paroquias.org
 

Notícias






Deus só pode amar: Carta 2003
2002-12-21 20:29:11

Traduzida em 58 línguas (das quais 23 são da Ásia), esta carta, escrita pelo irmão Roger, de Taizé, foi publicada durante o encontro europeu de jovens em Paris. Ela será retomada e meditada durante o ano de 2003 nos encontros que terão lugar quer em Taizé, semana após semana, quer noutras partes do mundo.

São muitos os que, nas jovens gerações, pelo mundo fora, se interrogam e perguntam a si próprios: será que existe esperança para o nosso futuro? Como passar da inquietação à confiança?
As nossas sociedades encontram-se por vezes tão transtornadas. A humanidade tem um futuro incerto, com a pobreza em contínuo crescimento. Há tantas crianças a sofrer e tantos relacionamentos que se rompem e deixam mágoa nos corações.
E contudo, não vemos surgir, até nas situações mais atribuladas do mundo, sinais inegáveis de esperança?
Para podermos avançar, é bom sabermos: o Evangelho transmite uma esperança tão bela que nela podemos encontrar alegria para a nossa alma.
Esta esperança é como um feixe de luz que atravessa as nossas profundezas. Sem ela o gosto pela vida poderia esvanecer-se.
Onde está a fonte desta esperança? Está em Deus que só pode amar 1 e que vem à nossa procura sem nunca se cansar.

A esperança renova-se quando, humildemente, nos confiamos a Deus.2
Há uma força interior que reside em nós e que é a mesma para todos. Esta força chama-se Espírito Santo. Murmura nos nossos corações: «Abandona-te a Deus muito simplesmente, para tal a tua pouca fé basta».3
E quem é este Espírito Santo? É aquele de quem Jesus Cristo disse, no seu Evangelho: «Nunca vos deixarei sós, através do Espírito Santo estarei sempre convosco, ele será para vós um apoio e um consolador.» 4
Mesmo quando pensamos estar sós, o Espírito Santo está presente. A sua presença é invisível, contudo nunca nos deixa. 5
Pouco a pouco compreendemos que, na vida de uma pessoa, o que é essencial é amar com confiança.
A confiança é uma das realidades mais humildes e mais simples que existem, mas simultaneamente é uma das mais fundamentais.
Quando amamos com confiança, conseguimos tornar felizes os que estão próximos de nós e permanecemos em comunhão com aqueles que nos precederam e nos esperam na eternidade de Deus.

Quando alguns atravessam períodos de dúvida, lembremo-nos que a dúvida e a confiança, como a sombra e a luz, podem coexistir nas nossas vidas. 6
Gostaríamos sobretudo de reter as tranquilizantes palavras de Cristo: «Não tenhais medo; Não se perturbe o vosso coração.» 7
Então torna-se claro que a fé não é o resultado de um esforço, é um dom de Deus: é Deus que nos concede avançar, dia após dia, das nossas hesitações à confiança nele.
Deus só pode amar e a sua compaixão é fonte. Que chegue o dia em que possamos dizer: «Deus de misericórdia, mesmo se tivéssemos fé que chegasse para transportar montanhas, sem o teu amor, o que seríamos? 8 Sim, o teu amor por cada um de nós permanece para sempre.»

Uma das mais claras expressões do amor de Deus é o perdão.
Quando também nós perdoamos, a nossa vida muda pouco a pouco.
Encontrando no perdão uma alegria serena, vemos que se dissipa a severidade para com os outros. É essencial que ela dê lugar a uma bondade infinita.
Já antes de Cristo, um homem de fé exprimia este apelo: «Deixa a tua tristeza, deixa que Deus te conduza à alegria.» 9
Esta alegria cura a ferida secreta da alma. Está na transparência de um amor pacífico. Precisa de todo o nosso ser para poder expandir-se. 10

São muitos os que hoje desejam viver um tempo de confiança e de esperança. 11
Podem existir no ser humano impulsos de violência. Para que se erga a confiança sobre a terra, é necessário começarmos por nós próprios: caminhar com um coração reconciliado, viver em paz com os que nos rodeiam.
A paz sobre a terra prepara-se na medida em que cada um de nós ousa interrogar-se: estarei disposto a procurar a paz interior, pronto a avançar sem procurar o meu próprio interesse? Mesmo sem recursos, poderei ser fermento de confiança onde vivo, com uma compreensão em relação aos outros que se alargará cada vez mais?
Permanecendo na presença de Deus numa espera serena, será que poderemos abrir caminhos de paz onde surgirem oposições? 12
Quando os jovens fazem eles próprios uma opção pela paz, tornam-se portadores de uma esperança que ilumina ao longe, cada vez mais longe.
Neste período da história, o Evangelho convida-nos a amar e a dizê-lo através da nossa vida. Antes de tudo, é a nossa vida que torna a fé credível à nossa volta.
Isto também é verdade no mistério de comunhão que é o Corpo de Cristo, sua Igreja. Uma credibilidade muitas vezes perdida pode renascer quando a Igreja vive a confiança, o perdão e a compaixão e acolhe com alegria e simplicidade. Então consegue transmitir uma esperança viva. 13

