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Homilia proferida pelo Patriarca de Lisboa na vigília do milénio
2001-01-03 22:30:35

Sé Patriarcal, 31 de Dezembro de 2000.

1- Nesta noite o calendário, na medida do tempo que, por sua vez, mede a nossa vida, muda de século e introduz-nos no terceiro milénio da era cristã. A convite do Santo Padre, reunimo-nos em oração, unidos a toda a Igreja. É esta a forma cristã de dar sentido ao tempo histórico, sobretudo aos seus momentos mais significativos. Nosso Senhor Jesus Cristo iniciou o tempo definitivo, o Reino de Deus, que só será realidade plenamente realizada na plenitude do tempo, o tempo escatológico. Até lá, a Igreja anuncia e edifica esse Reino de Deus, com a força do Espírito de Jesus, no seio da ambiguidade da história. A Igreja vive da esperança. Como nos recorda S. Paulo na Carta aos Romanos, “é em esperança que estamos salvos, pois ver o que se espera não é esperança: (...) mas esperar o que não vemos é esperá-lo com perseverança” (Rom. 8, 24-25).
Esta é a afirmação do realismo da esperança cristã, que denuncia aqueles que desanimam por não verem ainda um mundo perfeito ou que são incapazes de, no meio dos aspectos negativos do mundo presente, discernir os avanços positivos e os sinais do crescimento do Reino de Deus. Estamos ainda longe da harmonia do Reino messiânico, anunciado pelo profeta Isaías. Estes dois mil anos de história do cristianismo foram apenas o tempo necessário para lançar a semente à terra e mergulhar o fermento na massa, o qual, silenciosamente, começou já a transformação de toda a realidade humana. No contexto da complexa problemática do mundo contemporâneo, há já sinais consoladores dessa lenta transformação da história. O Evangelho de S. Lucas denuncia aqueles que desanimaram, não aguentando a tensão da esperança e se comportaram como se o mundo já não esperasse um fim positivo: serão julgados por isso. (cf. Lc. 12, 45-47).
Não deve ser essa a nossa atitude, nesta data tão significativa da história da humanidade. Se é legítimo olhar o século que ora finda com realismo cristão, devemos igualmente alargar o horizonte da nossa esperança, discernindo sinais do Reino a germinar, desse parto doloroso de um mundo novo. Sirvam-nos, mais uma vez, de guia as palavras realistas do Apóstolo Paulo: “Eu penso que os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que se há-de manifestar em nós. Na verdade, as criaturas esperam ansiosamente a revelação dos filhos de Deus. Elas estão sujeitas à vã situação do mundo, (...) na esperança de serem libertadas da corrupção que escraviza, para receberem a gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rom. 8, 18-23).

