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“Amor e Sexualidade”
2002-02-25 17:37:52

Catequese do 2.º Domingo da Quaresma: 24-02-02

Introdução

1. A relação entre amor e sexualidade constitui uma evidência afirmada, ao longo de séculos, pelas culturas, o que significa aceitar que a sexualidade humana só encontra expressão com sentido na experiência do amor e que é um dinamismo de amor. Esta é a perspectiva base da visão cristã do homem e da mulher.


No entanto, mais recentemente, uma visão estritamente funcional dos dinamismos humanos, põe em causa essa equação, afirmando, como válida, uma expressão da sexualidade desligada do amor. Uma olhadela ao primeiro dia do “site” posto à disposição dos jovens pela Secretaria de Estado da Juventude sobre sexualidade, é disso elucidativo. Afirma um jornal diário: “parecia haver uma unanimidade em torno da ligação entre sexo e amor: o amor não é preciso, mas se as duas pessoas gostarem uma da outra, o sexo tem outro sabor”. Uma outra resposta dizia que “basta ter confiança, e que haja amor de preferência”.1

É neste contexto que se situa a nossa Catequese de hoje. A Igreja é continuamente interpelada para aceitar abordagens funcionais da sexualidade, mas ela não pode reger-se, nesta matéria, por visões culturais ou sociológicas. A sua antropologia, isto é, a sua doutrina acerca do homem, concebido este como homem e mulher, fundamenta-se na revelação, isto é, na verdade criacional do homem como projecto de Deus e nos é transmitida pela Sagrada Escritura e pela Tradição. E esta visão revelada do homem conduz-nos a uma afirmação central no que ao sentido da sexualidade diz respeito: a sexualidade humana exprime-se na natureza bissexuada do ser humano, isto é, na complementaridade do homem e da mulher e encontra o seu sentido numa relação de amor. Em termos cristãos esta união do homem e da mulher, no amor, tende para ser uma expressão da caridade, isto é, do amor que encontra a sua força, não apenas na natureza, mas na graça de Deus.

Homem e Mulher Deus os criou.

2. Entre os “mitos de origem”, ou seja, tradições, normalmente religiosas, que explicam a origem da humanidade, há uma entre os povos orientais que me permito referir aqui, porque nos ajuda a encontrar o contexto para a leitura dos textos bíblicos de origem, do Livro dos Génesis. Conta essa tradição mítica que, no início da humanidade Deus criou um único ser, que reunia em si todas as características do masculino e do feminino. Mas esse ser revelou-se de tal maneira forte que os deuses o temeram. Para o enfraquecer dividiram-no em dois, o homem e a mulher que, assim separados, ficaram mais fracos. É por isso que, desde esse dia, o homem e a mulher procuram unir-se de novo, para recuperar a força perdida. Sugere-nos a narração bíblica, que põe na boca de Deus Criador esta afirmação: o homem e a mulher serão os dois um só. (cf. Gen. 2,24; Mt. 19,5).

Os textos do Génesis (Gen. 2,7-25 e 1,26-31) são narrações de origem, que aliás integram “mitos de origem” oriundos de outras culturas, em que o autor sagrado introduz a especificidade da revelação. Os dois textos são complementares e, em conjunto, comunicam-nos a primeira compreensão bíblica do mistério do homem, que só viria a ser totalmente revelada em Nosso Senhor Jesus Cristo. Deles ressaltam os seguintes traços característicos do homem:

* A Corporeidade do homem: trata-se de um ser único em toda a criação. Corpóreo como todos os outros, mas a sua vida não é apenas biológica, depende do sopro de Deus. “Deus modelou o homem com o barro da terra e insuflou nas suas narinas um espírito de vida e o homem tornou-se um ser vivo” (2,7). A vida do homem exprime-se no corpo, mas é espiritual, tem a sua origem no sopro divino. Esta é uma chave decisiva para a interpretação da sexualidade humana que exclui espiritualismos radicais que excluam o corpo, ou visões fisicistas que não respeitem as exigências do espírito.

* A criação do homem (no sentido de ser humano) só fica completa com a criação da mulher. Esta é introduzida com a declaração solene de que a solidão não é boa para o homem: “não é bom que o homem esteja só” (2,18). A diferenciação dos sexos é o caminho escolhido por Deus para que o homem e a mulher vençam a solidão. “É bom que Eu lhe faça um complemento para que se possa unir a ele” (2,18). Repare-se que a ameaça da solidão não é, automaticamente, vencida. A sua possibilidade está unida à autonomia de cada um dos seres humanos. Em toda a dinâmica desta narração está subjacente o problema da liberdade e da iniciativa humanas: o homem é chamado a colaborar na obra da criação. Está dito que não é bom, nem para o homem, nem para a mulher, estarem sós. Mas eles têm de se descobrir um ao outro para serem completos e fortes e vencerem a solidão. Nessa descoberta mútua um do outro, eles reconhecem-se como pessoas, isto é, como seres em relação.

