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Mudar de Religião "Não É Fácil nem Bom"
2001-11-27 08:38:01

Assumindo-se como anunciador de valores humanos universais, Tenzin Gyatso, 66 anos, 14º Dalai Lama e líder espiritual do budismo tibetano, diz que as pessoas devem conservar a sua religião. Mudar "não é fácil nem bom", afirma, a propósito da atracção do Ocidente pelo budismo. Nesta entrevista ao PÚBLICO, o Dalai Lama, que hoje está em Fátima, antes de ser recebido por um grupo de deputados, afirma-se optimista em relação ao futuro do mundo e acredita que ainda viverá para ver um Tibete livre.



Eram quase seis horas da tarde. O Dalai Lama já tinha dado uma conferência de manhã, para jovens voluntários, e outra de tarde, a convite da Porto 2001, mas não parecia fatigado. Limitou-se a descalçar-se e, ocasionalmente, usou os pés para brincar com um dos chinelos que tinha à sua frente. Falou sempre em inglês e só excepcionalmente recorreu aos seus colaboradores para precisar melhor um ou outro termo.

De vez em quando, dava pequenas gargalhadas, algumas em momentos inesperados. "Os chineses procuram deliberadamente minimizar a religião budista." E ria-se, como se o facto, de tão absurdo, lhe parecesse mais cómico do que trágico. Já antes tinha dado provas do seu sentido de humor, na palestra para jovens voluntários, quando simulou um acto sexual com preservativo recorrendo a um dedo esticado, envolto no tecido da sua túnica, que introduziu entre dois da outra mão formando um círculo.

PÚBLICO - Está impressionado com as recepções que teve no Porto?
DALAI LAMA - Sim, foram excelentes. Havia muita gente interessada em ouvir as minhas intervenções e as perguntas que fizeram foram muito boas.

P. - A atracção do budismo pelo Ocidente deve-se à coincidência entre o individualismo que aqui se vive e a proposta budista de um caminho pessoal para a iluminação?
R. - Eu enfatizo sempre a importância dos valores humanos e não apenas do budismo. Claro que sou budista e, por isso, a visão e o pensamento budistas estão presentes. Mas também acredito que as pessoas devem conservar a sua religião. Mudar de religião não é fácil e não é bom. No Ocidente - na Europa e na América -, todos os anos saem novas obras sobre o budismo. Vivemos num tempo em que a informação está muito disponível. E, como mencionou, alguns ocidentais seguem o budismo. É natural. No Tibete, a maior parte das pessoas é budista, mas também há tibetanos muçulmanos e mesmo cristãos.

P. - Mas podemos dizer que o budismo é uma religião? Um cristão ou um muçulmano podem ser budistas?
R. - Vi num dicionário de inglês que religião é a crença num Criador. Nesse estrito sentido, o budismo não é uma religião. Mas se falarmos de religião no sentido lato de algumas práticas espirituais, como a oração e a meditação, então o budismo é uma religião. Uma pessoa que respeita Buda e Jesus Cristo, que acredita num Criador e também na mensagem budista da compaixão e da tolerância, pode em certa medida ser cristão e budista. Mas o que acontece é que, ao penetrar mais profundamente no budismo, encontra uma filosofia, ou uma teoria, que não é teísta, que não que tem o conceito de Criador. E essa crença é o fundamento da fé cristã ou islâmica.

P. - O Papa João Paulo II escreveu que, nesse sentido, o budismo é um sistema ateísta.
R. - É verdade.

P. - A literatura ocidental viu muitas vezes o budismo como um tipo de niilismo. Quer contradizer?
R. - Isso já não tem fundamento. A menos que se entenda que a ausência do conceito de Deus é uma forma de niilismo. Mas pretender que o budismo acredita num nada, num vazio, é um erro. É não perceber o conceito de vacuidade no budismo. É uma vacuidade muito positiva. As coisas existem, claro, mas não em si próprias, independentemente. Vacuidade significa apenas interdependência.

P. - Nessa perspectiva, o budismo considera que um "eu" permanente e estável é uma ilusão e que devemos desenvolver o desejo de nos libertarmos dela. A pergunta, cujo paradoxo talvez seja apenas gramatical, é esta: quem deseja libertar-se da ilusão do "eu" se não o próprio "eu"?
R - O "eu" existe. O conceito de "não-eu" de que fala o budismo não significa a inexistência do "eu". Significa que quando nos sentimos como um "eu", esse "eu" torna-se dono do nosso corpo e da nossa mente. Por isso dizemos "o meu corpo" e "a minha mente". Mas se investigarmos onde está esse dono do nosso corpo e da nossa mente, não o podemos achar. É esse o sentido. É como tudo o resto. Existe, mas não em si próprio. É como o tempo. O passado e o futuro não podem ser descritos sem o presente, mas se investigamos o que é o presente, não o encontramos. Claro que o presente existe, mas não independentemente.

