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“O sacramento do matrimónio: a graça plenifica a natureza”:3.ºDomingo da Quaresma 03.03.02
2002-03-04 17:58:48

1. A vida cristã é uma caminhada para a santidade. Esta consiste na vida sintetizada no amor, plenitude de todos os dons que recebemos de Deus, quando nos criou. A santidade não anula a natureza, é, antes, a sua plenitude. Deus revelou-nos, através da história da salvação, que este crescimento no amor é feito com Ele, que celebra uma aliança de intimidade com o seu povo. Jesus Cristo, o Filho de Deus e homem completamente obediente a Deus, leva, na sua Páscoa, esta aliança à perfeição. N’Ele todos os homens podem atingir a plenitude da aliança com Deus. Ele próprio, falando da sua Paixão, se refere ao derramamento do Seu próprio Sangue, como sinal de aliança: “Este cálice é a nova aliança no meu Sangue, que vai ser derramado por vós” (Lc. 22,20).


Os cristãos celebram e vivem esta aliança de amor, sempre numa referência necessária à morte e ressurreição de Cristo, prolongada na sua vida, como força de amor, pelo dom do Espírito Santo. Os sacramentos da Igreja são meios de os cristãos referirem a sua vida à Páscoa de Jesus, recebendo deles a força do Espírito, para poderem viver a sua vida como experiência de dom e de amor.

Segundo a tradição da Igreja, são sete os sacramentos, todos eles vivência e actualização da Páscoa de Cristo, no Espírito Santo. Mas como eles se dirigem à vida concreta das pessoas e à vitalidade da Igreja, como Povo do Senhor, podemos dividi-los em três grupos, segundo a sua significação específica: os sacramentos da iniciação cristã. Baptismo, confirmação, eucaristia, realizam a união do cristão a Cristo ressuscitado e, por Ele, à Santíssima Trindade, tornando-o capaz de celebrar a Páscoa de Jesus; o sacramento da ordem consagra e santifica os ministros de Cristo, que hão-de agir em nome de Cristo, para santificação de toda a Igreja; há depois um terceiro grupo de sacramentos que relacionam com a morte e ressurreição de Cristo, dimensões da experiência humana, particularmente universais e significativas. A experiência do pecado, assumida e confessada e transformada pelo arrependimento, no sacramento da reconciliação proporciona a graça da conversão; a experiência da doença, do sofrimento e da morte, oferece, no sacramento da unção, a graça da saúde, da força para sofrer e da conversão a Deus, que será nosso juiz, justo e bondoso; o casamento, enquanto experiência de amor e de comunhão, encontra, no sacramento do matrimónio, a graça de um amor mais generoso e de uma comunhão tão profunda que se funde com a própria comunhão de Cristo com o seu Povo.

Porquê mais um sacramento?

2. Já falámos, nos domingos anteriores, da beleza do projecto de Deus acerca da união esponsal do homem e da mulher, como experiência de amor e comunhão, mas também da fragilidade dos dinamismos humanos do amor, enfraquecidos pelo pecado. Para que a união conjugal atinja a plenitude do amor, os esposos precisam de ser fortalecidos com a força do Espírito, que os ajuda a viver a sua aliança de amor ao ritmo da aliança de Deus com o seu Povo, definitivamente ratificada na morte de Cristo. O casamento é uma experiência humana onde é cada vez mais claro que, para o amor não definhar, antes crescer até à perfeição da caridade, precisa da força de Deus. O sacramento do matrimónio, consequência da união dos esposos a Cristo, pelo baptismo, é a fonte dessa força.

O casamento, enquanto comunhão de amor do homem e da mulher, não começa com Cristo, ele é um dom da criação. A Páscoa de Jesus redime-o, fortalece-o e permite-lhe atingir a perfeição querida por Deus desde a criação. O Papa João Paulo II afirma: “Cristo revela a verdade originária do matrimónio, a verdade do princípio e, libertando o homem da dureza do seu coração, torna-o capaz de a realizar inteiramente” 1. Esta plenitude do amor conjugal faz parte da plenitude da aliança com Deus, realizada na Cruz de Cristo, onde os cristãos mergulham, pelo baptismo. Continua o Santo Padre: “No sacrifício da Cruz manifesta-se inteiramente o desígnio que Deus imprimiu na humanidade do homem e da mulher, desde a sua criação. O matrimónio dos baptizados torna-se, assim, o símbolo real da Nova e Eterna Aliança, selada no Sangue de Cristo. O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a mulher capazes de se amarem, como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge a plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal, que é o modo próprio e específico com que os esposos participam e são chamados a viver a mesma caridade de Cristo que Se entrega sobre a Cruz” 2. E mais à frente, referindo-se às graças próprias deste sacramento, o Papa acrescenta: “Trata-se de características normais do amor conjugal natural, mas com um significado novo, que não só as purifica e as consolida, mas eleva-as a ponto de as tornar expressão dos valores propriamente cristãos” 3.

