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Um Vaticano para todos
2002-10-12 12:49:43

Quatro décadas após o Vaticano II, cresce no interior da Igreja o movimento que exige a realização de um novo concílio, de modo a que a fé católica e o Governo do Papa se adeqúem às novas circunstâncias políticas e sociais do Mundo.

O cântico é melódico e a entoação das vozes femininas empresta-lhe ainda mais suavidade. Os poucos homens que ocupam os bancos do pequeno templo barroco de Malhou não se fazem escutar. No altar, ladeada por acólitas vestidas com túnicas brancas, é também uma mulher que preside à celebração. Depois da homilia, Luísa Marcelino distribuirá a comunhão aos fiéis. Todos os domingos esta freira substitui o pároco numa de duas povoações rurais, Louriceira ou Malhou, do concelho de Alcanena.

Luísa não é a única freira a dirigir o serviço religioso. A falta de padres levou a Igreja Católica a aceitar que mulheres assumam no altar a condução das liturgias dominicais, uma situação impensável para Roma ainda não há muito tempo - quando, no dia 11 de Outubro de 1962, o Papa João XXIII inaugurou o Concílio Vaticano II, nenhuma mulher tinha permissão de se aproximar do altar para exercer quaisquer funções litúrgicas. E o direito dos leigos (exceptuando os candidatos ao sacerdócio) frequentarem o ensino da Teologia estava, então, excluído das discussões possíveis. Era o tempo de uma Igreja entrincheirada contra as sementes do erro. Fundamentada nas suas certezas dogmáticas, a Cúria Romana vivia ainda na desconfiança da contaminação das correntes modernistas do pós-guerra. A derrota do nazismo e o avanço dos regimes comunistas geravam novas discussões sobre a participação democrática e a emergência de novos conceitos de empenhamento político. Ao novo modelo de sociedade secularizada, a Igreja de Pio XII (antecessor de Angelo Roncalli, eleito com o título de João XXIII) respondia com a excomunhão de quantos professassem «doutrina materialista e anticristã». Os guardiães do Santo Ofício, herdeiro do Tribunal da Inquisição, tinham consciência da necessidade de reforçar a autoridade do Papa: ainda não passara um século desde a proclamação da infalibilidade papal, decretada em 1870.

João XXIII cedo se apercebera destas intransigências. E três meses depois da sua tomada de posse como «sucessor de Pedro», em Janeiro de 1959, anunciou inesperadamente perante o colégio cardinalício a decisão de convocar um concílio. Para o novo Papa, a Igreja não podia continuar «nem uma cidadela nem um museu», recorda o teólogo René Latourelle no livro «Vaticano II: Balance y Perspectivas», anotando que já não se tratava de lutar contra os adversários da religião, mas de aceitar o desafio de um diálogo aberto com as diferentes realidades humanas, proporcionando aos católicos uma nova expressão no mundo em que viviam e que Roma parecia ignorar. É precisamente nesta ideia que ele insiste na sessão de abertura do Concílio. Do trono pontifical da Basílica de S. Pedro, perante os dois mil e quinhentos padres conciliares e os 90 observadores de outras comunidades cristãs (pela primeira vez presentes numa magna reunião da catolicidade), lançou um enérgico aviso aos que no interior da Igreja viam no mundo apenas «prevaricações e ruínas». «Devemos discordar desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo», advertiu o Sumo Pontífice que, depois da sua eleição, a 25 de Outubro de 1958, descobrira o seu nome nos arquivos do Santo Ofício, sob a suspeição de «modernista».


Quarenta anos depois da ousadia de João XXIII, Luísa Marcelino lamenta «o ambiente de distanciamento das realidades humanas que se voltou a instalar nos centros de decisão da Igreja». A esta freira, que viveu em missões africanas e actualmente trabalha como técnica de Serviço Social, não é a questão da ordenação das mulheres que a faz «olhar com desconfiança» para o pontificado de João Paulo II. O que mais a incomoda «é a clericalização da vida das comunidades, que já tomou conta dos leigos e subverte a própria vocação da Igreja, fazendo-a esquecer que a sua primeira preocupação é a felicidade humana, em todas as suas dimensões». Receios que levam a freira a temer que a Igreja regrida ao momento em que se encontrava quando Angelo Roncalli foi eleito Papa.

Ao longo destes 24 anos de governo de Karol Wojtyla (eleito a 16 de Outubro de 1978) ouviram-se teólogos e alguns bispos lamentarem o facto de a Igreja estar a retomar os caminhos da intransigência e do autoritarismo. De modo disperso, algumas dessas vozes afirmaram-se a favor de uma nova reunião magna da Igreja Católica, tomando novo fôlego com uma atitude desassombrada do cardeal Carlo Martini: «Tive um sonho!», disse o antigo arcebispo de Milão, quando tomou a palavra no Sínodo dos bispos europeus, em Outubro de 1999. E esclarecendo os atónitos purpurados que se tratava da necessidade de o Papa convocar um novo concílio, explicou a razão a sua proposta: «É a possibilidade de novas e mais amplas experiências de colegialidade para conseguirmos juntos enfrentar os problemas que a vida moderna nos coloca, aproximando e confrontando as diversas culturas onde hoje se vive a mensagem cristã.»