* A experiência de comunhão representa para os seres humanos a sua força e a sua plenitude. A reacção de Adão à criação de Eva é o primeiro poema de amor da história da humanidade: “Esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (2,23). João Paulo II considera este texto o protótipo bíblico do Cântico dos Cânticos. “O texto conciso de Gén. 2,23 que revela as palavras do primeiro homem ao ver a mulher criada, «arrancada dele», pode ser considerado como o protótipo bíblico do Cântico dos Cânticos. E se é possível detectar impressões e emoções ao ler palavras tão antigas, poderíamos arriscar dizer que a profundidade e a força desta primeira emoção, desta emoção «original» experimentada pelo homem, ser masculino diante da humanidade da mulher e, ao mesmo tempo, perante a feminilidade de outro ser humano, é verdadeiramente única e irrepetível” 2.

Segundo o Livro dos Génesis, o homem e a mulher só vencerão a solidão e encontrarão a sua força, neste encantamento mútuo de uma comunhão de amor.

Criados à imagem de Deus.

3. Depois de apresentar o mistério do homem e da mulher, como seres capazes de solidão e de comunhão de amor, o autor sagrado, continuando a aprofundar o mistério do homem, faz uma afirmação ousada: nessa comunhão de amor o homem e a mulher são a imagem do próprio Deus, Ele próprio comunhão amorosa de pessoas, na comunhão trinitária: “Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus os criou, homem e mulher os criou” (1,27). Ouçamos, ainda, o Santo Padre: “O homem tornou-se imagem e semelhança de Deus, não só pela sua própria humanidade, mas também pela comunhão de pessoas que o homem e a mulher formam desde o início. A imagem tem como função reflectir o modelo, reproduzir o seu próprio protótipo. O homem torna-se imagem de Deus, menos no momento da solidão do que no momento da comunhão. Com efeito, desde a origem, ele não é só a imagem que reflecte a solidão de uma Pessoa que rege o mundo, mas é essencialmente a imagem duma insondável comunhão divina de Pessoas” 3. O Deus de quem o homem é a imagem, não é um ser solitário, ainda que omnipotente, mas uma comunhão de pessoas. A narração do Génesis abre-nos para uma visão trinitária da imagem de Deus. Não é por acaso que, na revelação cristã, a união de amor entre Cristo e a Igreja é apresentada como comunhão esponsal, modelo definitivo e radical da união de amor entre o homem e a mulher.

Características da sexualidade humana na revelação bíblica.

4. Ao ler estas narrações da criação, iluminados pela posterior revelação, podemos identificar os principais dinamismos constitutivos da sexualidade humana:

* É uma sexualidade relacional. Só se descobre verdadeiramente o que é ser homem e ser mulher, numa relação mútua de amor. O homem (ser masculino) é homem para a mulher e esta é-o para o homem. O sentido profundo da sexualidade humana é indesligável desta relação. Qualquer expressão solitária da sexualidade ou a sua vivência entre pessoas do mesmo sexo, acabam por ser a expressão da solidão humana.

* A sexualidade é um dinamismo de amor encarnado. Na comunhão de amor entre o homem e a mulher, consegue-se a síntese harmónica entre a dimensão espiritual e a corpórea do amor. O corpo é uma linguagem de amor, símbolo de comunhão, sacramento da harmonia. Mas a densidade espiritual será sempre característica de todo o amor.

* Expressão de intimidade. Todo o amor constrói uma experiência de intimidade, que passa pela revelação como dom da própria intimidade, em ordem ao conhecimento mútuo, à contemplação do outro, à unidade de dois seres num só. Na sexualidade humana, a intimidade dos corpos não se pode desligar da intimidade espiritual, mas o dom do próprio corpo pode significar a entrega do coração e a alegria da comunhão. A intimidade supõe generosidade e sentido do dom; tudo é oferecido, para tudo ser recuperado na alegria da unidade. A busca egocêntrica do prazer atraiçoa a sexualidade como dinamismo de intimidade. A revelação cristã abre-nos para o verdadeiro horizonte desta busca da intimidade de comunhão, na medida em que nos revela que a verdade definitiva de uma relação íntima entre duas pessoas é realização do mistério de comunhão, impossível sem a intimidade com Deus.

