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O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial - 1ª parte
2002-10-20 15:58:40

PARTE I
Sacerdócio comum e Sacerdócio ordenado

1. Levantai os vossos olhos (Jo 4, 35)

1. “Eu digo-vos: Erguei os olhos e vede: os campos estão prontos para a ceifa” (Jo 4, 35). Estas palavras do Senhor têm a força de mostrar o horizonte ilimitado da missão de amor do Verbo encarnado.


O Filho eterno de Deus foi enviado “para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3, 17) e toda a sua existência terrena, de plena identificação com a vontade salvífica do Pai, é uma manifestação constante daquela vontade divina que todos se salvem, todos sejam alcançados pela salvação querida eternamente pelo Pai. Confia em herança este projecto histórico a toda a Igreja e, de modo particular, dentro dela, aos ministros ordenados. “É realmente grande o mistério do qual fomos feitos ministros. Mistério de um amor sem limites, pois “Ele que amara os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por eles” (Jo 13, 1)”1 .

Habilitados, portanto, pelo carácter e pela graça do sacramento da Ordem e tornando-se testemunhas e ministros da misericórdia divina, os sacerdotes ministros de Jesus Cristo comprometeram-se voluntariamente a servir a todos na Igreja. Em todos os contextos sociais e culturais, em todas as circunstâncias históricas, também nas actuais nas quais se sente o clima carregado do secularismo e do consumismo, que oculta o sentido cristão nas consciências de muitos fiéis, os ministros do Senhor estão conscientes de que “esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5, 4). As circunstâncias sociais hodiernas constituem, de facto, ocasião oportuna para chamar a atenção para a força vitoriosa da fé e do amor em Cristo e para lembrar que, não obstante as dificuldades e as “friezas”, os fiéis cristãos – e, de outro modo, também tantos não-crentes – contam muito com a activa disponibilidade pastoral dos sacerdotes. Os homens desejam encontrar no sacerdote o homem de Deus, que diga com Santo Agostinho: “A nossa ciência é Cristo e a nossa sabedoria é ainda Cristo. É ele quem infunde em nós a fé a respeito das realidades temporais e é ele quem nos revela aquelas verdades concernentes às realidades eternas”2 . Estamos num tempo de nova evangelização: devemos saber ir buscar as pessoas que também aguardam a possibilidade de encontrar Cristo.

2. No sacramento da Ordem Cristo transmitiu, em diversos graus, a sua qualidade de Pastor das almas aos Bispos e aos presbíteros, tornando-os capazes de agir em seu nome e de representar o seu poder capital na Igreja. “A unidade profunda deste novo povo não exclui, no seu âmago, a existência de tarefas distintas e complementares. Assim, àqueles primeiros apóstolos estão ligados, a título especial, os que foram constituídos para renovar in persona Christi o gesto que Jesus realizou na Última Ceia, instituindo o Sacrifício Eucarístico, “fonte e centro de toda a vida cristã” (Lumen gentium, 11). O carácter sacramental que os distingue, em virtude da Ordem recebida, faz com que a sua presença e o seu ministério sejam únicos, necessários e insubstituíveis”3 . A presença do ministro ordenado é condição essencial da vida da Igreja e não só de uma sua boa organização.

3. Duc in altum!4 Todo o cristão que sente no coração a luz da fé e quer caminhar ao ritmo impresso pelo Sumo Pontífice, deve procurar traduzir em factos este urgente convite decididamente missionário. Deverão saber captá-lo e colocá-lo em prática, com diligente prontidão, especialmente os pastores da Igreja, de cuja sensibilidade sobrenatural depende a possibilidade de compreender as vias pelas quais Deus quer guiar o seu povo. “Duc in altum! O Senhor convida a fazermo-nos ao largo, confiados na Sua palavra. Enriquecidos por esta experiência jubilar, prossigamos no empenho de testemunhar o Evangelho com o entusiasmo que suscita em nós a contemplação do rosto de Cristo!”5 .

