência para chegar à felicidade, mas também conseguimos com ela aprender a viver bem. Fazemos penitência e damos esmola para fazer bem a nós mesmos, como disse um dos mais geniais portugueses de todos os tempos.
S. João de Deus, pedindo esmola pelas ruas de Granada, gritava “Irmãos, fazei bem a vós mesmos”. A súplica que S. João fazia, ao pedir esmola para o seu hospital, não invocava os pobres que acolhia e em quem ia gastar esse dinheiro. Ele suplicava pelos mesmos a quem pedia. Ele pedia a favor dos próprios que lhe davam. “Dai esmola para fazer bem a vós mesmos”. Era a preocupação pelos que podiam dar que levava S. João a pedir esmola. Ele pedia que esses tivessem misericórdia de si próprios. “Fazei bem a vós mesmos, porque a felicidade está mais em dar do que em receber”.

Este é o paradoxo da Quaresma. Da Quaresma da oração, do jejum e da esmola para fazer bem a nós mesmos, como disse o génio da Caridade que foi S. João de Deus. Da Quaresma da penitência em que damos para sermos felizes, como disse o fundador da Caridade, o Senhor que S. João serviu. “Em tudo vos demonstrei que deveis trabalhar assim, para socorrerdes os fracos, recordando-vos das palavras que o próprio Senhor Jesus disse: «a felicidade está mais em dar do que em receber»” (Act 20, 35). É isto a Quaresma.

Está a começar a aberrante, a insólita, a incompreensível Quaresma. A Quaresma que prepara para a festa mais incrível, mais surpreendente, mais escandalosa que a humanidade celebra. A festa em que Deus vai ressuscitar do corpo de um criminoso condenado. A festa em que Deus se dá a Si mesmo para a nossa felicidade. A Páscoa é a festa do Deus que nos abre o caminho para a felicidade através do sangue das Suas chagas. A Páscoa é a festa que nos mostra que a felicidade está em Ele dar a vida para nós a recebermos. Assim, se calhar, até nem admira que a Quaresma seja insólita.

João César das Neves
Professor UCP

Fonte Ecclesia

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