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Quaresma - um tempo propício à conversão do EU
2002-02-17 21:53:18

“Deus sabe perfeitamente aquilo que sou” (II Cor., 5, 11)
“É que quem vive unido a Cristo torna-se uma pessoa nova” (II Cor., 5, 17)


O tempo quaresmal constitui uma oportunidade e um convite à conversão através da proposta de uma meditação sobre o carácter misterioso da existência do homem no mundo e sobre o sentido do seu agir. Este percurso, vivenciado num domínio de interioridade do “eu” individual, enquanto termo de referência do “outro” (enquanto “o outro do outro”), constitui-se como experiência da contingência; nesta experiência da contingência, como marca de uma fragilidade ontológica originária, o homem procura um novo sentido para a sua existência: este sentido é acolhido a partir do lugar onde o homem é homem e onde se faz homem; mas o homem não está fechado no seu “eu”, como contingência absoluta, dobrado sobre si mesmo; e é aí, precisamente, que a transcendência aparece, primeiramente, como uma dimensão fundante para o homem.
O homem acolhe-se na sua dimensão temporal, no tempo da sua história, lugar onde o homem se encontra, fora da plenitude do seu “ser outro”; todavia, o homem não se reconhece como uma “total fraqueza no coração do ser”; através da decifração das profundezas do seu desejo, o homem encontra, na visão cristã da vida, um sinal de eternidade: o cristianismo autentifica a visão da realidade, na medida em que se enraíza na experiência de um homem (Jesus Cristo) que, vindo de Deus, retorna a Ele, apontando o caminho que todo o homem deve seguir para se realizar segundo a sua verdade e autenticidade.
A não-reciprocidade, que se descobre como a lei da relação entre Deus e o homem, longe de abolir a relação inicial constitutiva, funda-a mais, determinando-a. Deus e o homem ficam plenamente comprometidos nesta relação, a um mesmo título, pois a verdade de Deus, entendida como plenitude em si, coincide, paradoxalmente, com o movimento pelo qual o homem se supera a si mesmo. Como contingência radical, o homem não pode ter o seu fundamento senão numa realidade que, de modo também radical, se encontra, a seu respeito, numa relação de alteridade.
O tempo da Quaresma apela à mudança, à renovação, à conversão. Ao fazer a conversão, o homem ultrapassa a dimensão da eficácia, descobrindo, na sua intimidade, a presença de um projecto de transcendência (que põe em causa a totalidade estabelecida da sua existência); o alcance deste projecto, a realizar no tempo da história, enraíza-se no devir do homem concreto e determinado, num mundo determinado.
A conversão do “eu” opera uma relação original a si, mediante a visualização da adequação na não-adequação, a modificação do projecto de vida individual, numa atitude de crítica, de exigência, de responsabilidade e de generosidade: a consciência da gratuitidade (ou da generosidade como estrutura original da existência autêntica) está indissoluvelmente ligada à do ser como fonte matricial (“recebestes de graça, daí de graça”). Através da conversão, o homem recupera o seu valor, retomando as suas possibilidades de acção sobre o concreto para o transformar; a conversão, como metamorfose do “eu”, conduz o homem à liberdade autêntica, construindo a moralidade autêntica, como revelação permanente.
Este projecto coloca um desafio à liberdade, pois exige a superação de uma ordem pré-estabelecida através de uma ordem nova, remetida ao poder do homem que deve organizar um mundo informe e conferir-lhe uma significação que ele não possui por si.
Através de uma reflexão do homem sobre o homem, o tempo quaresmal apela à descoberta, no mundo, de uma mediação que permite ao homem e ao homens encontrar-se a si mesmos. O processo da contingência, o compromisso da liberdade, no seio da experiência do homem no mundo, afirma o homem como tal; e a afirmação da singularidade cristã como realidade que tem e dá sentido, opera-se ao ritmo de uma história que não revela senão progressivamente a sua significação verdadeira. O sentido do Evangelho é o de uma autêntica libertação; através dela, o homem obtém um novo rosto perante o universal, construindo o sentido do Absoluto, num mundo que rompeu com os absolutos.
Em suma: a contingência da história humana, porque aberta à esperança, não se define como um estado do mundo e do homem, como um compromisso onde o espírito desperta com o despontar das coisas do mundo; embora a opacidade seja constitutiva da nossa finitude, estabelece-se, através dela, uma reconciliação e uma elucidação necessária da nossa existência. Esta elucidação remete o homem para a descoberta da sua relação constitutiva com o Absoluto.

Cassiano Reimão
Professor universitário e representante
da CEP no Conselho Nacional
de Educação


Fonte Ecclesia

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