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A Palavra e o Gesto - Homilia de D. José Policarpo
2002-03-25 15:50:01

1. Com esta celebração entramos na Semana Santa, a “Semana Maior”, toda ela meditação sobre a nossa redenção, contemplação do rosto de Jesus que deu a vida por nós, encarnando dolorosamente o amor com que Deus nos ama; um rosto doloroso, que comunica a serenidade confiante do Filho e anuncia o esplendor da Sua glória divina.

Toda a caminhada quaresmal convergiu para esta densidade celebrativa e todos sabemos que a profundidade da nossa Páscoa em muito depende da radicalidade do nosso itinerário quaresmal. Durante esta semana, contemplando a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, somos convidados a descobrir o nosso próprio itinerário de salvação. Escutando a Palavra do Senhor com ouvidos de discípulo, através da significação envolvente dos gestos litúrgicos, acolhendo em silêncio a densidade do mistério, deixando crescer em nós o desejo de entrega e de fidelidade, descobriremos o nosso próprio caminho de libertação, que nos levará à intimidade consoladora da filiação divina.
Na actual liturgia da Igreja não são muitas as celebrações em que a encenação simbólica de acontecimentos da vida de Jesus aparece integrada ao lado da abundante riqueza dos símbolos sacramentais. Duas dessas evocações acontecem, precisamente, nesta Semana Maior: a evocação da entrada messiânica de Jesus em Jerusalém e do gesto de Jesus que lava os pés aos seus discípulos, mostrando-lhes que o caminho da glória é um caminho de despojamento e humildade. Em ambas estas evocações se sublinha a importância dos gestos enquanto expressões de fé e de amor, a sugerir-nos que, durante esta semana, o tempo não é para longos discursos, mas antes para gestos significativos e envolventes que nos levem ao abandono de todo o nosso ser ao mistério do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo. Havemos de nos prostrar em adoração, de beijar a Cruz do Senhor, de empunhar bem alto a luz, sinal de alegria e de esperança, deixarmo-nos banhar, recolhidos, pela água purificadora que evoca o nosso baptismo. Em todos estes gestos exprimiremos o abandono do nosso coração, procurando no silêncio a linguagem da nossa compreensão. As palavras pronunciadas serão apenas a revelação do sentido desse silêncio adorante.

2. Para a mais clara e explícita proclamação da Sua qualidade messiânica, Jesus optou por um gesto, linguagem da profecia messiânica de Zacarias: “Exulta com todas as tuas forças, filha de Sião, clama de alegria, filha de Jerusalém! Eis que o Teu Rei vem a ti; Ele é justo e vitorioso, humilde e montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, cria de uma jumenta” (Za. 9,9; cf. Is. 62,11). Neste gesto está definida a humildade e a mansidão da glória do Rei messiânico. Ele não se afirmará com o fragor dos cavalos e dos carros de guerra dos triunfadores deste mundo, mas com a humildade de um servo. São Paulo, contemplando já a plena glória do itinerário de Jesus Cristo, interpretará esta profecia: “Cristo Jesus, de condição divina, não se prevaleceu da Sua igualdade com Deus. Mas aniquilou-Se a Si próprio, assumindo a condição de servo” (Fil. 2,6).
Naquele dia, em Jerusalém, Jesus tem consciência de que as profecias se cumprem na Sua pessoa. Ao montar naquele jumento e entrar assim em Jerusalém, Ele assume-se como Messias; e a multidão percebeu, responde com gestos de aclamação, faz uma profissão de fé no Rei messiânico. Mas aquela multidão, e os próprios discípulos, não perceberam que aquela entrada em Jerusalém era apenas a primeira etapa de um longo e doloroso percurso, em que se revelará a verdadeira identidade do Messias na humildade do Servo sofredor, obediente até à morte e morte de Cruz. Isso é próprio dos gestos: abrem para o mistério mas não o explicam. Só a fidelidade pessoal a Jesus nos permitirá passar de gesto em gesto, identificando-nos com Ele no mistério redentor. Nesse itinerário que o Senhor iniciou e no qual nos convida a segui-Lo com fidelidade de discípulos, aparecerão outros sinais: a humilhação da prisão, a injustiça de um processo sem julgamento, os entorses à própria lei estabelecida, a condenação a uma morte ignominiosa. A simplicidade daquele jumento vai dramatizar-se em toda a humilhação do Messias Servo de Yahwé, e nesse itinerário poucos o acompanharam até ao fim: a multidão muda de atitude e pede a sua condenação na praça pública, chegando ao cúmulo de lhe preferir um criminoso de direito comum; os discípulos fogem assustados e Pedro chega mesmo a dizer que não o conhece de lado nenhum. Só Maria, sua Mãe, e algumas mulheres, vão até ao fim e estão com Ele, adorando-O na Sua Cruz.

3. Temos de reconhecer que este itinerário do Messias de Deus era misterioso e exigente. Aqueles discípulos que O abandonaram, depois de O terem seguido, aquela multidão que O condena, depois de O ter aclamado, sofreram da fragilidade de uma fé pouco enraizada na fidelidade a Jesus Cristo, independentemente da exigência do caminho. Jesus morre sozinho, não porque não tivesse tido em vida amigos incondicionais e multidões que o aclamaram e com Ele se comoveram. Jesus morre sozinho, porque essa solidão exprime dramaticamente a separação da humanidade pecadora em relação a Deus; Jesus morre sozinho, porque essa solidão vence o divórcio entre o homem e Deus, voltando a viabilizar a aliança de amor; Jesus morre sozinho, porque a Sua solidão é a semente de uma nova comunhão.
Segui-Lo como discípulos só é radicalmente possível depois desta Sua vitória sobre a morte, na solidão e no abandono. O novo itinerário do discípulo é possível, porque Jesus ressuscitado nos enviou o Seu Espírito. Fortalecidos por Ele, não nos ficaremos pelos momentos fáceis e triunfais da nossa condição de cristãos. Segui-Lo-emos, tomando a nossa própria Cruz, tendo ouvidos de discípulo, isto é, um coração aberto e atento a toda a Palavra que nos chega do coração de Deus. Esta Palavra desvendará o sentido dos gestos. E nesta semana o grande gesto é a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, a convidar-nos ao abandono silencioso e adorante.


† JOSÉ, Cardeal-Patriarca


Fonte Ecclesia

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