4. É importante recordar que as perspectivas de fundo estabelecidas pelo Santo Padre no final do Grande Jubileu do ano 2000 foram por ele entendidas e apresentadas para serem realizadas pelas Igrejas particulares, chamadas pelo Papa a traduzirem em “ardentes propósitos e directrizes concretas de acção”6 a graça recebida durante o Ano Jubilar. Esta graça invoca a causa da missão evangelizadora da Igreja, para a qual é necessária a santidade pessoal de pastores e fiéis e um ardente sentido apostólico por parte de todos, no específico das vocações próprias, ao serviço das suas, conscientes de que a salvação eterna de muitos homens depende da fidelidade no manifestar Cristo com a palavra e com a vida. Emerge a urgência de dar mais impulso ao ministério sacerdotal na Igreja particular, especialmente na paróquia, com base na compreensão autêntica do ministério e da vida do presbítero.

“Nós sacerdotes “fomos consagrados na Igreja para este ministério específico. Somos chamados, de vários modos, a contribuir, lá onde a Providência nos coloca, para a formação da comunidade do Povo de Deus. A nossa missão (…) é apascentar o rebanho de Deus que nos foi confiado, não com a força, mas de bom ânimo, não com a atitude de dominadores, mas oferecendo um testemunho exemplar (cf. 1 Pd 5, 2-3) (…) É esta para nós a via da santidade (…) Esta é a nossa missão ao serviço do Povo cristão”7 .

2. Elementos centrais do ministério e da vida dos presbíteros8

a) A identidade do presbítero

5. A identidade do sacerdote deve ser meditada no âmbito da vontade divina de salvação, porque fruto da acção sacramental do Espírito Santo, participação da acção salvífica de Cristo e porque orientada plenamente ao serviço de tal acção na Igreja, no seu contínuo desenvolvimento ao longo da história. Trata-se de uma identidade tridimensional, pneumatológica, cristológica e eclesiológica. Não se pode perder de vista esta arquitectura teológica primordial do mistério do sacerdote, chamado a ser ministro da salvação, para poder esclarecer depois, de modo apropriado, o significado do seu ministério pastoral concreto na paróquia9 . Ele é o servo de Cristo para ser, a partir dele, por ele e com ele, servo dos homens. O seu ser ontologicamente assimilado a Cristo constitui o fundamento do ser ordenado para o serviço da comunidade. A pertença total a Cristo, tão convenientemente potenciada e evidenciada pelo sagrado celibato, faz com que o sacerdote esteja ao serviço de todos. Com efeito, o dom admirável do celibato10 recebe luz e motivação da assimilação à doação nupcial do Filho de Deus crucificado e ressuscitado à humanidade redimida e renovada.

O ser e o agir do sacerdote - a sua pessoa consagrada e o seu ministério – são realidades teologicamente inseparáveis e têm como finalidade o serviço ao desenvolvimento da missão da Igreja11 : a salvação eterna de todos os homens. No mistério da Igreja – revelada como Corpo Místico de Cristo e Povo de Deus que caminha na história, estabelecida como sacramento universal de salvação12 - encontra-se e descobre-se a razão profunda do sacerdócio ministerial. “A tal ponto que a comunidade eclesial tem absoluta necessidade do sacerdócio ministerial para que Cristo, Cabeça e Pastor, esteja presente na mesma”13 .

6. O sacerdócio comum ou baptismal dos cristãos, como participação real do sacerdócio de Cristo, constitui uma propriedade essencial do Novo Povo de Deus 14 . “Vós sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido…” (1Pd 2, 9); “e nos fez reis e sacerdotes para Deus, seu Pai” (Ap 1, 6); “fizeste deles reis e sacerdotes para o nosso Deus (Ap 5, 10)… serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com Ele” (Ap 20, 6). Estas passagens evocam o que se diz no Êxodo, transferindo para o Novo Israel o que ali se afirmava do antigo Israel: “Entre todos os povos… sereis para Mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19, 5-6); e mais ainda evocam o que se diz no Deuteronómio: “És um povo consagrado ao Senhor, teu Deus, o qual te escolheu para seres um povo especial entre todos os povos da terra, um Povo do Senhor” (Dt 7,6). “Se o sacerdócio comum é uma consequência do facto de que o povo cristão é escolhido por Deus como ponte com a humanidade e diz respeito a cada crente uma vez que está inserido neste mesmo povo, contudo o sacerdócio ministerial é fruto de uma eleição, de uma vocação específica: ‘Jesus chamou os seus discípulos e escolheu doze dentre eles’ (Lc 6, 13-16). Graças ao sacerdócio ministerial, os fiéis tornam-se conscientes do seu sacerdócio comum e actualizam-no (cf. Ef 4, 11-12); com efeito, o sacerdote recorda-lhes que são o povo de Deus e capacita-os para a ‘oferta destes sacrifícios espirituais’ (cf 1Pd 2, 5) mediante os quais o próprio Cristo faz de nós um dom eterno ao Pai (cf. 1Pd 3, 18). Sem a presença de Cristo representado pelo presbítero, guia sacramental da comunidade, ela não seria plenamente eclesial”15 .