2. Em termos de progresso da humanidade o século que agora termina é um conjunto onde brilham algumas luzes, mas profundamente toldado por sombras preocupantes. Foi um período marcado pelas mais profundas e aceleradas mudanças da história da humanidade. O progresso das ciências, que provocou a revolução tecnológica, gerou uma nova relação do homem com o universo, pondo as potencialidades deste ao serviço da vida humana, acelerando os processos de desenvolvimento; foram vencidas muitas doenças e a esperança de vida foi progressivamente aumentando. O aperfeiçoamento dos canais de comunicação entre os homens levou a uma nova consciência da unidade do mundo que constitui uma única família humana. Os povos, na variedade das suas culturas, confrontaram-se mais claramente e influenciaram-se mutuamente, cada um ganhando consciência da sua especificidade e da sua diferença, fazendo aparecer como possível e necessário o diálogo inter-cultural. Manifestação importante deste processo irreversível foi o fim da época colonial com o acesso à independência dos povos dominados e colonizados, começando a delinear-se uma nova ordem internacional, marcada por uma globalização crescente dos problemas e das soluções.
Mas são muito carregadas as sombras: ao progresso material não correspondeu um aprofundamento espiritual. Antes se assistiu a um materialismo invasor de todas as dimensões da vida que levou a uma expansão do ateísmo prático e mesmo teórico, nunca antes conhecida na história da humanidade. Este materialismo, alterando o sentido ético da existência, gerou modelos de desenvolvimento que se adaptam mal às exigências da dignidade da pessoa humana. Assistiu-se ao fenómeno do egoísmo colectivo dos povos, que provocou assimetrias graves no próprio desenvolvimento, dando uma dimensão escandalosa e gigantesca à diferença entre ricos e pobres, elevando para níveis intoleráveis a corrupção e a exploração das pessoas. Perdeu-se progressivamente o sentido do carácter sagrado da vida humana e foi-se deslizando para uma autêntica cultura da morte.
No novo confronto entre as culturas e as tradições étnicas e religiosas, a cultura ocidental, apesar do fim do colonialismo, não deixou de ser dominante e, nem sempre, de uma forma positiva e respeitadora das outras identidades culturais. O Santo Padre João Paulo II, na sua primeira mensagem do novo milénio, denuncia-a claramente: “Se é motivo de grande preocupação a radicalização das identidades culturais que as torna impermeáveis a qualquer influxo exterior benéfico, não o é menos o risco da ‘homologação servil das culturas’, ou de algum dos seus aspectos relevantes, a modelos culturais do mundo ocidental que, levantando ferros do ancoradouro cristão, foram inspirar-se numa concepção secularizada e praticamente ateia da vida e em formas de individualismo radical. Trata-se de um fenómeno de vastas proporções, apoiado por poderosas campanhas nos mass-media, nas quais se procura transmitir estilos de vida, projectos sociais e económicos, e, em última análise, uma visão global da realidade que corroem por dentro diversos sistemas culturais e civilizações nobilíssimas. Devido à sua elevada conotação científica e técnica, os modelos culturais do Ocidente apresentam-se atraentes e sedutores, mas revelam infelizmente, de forma cada vez mais clara, um progressivo empobrecimento humanista, espiritual e moral. A cultura que os gera caracteriza-se pela dramática pretensão de realizar o bem do homem pondo Deus, o sumo Bem, de lado”.
Esta espécie de “colonização cultural” é agravada pelas modernas técnicas de comunicação, dominadas pelo Ocidente. O Santo Padre continua: “O facto de o monopólio das «industrias» culturais estar concentrado num número restrito de países, que distribuem os seus produtos por todos os cantos da terra a um público sempre mais vasto, pode constituir um poderoso factor de corrosão das especificidades culturais. É que tais produtos contêm e transmitem implicitamente sistemas de valor, podendo assim provocar, nos receptores, efeitos de expropriação e perda de identidade”.
Mas a grande mancha do século que agora termina foi a violência das duas guerras mundiais, de tantos conflitos locais, de genocídios e extermínios humanos numa escala nunca antes conhecida. Esperemos que a humanidade do terceiro milénio se possa libertar definitivamente dos efeitos traumáticos de tanta violência.