* Dinamismo de fecundidade: segundo a narração do Génesis, a vivência da união sexual entre o homem e a mulher foi fecunda e deu como fruto um filho. “O homem conheceu Eva, sua mulher: ela concebeu e deu à luz Caim e exclamou: adquiri um homem pela força de Deus” (Gén. 4,1). Imagem de Deus, o homem e a mulher, plenitude da humanidade na sua relação de amor, tornam-se colaboradores de Deus no dom da vida. A união sexual, expressão da comunhão de amor, é sempre aberta à comunicação da vida, porque segundo o plano de Deus, a vida brota do amor.

Esta abertura da sexualidade à comunicação da vida tem sido posta em questão pela cultura, originando uma discussão ética. O centro da discussão reside nisto: podem o homem e a mulher, pelos meios que a ciência e a técnica foram pondo ao seu alcance, fechar temporária ou definitivamente a sua sexualidade à comunicação da vida? A inspiração revelada da sexualidade diz-nos que isso não é ético, o que não significa que cada união entre o homem e a mulher se justifique apenas pela comunicação da vida. O planeamento da fecundidade física pelo casal faz parte do amor e da generosidade com que é vivida toda a relação de intimidade.

* Um tesouro ameaçado: a vivência da sexualidade insere-se no crescimento do homem no amor, luta de todos os dias e de toda uma vida, atraído pela verdade, ameaçado pela fragilidade. É uma construção generosa de vitória sobre os possíveis desvios, que nós cristãos sabemos ser impossível sem a graça de Deus.

O Livro dos Génesis, enquanto narração de origem, inclui esta fragilidade da sexualidade no próprio dinamismo da criação. Há um contraste entre a inocência e o sentido de culpa. O “mito” da árvore da ciência do bem e do mal sugere-nos que a vida amorosa do homem e da mulher tem uma dimensão moral. Dificilmente o homem acertará com o caminho do bem, se não vive a sua sexualidade como dom e obediência ao plano de Deus.

O texto fala-nos da inocência original: “ora os dois estavam nus, o homem e a mulher não tinham vergonha um do outro” (Gén. 2,25). Todo o verdadeiro amor é inocente; esta inocência original é o anúncio da verdadeira inocência, dom do Espírito de Jesus ressuscitado; é a inocência baptismal anunciada.

Mas o texto mostra logo a seguir como essa inocência original é um tesouro ameaçado. O homem acusa a mulher, não seguiram o plano de Deus e passaram a ter vergonha da sua nudez (cf. Gen. 3,7ss). Quando o homem e a mulher se escondem um do outro, é a sua comunhão de amor que está ameaçada.

Quais são as grandes ameaças à verdade da sexualidade humana? Resumem-se todas a uma: a tentação da sua vivência fora da beleza e da exigência de uma relação de amor. A procura da expressão sexual como auto-fruição egoísta de prazer e bem estar; o não perceber que, numa relação de amor, a vivência da própria sexualidade é um dom feito ao outro; o desligar a dimensão física da sexualidade da ternura e da intensidade espiritual da comunhão; o desligar forçadamente a vivência da sexualidade da generosidade do dom da vida. Porque se trata da construção generosa da comunhão, a vivência positiva da sexualidade supõe a força de Deus, pois só Ele nos torna capazes de crescer no amor, até à beleza da caridad

A castidade é possível.

5. A castidade é, na vida cristã, uma expressão do amor-caridade. As chamadas virtudes morais são a vivência da caridade num sector concreto das realidades da nossa vida. A castidade é a vivência generosa da sexualidade, integrada nas exigências globais da santidade cristã e da caridade.

Estando ligada à vivência da sexualidade, a castidade vive-se em relação, com Deus, com a pessoa amada, com todos os outros irmãos com quem queremos construir a Igreja como comunhão. A castidade supõe a renúncia a experiências sexuais facilitantes, mas essa renúncia é dom, anuncia o desejo de vivência generosa de todos os nossos dinamismos de amor, no contexto da comunhão conjugal, mas também no contexto mais alargado da comunhão eclesial. Há uma fecundidade eclesial da castidade, o que explica que a virgindade assumida possa ser um caminho de vivência da sexualidade. Mas disso falaremos num dos próximos domingos.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca


NOTAS:
1- Jornal O PÚBLICO, edição de 14 de Fevereiro de 2002
2- João Paulo II, À l’immage de Dieu homme et femme, Cerf (1980), pg. 74
3- Ibidem, pg. 77

Fonte Ecclesia

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