No seio deste povo sacerdotal o Senhor instituiu, portanto, um sacerdócio ministerial, a que são chamados alguns fiéis para que sirvam a todos os outros com caridade pastoral e por meio do poder sagrado. O sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial diferenciam-se por essência e não só por grau16 : não se trata somente de uma maior ou menor intensidade de participação no único sacerdócio de Cristo, mas de participações essencialmente diversas. O sacerdócio comum fundamenta-se no carácter baptismal, que é o selo espiritual da pertença a Cristo que “capacita e compromete os cristãos a servir a Deus mediante uma participação viva na santa Liturgia da Igreja, e a exercer o seu sacerdócio baptismal pelo testemunho duma vida santa e duma caridade eficaz”17 .

O sacerdócio ministerial, ao invés, fundamenta-se no carácter impresso pelo sacramento da Ordem, que configura a Cristo sacerdote, de modo a poder agir na pessoa de Cristo Cabeça com o sagrado poder, para oferecer o Sacrifício e para perdoar os pecados18 . Aos baptizados, que receberam depois o dom do sacerdócio ministerial, foi conferida sacramentalmente uma missão nova e específica: a de personificar no seio do povo de Deus o tríplice múnus – profético, cultual e régio – do próprio Cristo como Cabeça e Pastor da Igreja19 . Portanto, no exercício das suas funções específicas, agem in persona Christi Capitis e, do mesmo modo, consequentemente, in nomine Ecclesiae20 .

7. “O nosso Sacerdócio sacramental, portanto, é sacerdócio ‘hierárquico’ e, simultaneamente, ‘ministerial’. Ele constitui um particular ‘ministerium’, ou seja, ‘serviço’ em relação à comunidade dos crentes. Não se origina, porém, desta comunidade, como se fosse ela a ‘chamar’, ou a ‘delegar’. Ele é, na verdade, dom para esta comunidade e provém do mesmo Cristo, da plenitude do seu Sacerdócio (…) Conscientes desta realidade, compreendemos de que modo o nosso sacerdócio é ‘hierárquico’, ou seja, está conexo com o poder de formar e de reger o povo sacerdotal (cf. Ivi) e precisamente por isso ‘ministerial’. Nós desempenhamos este múnus, mediante o qual o mesmo Cristo ‘serve’ incessantemente o Pai na obra da nossa salvação. Toda a nossa existência sacerdotal é e deve ser profundamente imbuída por este serviço, se quisermos realizar de maneira adequada o Sacrifício eucarístico in persona Christi” 21 .

Nos últimos decénios, a Igreja teve experiência de problemas de “identidade sacerdotal”, derivados, por vezes, de uma visão teológica menos clara entre os dois modos de participação no sacerdócio de Cristo. Nalguns ambientes, veio-se a romper aquele equilíbrio eclesiológico profundo, tão próprio do Magistério autêntico e perene.

Existem hoje todas as condições para superar tanto o perigo da “clericalização” dos leigos22 , como o da “secularização” dos ministros sagrados.

O empenho generoso dos leigos nos ambientes do culto, da transmissão da fé e da pastoral, num momento de escassez de presbíteros, induziu, por vezes, alguns ministros sagrados e leigos à tentação de irem mais além daquilo que permite a Igreja e mesmo daquilo que supera a sua capacidade ontológica sacramental. Consequência disso foi também uma subestimação teórica e prática da missão específica dos leigos de santificarem, a partir de dentro, as estruturas da sociedade.