O sinal sacramental.

3. Todos os sacramentos realizam a sua graça própria através de uma realidade sinal, rica de significado humano, através da qual o Espírito de Deus realiza uma nova significação, da ordem da plenitude da salvação. O significado sobrenatural é obra do Espírito; mas a significação humana da realidade sinal sugere-a: no baptismo, a água purificadora e vivificadora, significa e realiza o nascimento para uma vida nova, participação na vida de Cristo ressuscitado.

No sacramento do matrimónio qual é a realidade sinal? É a própria realidade do amor conjugal. Tratando-se de uma comunhão de amor, nenhuma outra realidade poderia significar melhor a perfeita comunhão, na caridade, a que o Espírito Santo conduz os cristãos. E o amor conjugal é sinal do amor redentor de Jesus Cristo, na pluralidade das suas dimensões. Demos, ainda, a palavra ao Santo Padre: “O amor conjugal comporta uma totalidade na qual entram todas as componentes da pessoa: chamamento do corpo e do instinto, força do sentimento e da afectividade, aspiração do espírito e da vontade. O amor conjugal tem, por fim, uma unidade profundamente pessoal, aquela que, para além da união numa só carne, conduz a um só coração e a uma só alma” 4.

Sendo a própria realidade humana do casamento o sinal sacramental do matrimónio, os esposos cristãos, por força do seu baptismo, celebram o sacramento, de que são ministros, ao ritmo da vivência da sua união conjugal, vivida na generosidade e na fidelidade. É um sacramento de celebração contínua, o que ajuda os esposos cristãos a dar à sua vida conjugal uma dimensão de celebração e de louvor. A sua vida torna-se liturgia. Voltemos a ler a “Familiaris Consortio”: “O matrimónio cristão, como todos os sacramentos que estão ordenados à santificação dos homens, à edificação do Corpo de Cristo e a prestar culto a Deus é, em si mesmo, um acto litúrgico de louvor a Deus, em Jesus Cristo e na Igreja: celebrando-o, os esposos cristãos professam a sua gratidão a Deus pelo dom sublime que lhe foi dado de poder reviver na sua existência conjugal e familiar, o mesmo amor de Deus pelos homens e de Cristo pela sua esposa” 5.

4. O sacramento do matrimónio, ao constituir como sinal sacramental a união dos esposos, exprime o realismo do mistério da encarnação, em que o Verbo eterno de Deus se nos dá, numa comunhão de amor, através do Seu próprio Corpo: “Tomai e comei, isto é o meu Corpo” (Mt. 26,26); e São Lucas acrescenta “que vai ser entregue por vós. Fazei isto em minha memória” (Lc. 22,19). A encarnação e o sacrifício redentor de Cristo são o fundamento de uma teologia do corpo. O corpo exerce, no conjunto do mistério da pessoa humana, um papel simbólico de sinal. Ele exprime e torna visível os sentimentos do espírito e do coração: a ternura, a entrega e o dom, a intimidade e a fecundidade, o desejo unificador de comunhão.

Numa das suas Catequeses de quarta-feira o Santo Padre afirma, referindo-se ao sacramento do matrimónio: “Como sinal visível, o sacramento constitui-se com o ser humano enquanto corpo, na realidade da sua masculinidade e feminilidade visíveis. Com efeito, o corpo e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Ele foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério escondido, desde toda a eternidade, em Deus e ser o seu sinal visível” 6.

Sinal visível das realidades invisíveis, o corpo exprime a comunhão de amor entre o homem e a mulher e o aprofundamento dessa comunhão, na caridade é, exactamente, a graça própria deste sacramento. E mais uma vez este crescimento qualitativo entre duas pessoas se insere na relação entre Cristo e a Igreja, sendo a sua realização.