Nunca alguém da hierarquia católica tivera a coragem, diante de João Paulo II, de explicitar questões que já sobressaltavam muitos sectores católicos. Monsenhor Martini colocava assim em causa modelos de governação da Igreja do Papa polaco que alguns bispos, no âmbito doméstico, já haviam denunciado, por contrariarem as propostas do Vaticano II. Entre os prelados que com maior vigor se expressaram, refira-se John Quinn, antigo presidente da Conferência Episcopal dos EUA, que já em Junho de 1996 protestava contra nomeações episcopais feitas por Roma sem o consenso dos bispos do respectivo país. «A Cúria considera-se subordinada ao Papa, mas superior ao colégio dos bispos», desabafou monsenhor Quinn numa conferência na Universidade de Oxford.



O ACESSO à leitura da Bíblia nas línguas nacionais levou os leigos a terem um conhecimento mais profundo da sua Igreja...

Roma, entretanto, preferiu ignorar a proposta do arcebispo emérito de Milão, que na sua diocese se distinguiu por conseguir estabelecer um notável relacionamento com sectores intelectuais distanciados da Igreja, tendo chegado a publicar com Umberto Eco um livro de diálogos sobre a fé. O desafio do cardeal Martini não se perdeu nos salões do Vaticano. Uma iniciativa internacional, surgida no princípio deste ano, para recolha de assinaturas pela Internet (www.proconcil.org), solicitando a convocação de um concílio, conseguiu já o apoio de 360 teólogos e de cerca de dez mil leigos. Subscrita também por mais de três dezenas de bispos de diversos países - entre os quais se destaca o japonês Stephen Hamao e o brasileiro Paulo Evaristo Arns -, a petição refere que são «os graves desafios da Humanidade, em particular os pobres», e «um mundo em rápida transformação e cada vez mais inter-relacionado» o que exige a convocação da magna reunião. Também o movimento internacional Nós Somos Igreja, que defende a ordenação de mulheres, lançou a ideia de um concílio «com a participação de todo o povo de Deus, para abordar os grandes desafios que se colocam ao catolicismo».

Acções como estas pretendem ser a resposta ainda possível ao desafio feito por Paulo VI, na sessão solene de encerramento do Concílio, no dia 8 de Dezembro de 1965 - João XXIII morreu oito meses depois do início do Concílio. Perante as 300 mil pessoas que naquele dia acorreram à Praça de S. Pedro, Paulo VI proclamou: «Para a Igreja Católica, não há ninguém que seja estranho, ninguém que seja excluído, ninguém que esteja longe.» Cumpria-se o projecto de João XXIII. A Igreja reconciliava-se com o Mundo, aceitando a sua legítima autonomia. E, como sublinha o teólogo Anselmo Borges, «Paulo VI conseguiu que, também pela primeira vez, um concílio não proclamasse nenhum dogma de fé nem condenasse qualquer corrente doutrinal ou filosófica». Concretizava-se a mais ampla reforma alguma vez conseguida nos dois mil anos de existência da cátedra de S. Pedro «que, ao reconhecer a separação entre a Igreja e o Estado, a religião e a política, permitiu abrir um caminho novo de respeito com a ciência e o progresso», acentua aquele sacerdote, professor de Filosofia na Universidade de Coimbra. Com Paulo VI, a Igreja reafirmou inequivocamente «o direito à liberdade religiosa e de consciência» assumindo a condenação do anti-semitismo «com que a própria Igreja tinha sido cúmplice», conclui Anselmo Borges.