Por outro lado, nesta crise de identidade origina-se também a “secularização” de alguns ministros sagrados, pelo ofuscamento do seu papel específico, absolutamente insubstituível, na comunhão eclesial.

8. O sacerdote, alter Christus, é na Igreja o ministro das acções salvíficas essenciais23 . Pelo seu poder sacrificial sobre o Corpo e o Sangue do Redentor, pelo seu poder de anunciar autorizadamente o Evangelho, de vencer o mal do pecado mediante o perdão sacramental, ele – in persona Christi Capitis – é fonte de vida e vitalidade na Igreja e na sua paróquia. O sacerdote não é a fonte desta vida espiritual, mas aquele que a distribui a todo o povo de Deus. É o servo que, na unção do Espírito, tem acesso ao santuário sacramental: Cristo Crucificado (Cf. Jo 19, 31-37) e Ressuscitado (Cf. Jo 20, 20-23), do qual brota a salvação.

Em Maria, Mãe do Sumo e Eterno Sacerdote, o sacerdote toma consciência de ser com Ela, “instrumento de comunicação salvífica entre Deus e os homens”, ainda que de modo diverso: a Santa Virgem, mediante a Encarnação, o sacerdote, mediante os poderes da Ordem24 . A relação do sacerdote com Maria não é só necessidade de protecção e de ajuda; trata-se, antes, de uma tomada de consciência de um dado objectivo: “a proximidade de Nossa Senhora” como “presença operante, juntamente com a qual a Igreja quer viver o mistério de Cristo”25 .

9. Como partícipe da acção directiva de Cristo Cabeça e Pastor sobre o seu Corpo26 , o sacerdote é especificamente habilitado a ser, no plano pastoral, o “homem da comunhão”27 , da guia e do serviço a todos. Ele é chamado a promover e a manter a unidade dos membros com a Cabeça e de todos entre si. Por vocação, ele une e serve na dupla dimensão da mesma função pastoral de Cristo (Cf. Mt 20, 29; Mc 10, 45; Lc 22, 27). A vida da Igreja requer, para o seu desenvolvimento, energias que apenas este mistério da comunhão, da guia e do serviço pode oferecer. Exige sacerdotes que, totalmente assimilados a Cristo, depositários de uma vocação originária à plena identificação com Cristo, vivam “nele” e “com ele” o conjunto das virtudes manifestadas em Cristo Pastor, e que, além do mais, recebe luz e motivação da assimilação à doação nupcial do Filho de Deus crucificado e ressuscitado à humanidade redimida e renovada. Exige que haja sacerdotes que queiram ser fonte de unidade e de doação fraterna a todos – especialmente aos mais necessitados -, homens que reconheçam a sua identidade sacerdotal no Bom Pastor28 e que tal imagem seja vivida internamente e manifestada externamente, de modo que todos possam captá-la, por toda a parte29 .

O sacerdote torna presente Cristo Cabeça da Igreja mediante o ministério da Palavra, participação da sua função profética30 . In persona et in nomine Christi, o sacerdote é ministro da palavra evangelizadora, que convida todos à conversão e à santidade; é ministro da palavra cultual, que exalta a grandeza de Deus e dá graças pela sua misericórdia; é ministro da palavra sacramental, que é fonte eficaz de graça. Nestas múltiplas modalidades, o sacerdote, com a força do Paráclito, prolonga o ensinamento do Divino Mestre no seio da sua Igreja.