No Antigo Testamento era comum fazer da união esponsal o símbolo da união de Deus com o seu Povo, no mistério da aliança. No Novo Testamento verifica-se uma transformação qualitativa desta imagem. A verdadeira e definitiva comunhão esponsal é aquela que existe entre Cristo e o Seu corpo, que é a Igreja e as núpcias dos cristãos participam dessa comunhão esponsal e, através do sacramento, realizam-na na sua própria experiência humana de casal, foco de irradiação de uma nova comunhão alargada, a família, autêntica concretização da Igreja comunhão. A família, a partir da graça do sacramento, torna-se, realmente, uma “igreja doméstica”. É São Paulo que faz a síntese entre estes dois momentos de um mesmo mistério: “Eis que o homem deixará o seu pai e a sua mãe para se unir à sua mulher e os dois formarão uma só carne. Este é um mistério de grande alcance, porque se aplica a Cristo e à Igreja” (Ef. 5,31-32). Isto é possível porque os cônjuges cristãos, antes de serem o corpo um do outro, fazem ambos parte do Corpo de Cristo. São Paulo, afirmando que, com o Seu corpo, Cristo se une à Igreja, pergunta: “E nós, não somos membros do Seu Corpo?” (Ef. 5,29-30).

É por isso que, na vida de um casal cristão, a Eucaristia, enquanto comunhão com Cristo, é um momento tão importante, como a sua própria união conjugal.

Voltamos a citar a Familiaris Consortio: “O dever de santificação da família tem a sua primeira raiz no baptismo e a sua expressão máxima na Eucaristia, à qual está intimamente ligado o matrimónio cristão (...) Redescobrir e aprofundar essa relação é absolutamente necessário, se se quiserem compreender e viver com maior intensidade as graças e responsabilidades do matrimónio e da família cristã. A Eucaristia é a fonte mesma do matrimónio cristão” 7.

As graças próprias do sacramento do matrimónio.

5. Globalmente abraçando todas as concretizações, a graça própria do sacramento do matrimónio é o caminho de santidade dos esposos. “O sacramento do matrimónio, que retoma e especifica a graça santificante do baptismo, é a fonte própria e o meio original de santificação para os esposos”. Esta graça sublinha o carácter perene e contínuo deste sacramento. “O dom de Jesus Cristo não se esgota na celebração do matrimónio, mas acompanha os esposos ao longo de toda a existência. (...) Jesus Cristo permanece com eles, para que, assim como Ele amou a Igreja e Se entregou por ela, de igual modo os esposos cristãos são fortalecidos e como que consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio de um sacramento especial; cumprindo, graças à energia deste, a própria missão conjugal e familiar, penetrados do Espírito de Cristo que impregna toda a sua vida de fé, esperança e caridade, avançam cada vez mais na própria perfeição e mútua santificação e cooperam assim juntos para glória de Deus” 8.

6. Mais concretamente, a graça específica do sacramento é o aprofundamento da comunhão conjugal, como autêntica vivência da caridade e participação no amor com que Cristo ama a Igreja. Isto supõe a generosidade do dom, a vitória sobre todas as tentações de egoísmo e de auto-procura, a vivência do próprio corpo como sinal de dom e de comunhão e não como busca de si mesmo. No amor conjugal o próprio prazer é oferecido ao outro, na busca de uma plenitude de comunhão.

Esta graça sacramental ajudará à revelação mútua dos cônjuges, ao respeito pela identidade e dignidade de cada um, à ajuda mútua e fraterna; ensina a perdoar e a acreditar, em cada momento, que o amor é possível, atraídos pela comunhão definitiva no Reino dos Céus.

7. Outro aspecto da graça própria deste sacramento é a sua fecundidade eclesial. A comunhão verdadeira entre os esposos prolonga-se na construção da comunidade familiar, como autêntica comunhão de vida e de amor e na edificação da Igreja como mistério de comunhão e esposa de Cristo. Há uma fecundidade apostólica no amor conjugal. Mas nisso falaremos no próximo domingo.



†JOSÉ, Cardeal-Patriarca


NOTAS

1- Familiaris Consortio (FC), n.º 13
2- Ibidem
3- Ibidem
4- Ibidem
5- Ibidem, n.º 56
6- João Paulo II, À l’immage de Dieu homme et femme, pg. 157-158
7- Familiaris Consortio, n.º 57
8- Ibidem, n.º 56 ; cf. Gaudium et Spes, n.º 49

Fonte Ecclesia

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