Quando a nossa oração pessoal parece pobre e as nossas palavras pouco apropriadas, não nos detenhamos no caminho. 14
Um dos desejos profundos da nossa alma não é o de realizar uma comunhão com Deus?
Três séculos depois de Cristo, um cristão africano chamado Agostinho escrevia: «Um desejo que chama Deus já é oração. Se queres rezar sem cessar, nunca cesses de desejar...» 15
Uma grande simplicidade de coração dá apoio à oração contemplativa. A simplicidade é fonte de alegria.16 Ela concede que nos abandonemos a Deus, que nos deixemos levar a ele.
Nesta vida de comunhão, Deus, que permanece invisível, não nos fala forçosamente com palavras humanas. Fala-nos, sobretudo, por intuições que brotam no silêncio. 17
O silêncio, na oração, parece não ser nada. E, contudo, nesse silêncio, o Espírito Santo pode conceder-nos acolher a alegria de Deus, que vem tocar o fundo da alma.

Numa simples oração, muitos compreendem um dia que Deus lhes dirige um chamamento. Que chamamento?
Deus espera que nos preparemos a ser portadores de alegria e de paz. 18
Será que o ouviremos quando dentro de nós soarem estas palavras: «Não pares, avança, que viva a tua alma!»
Então pode ser que compreendamos que fomos criados para avançar para um infinito, um absoluto. Poderemos então descobrir: é por vezes em situações exigentes que o ser humano se torna plenamente ele próprio.
Apoiando-nos uns nos outros, 19 não nos deixando deter pelos obstáculos e sabendo reencontrar a coragem para avançar, compreendemos que há alegria no coração, e até felicidade, para os que respondem ao chamamento de Deus. Sim, Deus quer que sejamos felizes. 20
E surge o inesperado. As longas noites de penumbra são ultrapassadas. Mesmo se por vezes seguimos caminhos de obscuridade, em vez de nos enfraquecermos, podemos construir-nos interiormente.
O que nos toca é ir de descoberta em descoberta. Acolher cada dia como um hoje de Deus. Procurar em tudo a paz do coração. E a vida torna-se bela… e a vida será bela.

1 «Deus só pode amar»: esta certeza foi expressa por um pensador cristão do séc. VII, Santo Isaac de Nínive. Ele chegou a esta conclusão depois de ter estudado durante muito tempo o Evangelho de S. João e meditado nas palavras «Deus é amor» (I João 4,8). Mais do que nunca, é necessário hoje em dia lembrá-lo: o sofrimento nunca vem de Deus. Deus não é o autor do mal, nem quer o sofrimento humano, nem as desordens da natureza, nem a violência dos acidentes, nem as guerras. Partilha a dor de quem atravessa a provação e permite-nos consolar os que sofrem.

2 Em qualquer altura, cada um pode fazer sua esta oração simples, dizendo-a e tornado a dizê-la no seu coração: «Só em Deus descansa a minha alma» (Salmo 62,2).

3 Um século depois de Cristo, um cristão chamado Ireneu, de Lyon, tem a clara certeza de estar em comunhão com Deus. Ele deixou estas palavras: «O esplendor de Deus é o homem vivo. A vida do homem é a contemplação de Deus.»

4 Ver João 14,16-20.

5 Mesmo se há momentos em que a presença do Espírito Santo é menos sensível, encontramos sempre nele o apoio e a consolação com que Deus quer encher as nossas vidas. E se nós esquecêssemos a presença do Espírito Santo em nós? Descansando nele, reencontramo-lo onde quer que estejamos, na nossa casa, no trabalho, numa vida cheia de actividades…

6 Já no Evangelho vemos isso, quando encontramos um homem que dizia a Cristo: «Eu creio», mas imediatamente acrescentava: «Ajuda a minha pouca fé» (Marcos 9,24).

7 João 14,1.

8 Ver 1 Coríntios 13,2.

9 Ver Baruc 5,1-9.

10 A alegria, que pode permanecer muito ligeira, é um dos frutos do Espírito Santo em nós (ver Gálatas 5,22). A alegria dá-nos a capacidade de nos maravilharmos. Desperta-nos para a poesia da vida em qualquer estação do ano, tanto nos dias de grande luz como nas geladas noites de Inverno.