b) A unidade de vida

10. A configuração sacramental a Jesus Cristo impõe ao sacerdote um novo motivo para alcançar a santidade31 , devido ao ministério que lhe foi confiado, que é santo em si mesmo. Não significa que a santidade, a que são chamados os sacerdotes, seja subjectivamente maior do que a santidade a que são chamados todos os fiéis cristãos em virtude do baptismo. A santidade é sempre a mesma32 , embora com diversas expressões33 , mas o sacerdote deve tender a ela por um novo motivo: para corresponder àquela nova graça que o configurou para representar a pessoa de Cristo, Cabeça e Pastor, como instrumento vivo na obra da salvação34 . No exercício do seu ministério, portanto, aquele que é “sacerdos in aeternum” deve esforçar-se por seguir em tudo o exemplo do Senhor, unindo-se a Ele “na descoberta da vontade do Pai e no dom de si mesmos pelo rebanho que lhes foi confiado”35 . Sobre esse alicerce de amor à vontade divina e de caridade pastoral se constrói a unidade de vida36 , ou seja, a unidade interior37 entre vida espiritual e actividade ministerial. O crescimento desta unidade de vida fundamenta-se na caridade pastoral38 , nutrida por uma sólida vida de oração, de tal modo que o presbítero seja inseparavelmente testemunha de caridade e mestre de vida interior.

11. Toda a história da Igreja está iluminada por modelos esplêndidos de doação pastoral verdadeiramente radical; trata-se de uma numerosa legião de santos sacerdotes, como o Cura d’Ars, patrono dos párocos, que chegaram a uma reconhecida santidade mediante a generosa e incansável dedicação ao cuidado das almas, acompanhada de uma profunda ascese e vida interior. Estes pastores, devorados pelo amor de Cristo e da consequente caridade pastoral, constituem um Evangelho vivido.

Algumas correntes da cultura contemporânea interpretam a virtude interior, a mortificação e a espiritualidade como formas de intimismo, de alienação e, portanto, de egoísmo incapaz de compreender os problemas do mundo e da gente. Verificou-se, inclusive, nalguns lugares, uma tipologia multiforme de presbíteros: do sociólogo ao terapeuta, do operário ao político e ao empresário… até ao padre “pensionista”. A propósito, deve-se recordar que o presbítero é portador de uma consagração ontológica que se estende por tempo integral. A sua identidade de fundo há-de buscar-se no carácter que lhe foi conferido pelo sacramento da Ordem, sobre o qual se desenvolve fecunda a graça pastoral. Ele, como dizia São João Bosco, é sacerdote no altar e no confessionário, como na escola, pelas ruas e em toda a parte. Por vezes, os próprios sacerdotes, diante dalgumas situações actuais, são como que induzidos a pensar que o seu ministério se encontra na periferia da vida, ao passo que, na realidade, ele encontra-se no seu próprio centro, pois tem a capacidade de iluminar, reconciliar e fazer novas todas as coisas.

Pode acontecer que alguns sacerdotes, depois de se terem encaminhado no seu ministério com um entusiasmo cheio de ideais, possam experimentar desafecto, desilusão até chegar ao fracasso. São múltiplas as causas: da formação deficiente à falta de fraternidade no presbitério diocesano, do isolamento pessoal à falta de interesse e apoio por parte do próprio Bispo39 e da comunidade, dos problemas pessoais, mesmo de saúde, até à amargura de não encontrar resposta e soluções, da desconfiança pela ascese e o abandono da vida interior até à falta de fé.

Com efeito, o dinamismo ministerial sem uma sólida espiritualidade sacerdotal traduzir-se-ia num activismo vazio e desprovido de qualquer profetismo. Resulta claro que a ruptura da unidade interior no sacerdote é consequência, antes de mais nada, do esfriamento da sua caridade pastoral, ou seja, do “amor vigilante do mistério que traz em si para o bem da Igreja e da humanidade”40 .

Deter-se em colóquio íntimo de adoração, perante o Bom Pastor presente no Santíssimo Sacramento do altar, constitui uma prioridade pastoral de longe superior a qualquer outra. O sacerdote, guia de uma comunidade, deve actuar tal prioridade para não se tornar árido interiormente e não se transformar num canal seco, que já nada poderia dar a ninguém.

A obra pastoral de maior relevância é decididamente a espiritualidade. Qualquer plano pastoral, qualquer projecto missionário, qualquer dinamismo na evangelização, que prescindisse do primado da espiritualidade e do culto divino, estaria destinado ao fracasso.

c) Um caminho específico para a santidade

12. O sacerdócio ministerial, na medida em que configura ao ser e ao agir sacerdotais de Cristo, introduz uma novidade na vida espiritual de quem recebeu este dom. É uma vida espiritual conformada através da participação do senhorio de Cristo na sua Igreja e que amadurece no serviço ministerial à Igreja: uma santidade no ministério e pelo ministério.

