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Assis, Cidade de Deus
2002-01-25 13:46:39

Os líderes estão lá em cima, sucedem-se no palanque, hieráticos. E entre as muralhas de Assis, debaixo das arcadas porque se detêm os crentes? Que pensará o franciscano quando cerra os olhos? Tira-me uma fotografia?, pede, num murmúrio, um hari-krishna que, por instantes, se evade da cerimónia.

Sedutor, de modos humildes, um budista laranja, abandona a correnteza do protocolo, e aproxima-se dos estudantes de Rimini. Cai chuva, agora, mas Assis há muito que é a cidade do Sol.

Os cânticos entram pelas casas dentro mal se abre uma janela. Os crentes congregam-se nas igrejas de pedra cor-de-rosa, espalham-se pela cidade. São onze da manhã e os sinos de Santa Maria dos Anjos anunciam a chegada do Papa acompanhado pelos seus convidados. As ruas estão concentradas de lenços brancos que saúdam João Paulo II ao longo do percurso entre a estação ferroviária e a praça inferior da Basílica de São Francisco.

Menos atarefado, o cortejo dos representantes antecipa-se ao "papamóvel". Entram primeiro os cardeais, enfiados nas vestimentas púrpuras. Não suscitam particulares reacções dos peregrinos. Seguem-se depois os xintoístas, austeros, e os shik, pausados, aristocratas de longas barbas brancas, turbantes de cores ousadas, e espadas à cintura - as problemáticas espadas que tantas perplexidades suscitaram num encontro dedicado à paz.

A comitiva acomoda-se finalmente. Sabe-se que o Papa chega mais tarde. Fará uma volta maior, entrará por São Francisco. Os peregrinos procuram os ecrãs gigantes que a organização espalhou pela cidade. Muitos jovens, entusiasmados com o grande caldeirão de credos, a caminho de São Rufino dão de caras com um grupo de hari-krishnas que distribuem bolinhos aos transeuntes. O som sai metálico do megafone. "Hari-hari-hari-Krishna." Rufam tambores e campainhas. Improvisa-se uma festa. "Sabe que estive até às quatro da manhã na vigília", comenta uma senhora de ar respeitável com um dos krishnas. "Mas mesmo assim estou aqui."

Não é tarde, passará qualquer minuto das onze e meia da manhã. No átrio, a cerimónia já começara. Mas nas arcadas há um frenesi de gente. Com câmaras de filmar, objectivas gigantescas, microfones. Não param os jornalistas. No altar sucedem-se as intervenções. Apelos à paz que comovem a jovem Zieynep, turca, 25 anos, muçulmana sunita. Embrulha o corpo nuns véus maravilhosos, cor de sépia.

Explica que desde sempre se interessou por religião. Vive em Roma onde estuda Religião e Cultura na Universidade Pontifícia Gregoriana. "Acho que quanto mais perceber as outras religiões melhor conseguirei entender a minha. E além disso trata-se da minha relação com Deus, íntima, e por isso queria também ver como os outros se relacionam com Deus." Estes encontros "deveriam acontecer mais vezes, mas deviam alargar-se a pessoas comuns, não restringi-los apenas aos líderes da comunidades religiosas. Era importante ter trazido aqui pessoas que se interessam pouco por religião, para observar outras culturas, trocar opiniões, dialogar. Este diálogo também seria importante."

Toda a catadupa de acontecimentos que nos últimos meses moveram os céus não lhe é indiferente. Sobre a guerra? "Não posso dizer se Bin Laden é ou não muçulmano, porque não posso aqui julgá-lo. Mas a guerra nunca diz respeito à religião. É sempre uma questão de economia, de dinheiro, de riqueza, de poder e petróleo."

Sem o saber, subscreve o parecer do americano que está parado, quase inerte, frente à porta principal da Basílica de São Francisco. Debaixo de uma chuva miúda, Brayton Shanley ostenta, acompanhado, um enorme cartaz que apela ao fim da guerra. "Não falei com nenhum muçulmano", confessa, supreendido com a pergunta, "mas se tiver oportunidade dir-lhe-ei que lamento esta política americana que tanto sofrimento tem causado. Eu não acredito em George Bush, não acredito numa palavra que diz. Porque ele procura proteger os seus interesses, a sua riqueza e o seu petróleo. Nós não queremos mais bombardeamentos nem mais guerra."

É uma afirmação quase redundante. Bastava ter lido o slogan: "Nós, católicos dos Estados Unidos, amamos os nossos inimigos. Diga não à guerra. De Jesus para Francisco."

O mau tempo parece agravar-se. Dentro da basílica, uma assembleia de peregrinos está refugiada, em silêncio, na gravidade das declarações dos patriarcas que saem do ecrã gigante. É um modo de dizer. Gennaro, jeans esfarrafados, cabelo amarelo, espetado, não está ali de corpo e alma. Pinta de gingão, não há-de faltar muito para abandonar a maratona. Veio do sul de Itália e brilham-lhe os olhos do cansaço: "Adormeci. Foi um bocado seca. Nunca liguei muito a religião. Só ouvi o Papa falar um bocado da paz, e pronto. Foi um padre que me trouxe aqui."

Chove cada vez mais e aumenta a ventania. Lá em baixo, terminou a cerimónia da manhã. Cada um dos patriarcas, metropolitas, ulemas, rezará agora ao seu Deus, ou ao mesmo Deus, em ritos diversos. Os xintoístas hão-de rezar como num bailado celeste, em coreografias precisas, em gestos sublimes, tão afastados do despojamento daquela mulher africana que, enrolada num pano branco, tricota sua oração à respectiva divindade.

Há neste ritual qualquer coisa de "new age". A mulher reza e, sentada no soalho, maneja uma garrafa. Leva um ovo consigo e, visto do ecrã das televisões, parece interpelar o recipiente de plástico. Noutro compartimento oram os budistas, em silêncio. No mesmo convento, onde meditam também os shiks, confucianos, zoroastrianos e tantos outros.

Preparam-se para as cerimónias da tarde, que decorrerão sob o gesto simbólico da oferta das lamparinas. São doze, em vidro, reunidas num candelabro celebratório desta comunhão religiosa pela paz.

No final, o Papa agradece a presença dos seus convidados em Assis e pede a todos para continuar a tecer a paz. É também o que espera um representante da comunidade islâmica em Itália. "Estes encontros são importantes", diz ao PÚBLICO. "Agora só falta prolongar o espírito de Assis. É preciso criar comissões de trabalho para discutir questões como a família ou a juventude. Caso contrário, esta iniciativa não será consequente."

Fonte Público

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