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SONHO DE UMA NOITE DE INVERNO
2001-12-17 21:30:07

Ufa! Finalmente acabou! Nos últimos dias era este o único desejo da Mariana: chegar ao dia 25 à noite poder ter um momento de sossego, para si, para ver como corre a vida... E, oh, se correu!

Sentada à lareira, olhava de soslaio para o pequeno presépio montado a um canto da sala, abafado pelo portentoso pinheiro de plástico coberto de pirilampos. Com a mão direita, ia embalando o berço do seu mais recente rebento, a Renata, e recordava os anos infantis onde tudo tinha um outro sabor.
Os restos de fitas e papéis que embrulharam presentes para a família, eram o epílogo dum filme cujo enredo se resumia ao corrupio que era percorrer as lojas da vila à procura de carrinhos para os sobrinhos, bonecas para as sobrinhas, bombons para as primas e primos, garrafas de bebidas mais ou menos generosas para todos os outros. Vá lá, que o seu filho mais velho tinha recebido um pouco mais de atenção; enquanto atravessava a 'grande superfície', ia anotando na memória as suas preferências, para depois escolher uma. Talvez uma consola o consolasse nesse seu desejo de ter mais uma prenda nova.
Numa pequena mesa à sua frente, espalhavam-se postais. Todas as cores. Todos os feitios. Alguns, de pessoas com quem privava mais de perto. Outros, grande parte, de firmas e empresas de que já nem se lembrava. Algures, uma base de dados contava com a Mariana. Fazia-a pensar num mundo virtual onde
as pessoas se lembram realmente umas das outras...

Ultimamente a vida correu ainda mais depressa. Mais sem tempo. A tolerância
zero na obrigatoriedade de embrulhar sempre mais qualquer coisa tinha-a
deixado à beira de um ataque de sensação de vazio. Afinal, de que tinha
valido tudo aquilo?

O marido estava a milhas. O cansaço pesou-lhe nos olhos e não se conteve. O
André já estava na cama a sonhar com a inveja dos amigos pelo seu novo
presente. A Renata, indiferente a tudo, dormia confortável e segura. O
presépio lá continuava ao canto da sala esquecido... Acabou, também,
Mariana, por adormecer.

Os anos foram passando, assim como os natais. Todos da mesma maneira, todos
com tradições e contradições. Num desses anos, já a Renata era dona de uma
empresa que o pai tinha levantado do nada. Dele herdou, não só a firma, como
também a ânsia de querer sempre mais e melhor, nem que isso custasse um
pouquinho de si ou dos outros.

Do irmão, André, não tinha notícias há já muitos anos, desde o dia em que
houvera uma violenta discussão em casa, não se lembra bem porquê. O sucesso
da Renata deu ainda mais intensidade que os anos às rugas da testa. Fria,
calculista, conseguia medir como mais ninguém os passos que dava. Os lucros
que engordavam as suas contas bancárias e que lhe permitiam a entrada de
caras em círculos restritos eram a recompensa justa pelo esforço de toda uma
vida.

Mais ainda do que a sua mãe, todos os natais arquivava os postais enviados.
Curiosamente, nem um dos seus amigos de infância. Curiosamente, apenas um
dos seus muitos empregados. Coincidência, seria àquele que na semana
seguinte daria a boa notícia de uma tão desejada promoção.

Numa das noites da quadra, Renata atravessava as ruas da cidade com um saco
de presentes em cada mão. O seu passo dizia que era mulher de muitas
pressas, sem tempo para o que quer que fosse. Por pouco não tropeçava num
cartão do meio da rua. Raios, não tinham mais onde o pôr!

No seu passo largo, mesmo assim atreveu-se a olhar para trás e cruzar os
seus olhos com outros olhos que espreitavam por debaixo do cartão.
Insuficiente para reparar que no pulso esquerdo do vulto estava um velho
relógio igualzinho ao que tinha dado ao André há, não sabe quantos, anos...

Quando Mariana acordou, o braseiro ainda aquecia e a família ainda dormia.
Acordado estava o presépio esquecido a um canto da sala. Os seus olhos
reflectiam o ar que tem quem acaba de ser apanhado desprevenido. Suava um
bocadinho. Frias gotas como gelado era o medo de que o sonho fosse mesmo uma
premonição. Ele há coisas que só lembra ao diabo!

Acto contínuo e enérgico olha para a pequenina e lembra-se do filho. Ainda
lá estão tal como os deixara. De rostos amaciados pela felicidade que paira
num natal. Tomara que os outros que estão para vir sejam pelo menos assim.
Assim o espera, porque mais nada há a fazer senão continuar a aconchegar os
seus rebentos no seu regaço.

Mas havia algo que a incomodava. Instintivamente, olha para a manjedoira
onde se estendia um menino semi-nu apenas aquecido, imaginava a Mariana,
pelo bafo de dois animais e o carinho de dois pais que já tinham nas pernas
as muitas dezenas de quilómetros feitos para um recenseamento...

Paulo Adriano, Natal de 1999



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