13. O aprofundamento da “consciência de ser ministro”41 é, portanto, de grande importância para a vida espiritual do sacerdote e para a eficácia do seu próprio ministério.

A relação ministerial com Jesus Cristo “fundamenta e exige no sacerdote um ulterior ligame que lhe é proporcionada pela ‘intenção’, ou seja, pela vontade consciente e livre de fazer, mediante o gesto ministerial, aquilo que a Igreja entende fazer”42 . A expressão: “ter a intenção de fazer o que faz a Igreja” ilumina a vida espiritual do ministro sagrado, convidando-o a reconhecer a instrumentalidade pessoal ao serviço de Cristo e da Igreja, e a actuá-la nas acções ministeriais concretas. A “intenção”, neste sentido, contém necessariamente uma relação com o agir de Cristo Cabeça na e pela Igreja, adequação à sua vontade, fidelidade às suas disposições, docilidade aos seus gestos: o agir ministerial é instrumento do operar de Cristo e da Igreja, seu Corpo.

Trata-se de uma vontade pessoal permanente: “Uma tal ligação tende, pela sua própria natureza, a tornar-se o mais ampla e profunda possível, implicando a mente, os sentimentos, a vida, ou seja, uma série de disposições morais e espirituais correspondentes aos gestos ministeriais do padre”43 .

A espiritualidade sacerdotal exige que ele respire um clima de proximidade ao Senhor Jesus, de amizade e de encontro pessoal, de missão ministerial “compartilhada”, de amor e serviço à sua Pessoa na “pessoa” da Igreja, seu Corpo, sua Esposa. Amar a Igreja e doar-se a ela no serviço ministerial requer um amor profundo ao Senhor Jesus. “Esta caridade pastoral flui, sobretudo, , do Sacrifício Eucarístico, que permanece o centro e a raiz de toda a vida do Presbítero, de tal maneira que aquilo que se realiza sobre a ara do sacrifício, isso mesmo procura realizar em si a alma sacerdotal. Isto, porém, só se pode obter, na medida em que, pela oração, os sacerdotes penetram cada vez mais profundamente no mistério de Cristo”44 .

Na penetração de tal ministério vem em nossa ajuda a Virgem Santíssima, associada ao Redentor, pois “quando celebramos a Santa Missa, no meio de nós encontra-se a Mãe do Filho de Deus, e introduz-nos no mistério da sua Oferenda de Redenção. Desta forma, Ela torna-se mediadora das graças que, para a Igreja e para todos os fiéis brotam desta mesma Oferenda”45 . Com efeito, “Maria esteve associada, de modo singular, ao sacrifício sacerdotal de Cristo, compartilhando a Sua vontade de salvar o mundo mediante a Cruz. Ela foi a primeira e mais perfeita partícipe espiritual da Sua oblação de Sacerdos et Hostia. Como tal, pode obter e dar, àqueles que no plano ministerial participam no sacerdócio do seu Filho, a graça do impulso para responderem cada vez melhor às exigências da oblação espiritual, que o sacerdócio comporta: de modo particular, a graça da fé, da esperança e da perseverança nas provas, reconhecidas como estímulos a uma participação mais generosa na oferta redentora”46 .

A Eucaristia deve ocupar, para o sacerdote, “o lugar verdadeiramente central no seu ministério”47 , porque ela contém todo o bem espiritual da Igreja e é, em si, fonte e ápice de toda a evangelização48 . Daí a relevante importância da preparação à Santa Missa, da sua celebração quotidiana49 , da acção de graças e da visita a Jesus Sacramentado no arco do dia!