Não são os discursos escandalizados de João Paulo II contra a pobreza e a defesa dos Direitos Humanos, nem tão-pouco as suas viagens pastorais e os encontros com os jovens, o que tem levado à denúncia de falta de diálogo e de desrespeito pelas especificidades culturais e sociais das Igrejas locais. Mas o que desde há muito se denuncia, reconhece o especialista em ciências bíblicas, Joaquim Carreira das Neves, «são as barreiras e bloqueios ao espírito do Vaticano II que resultam de um entendimento muito próprio que João Paulo II faz do exercício do papado». Não rejeita «a Igreja do Papa, dos bispos e dos presbíteros», mas este professor na Universidade Católica Portuguesa recorda que «a Igreja local é em si mesma a Igreja completa». Por isso é que defende «uma reflexão profunda sobre a liberdade das decisões particulares de cada Igreja local, passando necessariamente pela autonomia das respectivas conferências episcopais». Uma reforma que, «no imediato, não tem obrigatoriamente de passar por um concílio», acrescenta Carreira das Neves, «mas exige um reiniciar de diálogo, por parte de Roma, com os diferentes episcopados, tanto mais que é o próprio Vaticano II que propõe que a Igreja local seja, no seu todo, a expressão da cultura onde está implantada». O que está em causa não é apenas o entendimento que João Paulo II tem vindo a fazer da sua autoridade de «sucessor de Pedro». Deve, aliás, ter-se em conta que foi Karol Wojtyla quem, em 1995, assumiu a necessidade de os teólogos reflectirem sobre a forma concreta de exercer o papado. Na sua encíclica Ut Omnes Unum Sint, que trata o primado do Papa, colocou mesmo a questão em função da aproximação com as outras Igrejas cristãs.

«Estamos perante uma mudança de época mais do que diante de uma época de mudança», diz o teólogo espanhol Juan Tamayo-Acosta para salientar que a Igreja se encontra perante um «novo cenário mundial», não menos significativo que o período pós-Segunda Guerra Mundial, quando o mundo foi surpreendido com o atrevimento de João XXIII. Tamayo-Acosta defende que um novo encontro mundial da Igreja «seria um momento oportuno» para, «em diálogo com as ciências da vida», reformular a doutrina tradicional sobre a sexualidade, assim como as questões da bioética, como a eutanásia, a reprodução assistida, a manipulação genética, a investigação e experimentação com embriões e a clonagem. Questões que, para o teólogo, o cristianismo não pode ignorar: «O cristianismo, enquanto religião mundial, deve perguntar-se como pode contribuir para corrigir os desajustes do processo globalizador na sua versão liberal, construindo um mundo onde todos tenham lugar.»

Tudo isto Anselmo Borges subscreve, «porque nem de outra maneira poderia pensar a necessidade de um concílio». Mesmo assim, o teólogo defende que «seria totalmente ilegítima uma assembleia em que a questão dos direitos humanos no interior da Igreja fosse esquecida». «Existem barreiras e bloqueios que devem ser denunciados precisamente por ofenderem a dignidade humana», diz, lamentando «as portas que se fecharam no interior da Igreja a tantos dos seus próprios filhos, quando foi o próprio João Paulo II quem deu um contributo exemplar, com a sua acção e os seus discursos, na defesa dos Direitos Humanos entre as nações, levando à queda do Muro de Berlim e em favor do direito dos trabalhadores e contra os abusos do neo-liberalismo. Não é legítimo, adverte Anselmo Borges, convocar um concílio «sem que se termine de vez a censura e o silenciamento de um grande número de teólogos, se imponha uma moral sexual que peca contra a natureza humana, se recuse a ordenação de mulheres, se mantenha a lei obrigatória do celibato sacerdotal, a exclusão do acesso aos sacramentos por parte dos divorciados que voltaram a casar, e a proibição dos leigos poderem pregar...» Um rol de queixas que, no seu entender, «resultam em boa parte de um conceito de primado do Papa que se autocompreende acima da Igreja e do mundo, como autêntica monarquia absoluta, contrária ao Evangelho».

E se todos os desejos de um concílio apontam o respeito pelas comunidades e as respectivas expressões locais, Juan Tamayo-Acosta é de opinião que o Vaticano «não é o lugar mais adequado para o novo concílio». O catolicismo de hoje tem um rosto muito mais multicultural e multirracial do que em Outubro de 1962. A centralidade da Igreja Católica já não é a Europa, como até meados do século XX. Um dia será a Europa que necessitará de missionários do Terceiro Mundo, onde hoje estão 70% dos mais de mil milhões católicos. Mas à proposta do teólogo espanhol, Anselmo Borges acrescenta um outra: «As várias Igrejas cristãs deveriam participar já num próximo concílio, que só assim seria verdadeiramente ecuménico.» Mas o teólogo aponta mais longe: o próximo concílio da Igreja «deveria estimular a formação de um Parlamento Mundial de Religiões, também com a representação de não-crentes, onde se debatesse as questões da Humanidade e de humanidade». Afinal, 85% da população mundial confessa-se religiosa, recorda.

A questão ainda não preocupa os fiéis das comunidades de Luísa Marcelino. As suas interrogações, quando se reúnem para a reflexão bíblica, após um dia de trabalho, pertencem a ordem bem mais prática: «Na Igreja existem sete sacramentos, porque é que as mulheres apenas podem receber seis?» Deixando claro que não pretende, um dia, ter acesso ao actual modelo de sacerdócio, a freira responde: «Talvez o próximo concílio consiga desembaraçar-se desta pedra de escândalo»...

Fonte Expresso

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