3. Às luzes e sombras deste século não ficou alheia a Igreja. Em meados do século deu-se o acontecimento mais relevante da história da Igreja contemporânea: o Concílio Vaticano II. Consciente da mudança do mundo, vendo realisticamente as luzes e as sombras, “a alegria e a esperança, a dor e a angústia” do mundo contemporâneo, desafia a Igreja para a leitura dos sinais de esperança e reenvia-a ao mundo como mensageira dessa esperança. Se há realidade da história do século XX que nos projecta para o século XXI, é o Concílio Vaticano II. A coragem da nossa esperança será a medida do nosso optimismo em relação ao “tempo novo” que agora se inicia. As próprias sombras deixam passar a luz que ilumina os caminhos dessa esperança num mundo melhor.
Terminamos este século conscientes que as principais ameaças à paz provêm dos egoísmos económicos e do desrespeito pelas culturas e tradições de cada Povo. É aí que é preciso pôr todo o nosso esforço na construção de um mundo novo.
Como João Paulo II o afirma, na sua mensagem para o dia mundial da paz, o novo século terá de aprofundar, de forma decisiva, o diálogo inter-cultural, que leve a um melhor conhecimento mútuo dos povos, ao respeito pelas diversas culturas. O primeiro fruto desta atitude dialogante será o reconhecimento de valores universais, que constituem o núcleo perene de todas as culturas e devem inspirar a exigência ética de uma nova convivência entre os povos.
O primeiro será, certamente, a dignidade da pessoa humana, o respeito pelo carácter sagrado da vida, desenvolvendo os verdadeiros fundamentos dessa dignidade, que inspirarão o exercício da liberdade e a busca de um sentido nobre para a existência. Neste aspecto é urgente criar um novo espaço de abertura, no seio da própria sociedade, para a fé em Deus e para a dimensão religiosa. A defesa da laicidade do Estado e da sua neutralidade em matéria religiosa, foi relegando a dimensão da fé para uma situação marginal de privacidade individual, não a valorizando na compreensão global do sentido da história. Não é preciso renunciar à laicidade do Estado para valorizar na educação e na cultura a dimensão religiosa da existência, como força inspiradora de sentido e constitutiva de um universo ético de valores. Quanto mais as religiões forem marginalizadas do processo social, mais elas se tornarão focos de tensão, campo fértil de fundamentalismos iluminados. A humanidade terá muito a ganhar, quer com o diálogo inter-religioso, quer com o diálogo da cultura com o pensamento religioso. Deus não deixa de existir por a sociedade O ignorar. Por outro lado, as religiões são chamadas a inserirem-se no crescimento harmónico do processo social, através do diálogo cultural.
Um outro valor universal que emerge na consciência colectiva dos povos é o da solidariedade generosa. É urgente vencer vitoriosamente os egoísmos, das pessoas, das nações, dos sistemas. É uma exigência da luta pela justiça. Trata-se de um desafio aos modelos de desenvolvimento, ao sentido histórico dos sistemas económicos e políticos. O novo século terá de encontrar novas opções económicas e políticas de desenvolvimento, no quadro da solidariedade entre as nações. Ou se dão passos significativos na diminuição do fosso entre países pobres e países ricos, ou se alimenta uma fonte incontrolável de conflitos. A humanidade daria um grande sinal de maturidade se fizesse essa passagem movida por convicções e não forçada por uma qualquer catástrofe colectiva. Como afirma o Papa, isso exigirá “alteração dos estilos de vida, dos modelos de produção e de consumo, das estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades” (Mensagem, n.º 17). Tudo isso exigirá uma generosidade colectiva, lúcida e corajosa.
Um outro valor universal das culturas é a verdade nas afirmações e a honestidade nos processos. Não se constrói um mundo novo sobre a mentira e sobre a corrupção, expressões de desígnios ocultos e interesses desonestos. É preocupante a dimensão que estes desvios ganharam no mundo contemporâneo, em todos os regimes e em todos os horizontes culturais. É um factor facilmente denunciável pelas opiniões públicas que se sentem, no entanto, impotentes para mudar o rumo das coisas. O conceito de “política realista”, leva os dirigentes e os sistemas a enquadrar o fenómeno, que é, em si mesmo, intolerável. É preciso que uma “política da realidade” seja transformada por “políticas da verdade”.
Um outro valor universal, hoje transformado em consciência colectiva, é a preservação do planeta como “habitat” do homem. As hesitações em adoptar as medidas urgentes para salvar o planeta, por motivos de estratégias económicas, começam a raiar a fronteira do escândalo. Nenhuma vantagem económica e desenvolvimentista justifica que se comprometa o bem fundamental da humanidade. É algo que desafia a criatividade da ciência, a coragem dos dirigentes, a generosidade dos agentes económicos, para se conseguir uma acção do homem sobre o universo, justa em si mesma, que o valorize sem o comprometer. A ausência de políticas corajosas neste sector deixa campo aberto a todos os fundamentalismos ecológicos que também não são, em si mesmos, portadores de soluções verdadeiramente humanas.
Estes valores universais estão já a constituir uma verdadeira consciência colectiva ao nível da humanidade. Só ela poderá encorajar os indecisos, inspirar os dirigentes e forçar os sistemas. Só ela será, verdadeiramente, anunciadora de novos caminhos para a paz.
Entremos no terceiro milénio dinamizados pela esperança. Cristo é a nossa esperança e o Seu Espírito a força que vai transformando o mundo, até ao fim, “até que Ele venha”.

D. José Policarpo, Patriarca de Lisboa


Fonte Ecclesia

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