14. O sacerdote, além do Sacrifício Eucarístico, celebra diariamente a Sagrada Liturgia das Horas, que ele livremente assumiu com grave obrigação. Da imolação incruenta de Cristo no altar, à celebração do Ofício divino juntamente com toda a Igreja, o coração do sacerdote intensifica o seu amor ao divino Pastor, tornando-o evidente diante dos fiéis. O sacerdote recebeu o privilégio de “falar a Deus em nome de todos”, de tornar-se “como que a boca de toda a Igreja”50 ; cumpre no ofício divino aquilo que falta ao louvor de Cristo e, como embaixador credenciado, a sua intercessão é uma das mais eficazes para a salvação do mundo51 .

d) A fidelidade do sacerdote à disciplina eclesiástica

15. A “consciência de ser ministro” comporta também a consciência do agir orgânico do Corpo de Cristo. Com efeito, a vida e a missão da Igreja, para poderem desenvolver-se, exigem um ordenamento, regras, leis de conduta, ou seja, uma ordem disciplinar. É necessário superar todo o preconceito diante da disciplina eclesiástica, a começar pela própria expressão, e superar também todo o temor e complexo ao citá-la e ao solicitar oportunamente o seu cumprimento. Quando vigora a observância das normas e dos critérios que constituem a disciplina eclesiástica, evitam-se aquelas tensões que, diversamente, comprometeriam o esforço pastoral unitário de que a Igreja necessita para cumprir eficazmente a sua missão evangelizadora. A assunção madura do próprio compromisso ministerial compreende a certeza de que a Igreja “tem necessidade de normas, para que a sua estrutura hierárquica e orgânica seja visível; para que o exercício das funções a ela divinamente confiadas, especialmente a do sagrado poder e da administração dos Sacramentos, possa ser adequadamente organizado”52 .

Além disto, a consciência de ser ministro de Cristo e do seu Corpo Místico implica o empenho do cumprimento fiel da vontade da Igreja, que se expressa concretamente nas normas53 . A legislação da Igreja tem por fim uma maior perfeição da vida cristã, para um melhor cumprimento da missão salvífica e deve, portanto, ser vivida com ânimo sincero e boa vontade.

Entre todos os aspectos merece particular destaque o da docilidade às leis e às disposições litúrgicas da Igreja, isto é, o amor fiel a uma normativa que tem a finalidade de ordenar o culto de acordo com a vontade do Sumo e Eterno Sacerdote e do seu místico Corpo. A Sagrada Liturgia é considerada como o exercício do sacerdócio de Jesus Cristo54 , acção sagrada por excelência, “meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e, simultaneamente, a fonte de onde emana toda a sua força”55 . Consequentemente, é este o âmbito em que maior deve ser a consciência de ser ministro e de agir em conformidade com os compromissos livre e solenemente assumidos perante Deus e a comunidade. “Regular a Sagrada Liturgia compete unicamente à autoridade da Igreja, a qual reside na Sé Apostólica e, segundo as normas do direito, ao Bispo. (…) Ninguém mais, absolutamente, mesmo que seja sacerdote, ouse, por sua iniciativa, suprimir ou mudar seja o que for em matéria litúrgica”56 . Arbitrariedades, expressões subjectivistas, improvisações, desobediência na celebração eucarística constituem outras tantas patentes contradições com a própria essência da Santíssima Eucaristia, que é o sacrifício de Cristo. O mesmo vale para a celebração dos outros sacramentos, principalmente para o Sacramento da Penitência, mediante o qual se perdoam os pecados e se é reconciliado com a Igreja57 .

Prestem os presbíteros a mesma atenção à participação autêntica e consciente dos fiéis na Sagrada Liturgia, que a Igreja não deixa de promover58 . Na Sagrada Liturgia há funções que podem ser exercidas por aqueles fiéis que não receberam o sacramento da Ordem; outras, pelo contrário, são próprias e absolutamente exclusivas dos ministros ordenados59 . O respeito das diversas identidades do estado de vida, a sua complementariedade para a missão, exigem que se evitem toda a confusão nessa matéria.