11 Na Bíblia, a esperança não é uma criação da imaginação, tem raízes na presença de Deus que nunca faltará: «Eu conheço bem os desígnios que tenho acerca de vós, desígnios de prosperidade e não de calamidade, de vos garantir um futuro de esperança» (Jeremias 29,11). Esta esperança é uma certeza: «Existe um futuro e a tua esperança não será destruída» (Provérbios 23,18). O Novo Testamento vai mais longe, ao interpretar a esperança como uma realidade que já está em acção: «A esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Romanos 5,5).

12 Durante séculos, os cristãos conheceram muitas separações. Empenhar-nos-emos hoje, sem demora, a fazer tudo para viver em comunhão uns com os outros? O apelo à reconciliação entre cristãos separados suscitou durante anos diálogos e boas partilhas. Mas a reconciliação propriamente dita não pode ser atrasada para o fim dos tempos. Mais do que nunca, é urgente entrar na via aberta por Cristo no Evangelho: «Vai primeiro reconciliar-te» (Mateus 5,24). «Vai primeiro!», diz ele, e não: «Deixa para mais tarde!»

Há hoje homens, mulheres e jovens profundamente conscientes da urgência da reconciliação vivida sem tardar. Em Março de 2002, o Papa João Paulo II fazia apelo «ao ecumenismo da santidade que nos conduzirá finalmente à comunhão plena». Depois, em Outubro de 2002, o Papa e o Patriarca ortodoxo Teoctist, da Roménia, escreveram uma declaração comum que sublinhava «o nosso empenho em rezar e trabalhar para atingir a plena unidade visível de todos os discípulos de Cristo. A nossa finalidade e o nosso desejo ardente é a plena comunhão, que não é absorção, mas sim comunhão na verdade e no amor.»

13 Há quarenta anos, o homem que talvez mais tenha marcado a comunidade de Taizé, o Papa João XXIII, soube encontrar palavras que estimulam a não parar, mas sim a continuar. Entre outras, estas: «A Igreja prefere recorrer ao remédio da misericórdia em vez de acenar com as armas da severidade.»

14 Se, para alguns, a oração solitária é difícil, a beleza de uma oração cantada, mesmo só por duas ou três pessoas, é um apoio enorme para a vida interior. Através das palavras simples, dos cânticos retomados longamente, ela pode transmitir alegria. Em Taizé ou durante os encontros nos vários continentes, descobrimos que uma oração em comum, cantada em conjunto, permite deixar subir dentro de si o desejo de Deus e entrar numa oração contemplativa.

15 De Santo Agostinho são também estas palavras: «Se desejas conhecer Deus, já tens fé.»

16 Procurar com os meus irmãos a simplicidade – a simplicidade de coração e a simplicidade de vida – está mais do que nunca no centro da nossa vocação, tanto quando vivemos em Taizé como quando vivemos em pequenas fraternidades de alguns irmãos entre os mais pobres, nos continentes do Sul. Quanto mais avançamos mais nos lembramos que somos pobres do Evangelho. Então dizemo-nos: «Sejamos homens de escuta e não mestres espirituais!»

17 A propósito da oração, Santo Agostinho escreve: «Rezar muito não é, como alguns pensam, rezar com muitas palavras… Afastemos, portanto, da oração as palavras numerosas e rezemos muito no silêncio do coração.»

18 «Somos chamados a ultrapassar os limites das nossas comunidades fechadas, a transcender preconceitos, hesitações, os nossos medos, e a dar testemunho de Cristo ressuscitado, tanto quanto o conseguirmos, para encontrar o homem contemporâneo e os problemas escaldantes que tem de enfrentar. Não se trata de se confundir com o mundo, mas de o ajudar a orientar-se (…), a fim de permitir que cada ser humano atinja a liberdade e a dignidade.» (D. Anastasios, de Tirana, primaz da Igreja ortodoxa da Albânia.)

19 O isolamento conduz ao desânimo e não permite que desabrochem os dons de Deus em cada pessoa. Para que os jovens se apoiem mutuamente, há vários anos que lhes propomos que participem numa «peregrinação de confiança na terra». Esta peregrinação permite que se descubram unidos a muitos jovens por uma mesma procura de Deus, por uma mesma esperança e por compromissos complementares. No entanto, tudo isto foi feito sem se ter organizado um movimento à volta da nossa comunidade de Taizé.

20 Nas provações da nossa vida, compreendemos pouco a pouco que a fonte da alegria não está nem em dons prestigiosos, nem nas grandes facilidades, mas no humilde dom de si próprio, para compreender os outros com a bondade do coração. Uma alegria espera sempre por nós quando, nas nossas vidas, a simplicidade está associada à bondade do coração.

In:
http://www.taize.fr/pt/index.htm
[visualizado em 21-12-2002]


voltar

Enviar a um amigo

Imprimir notícia