e) O sacerdote na comunhão eclesial

16. Para servir a Igreja – comunidade organicamente estruturada de fiéis dotados da mesma dignidade baptismal, mas de diversos carismas e funções – é necessário conhecê-la e amá-la, não como a desejariam as modas passageiras de pensamento ou as diversas ideologias, mas como foi querida por Jesus Cristo, que a fundou. A função ministerial de serviço à comunhão, a partir da configuração com Cristo Cabeça, requer o conhecimento e o respeito da especificidade do papel do fiel leigo, promovendo de todos os modos possíveis a assunção por parte de cada um das suas responsabilidades. O sacerdote está ao serviço da comunidade, mas é também apoiado pela sua comunidade. Ele tem necessidade da contribuição do laicado, não só para a organização e a administração da sua comunidade, mas também para a fé e a caridade: há uma espécie de osmose entre a fé do presbítero e a fé dos outros fiéis. As famílias cristãs e as comunidades fervorosas ajudaram muitas vezes os sacerdotes nos momentos de crise. É igualmente importante, pelo mesmo motivo, que os presbíteros conheçam, estimem e respeitem as características do seguimento de Cristo próprio da vida consagrada, tesouro preciosíssimo da Igreja e testemunho da acção fecunda do Espírito Santo nela.

Quanto mais os presbíteros forem sinais vivos e servidores da comunidade eclesial, tanto mais eles se inserirão na unidade viva da Igreja no tempo, que é a Sagrada Tradição, da qual o Magistério é guarda e garante. A referência fecunda à Tradição dá ao ministério do presbítero a solidez e a objectividade do testemunho da Verdade, vinda em Cristo a revelar-se na história. Isto ajuda-o a fugir daquele prurido de novidade, que danifica a comunhão e esvazia de profundidade e de credibilidade o exercício do ministério sacerdotal.

O pároco, de modo especial, deve ser o tecelão paciente da comunhão da sua paróquia com a sua Igreja particular e com a Igreja universal. Deveria ser também um verdadeiro modelo de adesão ao Magistério perene da Igreja e à sua grande disciplina.

f) Sentido do universal no particular

17. “É necessário que o sacerdote tenha a consciência de que o seu ‘estar numa Igreja particular’ constitui, por natureza, um elemento qualificante para viver a espiritualidade cristã. Nesse sentido, o presbítero encontra, precisamente na sua pertença e dedicação à Igreja particular, uma fonte de significados, de critérios de discernimento e de acção, que configuram quer a sua missão pastoral como a sua vida espiritual”60 . Trata-se de uma matéria importante na qual se deve adquirir uma visão ampla, que considere como “a pertença e a dedicação à Igreja particular não limitam a esta a actividade e a vida do sacerdote: não podem, de facto, ser confinadas, pela própria natureza, quer da Igreja particular, quer do ministério sacerdotal”61 .

O conceito de incardinação, modificado pelo Concílio Vaticano II e expresso no Código62 , permite superar o perigo de confinar o ministério dos presbíteros dentro de limites estreitos, não tanto geográficos, mas mais psicológicos ou até teológicos. A pertença a uma Igreja particular e o serviço pastoral à comunhão no seu seio – elementos de ordem eclesiológica – enquadram também existencialmente a vida e a actividade dos presbíteros e dão-lhes uma fisionomia constituída por orientações pastorais específicas, por metas, por doação pessoal em tarefas determinadas, por encontros pastorais, por interesses compartilhados. Para compreender e amar efectivamente a Igreja particular e a pertença e dedicação a ela, servindo-a e sacrificando-se por ela até ao dom da própria vida, é necessário que o ministro sagrado esteja cada vez mais consciente de que a Igreja universal “é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda a Igreja particular singular”63 . Com efeito, não é a soma das Igrejas particulares que constitui a Igreja universal. As Igrejas particulares, na e a partir da Igreja universal, devem estar abertas a uma realidade de verdadeira comunhão de pessoas, de carismas, de tradições espirituais, sem fronteiras geográficas, intelectuais ou psicológicas64 . O presbítero deve ter bem claro que a Igreja é só uma! A universalidade, ou seja, a catolicidade, deve preencher por si a particularidade. A ligação de comunhão profunda, verdadeira e vital com a Sé de Pedro constitui a garantia e a condição necessária de tudo isto. O próprio acolhimento motivado, a difusão e a aplicação fiel dos documentos papais e dos Dicastérios da Cúria Romana é uma expressão disso.

Considerámos o ser e a acção do sacerdote como tal. Agora, a nossa reflexão concentra-se mais especificamente no sacerdote constituído no múnus de pároco.

Fonte Ecclesia

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