P. - A sua mensagem é de que só somos felizes quando os outros são felizes, mas a doutrina budista parece propor que nos distanciemos do sofrimento...
R. - Nós somos seres sociais. O nosso futuro depende das pessoas e das comunidades. Na economia global, com a recessão, há mais dificuldades para os indivíduos, as coisas ficam mais caras, perdem-se empregos, o indivíduo também sofre. A recente tragédia de Nova Iorque prejudicou a economia americana. Todo o mundo se ressente. Se o pé estiver doente, a mão tem que cuidar dele. Qualquer parte do mundo é parte do mesmo corpo. O outro é também parte de nós. A nossa percepção continua a ser a de que existe um "eles" e um "nós", mas se o outro sofre, eu sofro.

P. - Tem vindo a defender uma autonomia alargada para o Tibete. Dado que os chineses não parecem dispostos a concedê-la, não seria preferível exigir a autodeterminação? Para os tibetanos que ficaram, e que procuram preservar a sua identidade cultural e nacional, não seria esse um horizonte mais estimulante?
R. - O fundamento da nossa posição é o direito à autodeterminação. Temos diversas etnias, uma história, uma língua própria. A Constituição chinesa reconhece-nos o direito à autonomia, mas, como em todos os regimes totalitários, é uma autonomia mínima. Creio que na nossa proposta de uma autonomia real, significativa, está presente o espírito do direito à autodeterminação.

P. - Com a detenção, na China, do novo Pancha Lama e com a fuga do Karmapa para a Índia, as principais referências espirituais do Tibete estão hoje no exterior. Pensa que os tibetanos poderão sentir-se abandonados?
R. - Alguns tibetanos sentem isso. Agora já não têm líderes civis nem espirituais. Há mestres do budismo tibetano que têm oportunidade de visitar os seus familiares no Tibete. Mas os chineses colocam sempre muitas restrições, incluindo a proibição de eles ensinarem. Alguns ensinam as pessoas, mas não o podem fazer livremente. Os comunistas chineses olham para a herança cultural tibetana e para a fé budista tibetana como duas coisas separadas. Os líderes de regimes totalitários, especialmente os comunistas, olham para tudo de um ângulo político. Por isso, vêem a fé budista tibetana como um ataque à unidade nacional e procuram deliberadamente minimizá-la.

P. - Defende um futuro democrático para o Tibete e diz que até a instituição do Dalai Lama poderá desaparecer em breve. Crê que se a China não tivesse invadido o Tibete teria chegado às mesmas convicções?
R. - [após um prolongado silêncio] Penso que sim. Desde a minha infância, senti-me pessoalmente atraído pelo mundo exterior. No Tibete, havia jovens educados em países estrangeiros e que traziam outras visões. Ao longo do tempo, essas minhas convicções foram ficando cada vez mais fortes.

P. - Sabemos que gostava de ver filmes americanos. Continua a ver cinema?
R. - Não.

P. - Que tipo de livros lê e que música ouve?
R. - Pela música, não tenho interesse. Livros, leio textos budistas tibetanos. Nos anos 60, interessei-me pela astronomia, pelas estrelas, o Sol, a Lua, o céu. O budismo também tem a sua cosmologia. Agora, quase só leio textos budistas, mas também me interesso pela biologia. E participo frequentemente em encontros internacionais com cientistas de topo.

P. - Pensa que a actual coligação contra o terrorismo e o desejo dos Estados Unidos de assegurarem o apoio da China jogam contra os interesses tibetanos?
R. - Não. A China também se juntou à coligação, mas os Estados Unidos continuam a mostrar-se firmes no que respeita aos direitos humanos no Tibete.

P. - O Papa João Paulo II convidou líderes de todas as religiões para um encontro em Janeiro, em Assis. Estará presente?
R. - Recebi o convite e iria. Mas nessa data, infelizmente, já estava comprometido com uma importante sessão de ensinamentos na Índia, para duas mil pessoas. Irei enviar um representante [a Assis].

P. - Como encara o futuro do mundo?
R. - Basicamente, estou optimista. As mudanças do último século foram muitas e, entre elas, houve muitas coisas boas. Acredito que, com as experiências dolorosas, a humanidade se torne mais sábia. Isto não quer dizer que a humanidade não terá problemas. Surgem sempre problemas. Mas, por exemplo, esta guerra no Afeganistão está a ser menos destruidora do que a do Vietname. Todas as guerras matam pessoas, mas estão a ter agora o máximo de cuidado para evitar vítimas civis.

P. - Comenta-se que o próximo líder chinês será Hu Jingtao, o homem que supervisionou a imposição da lei marcial no Tibete. Como encara a possibilidade da sua ascensão ao poder?
R. - É cedo para dizer. Desde essa altura até hoje, o presidente Jingtao tem-se mostrado muito "low-profile". Ninguém sabe bem o que ele poderá fazer. Alguns intelectuais chineses dizem-me que ele está mais liberal, outros que ele é, basicamente, um "linha dura". Não sei, o tempo o dirá.

P. - Acredita que ainda verá um Tibete livre durante a sua vida?
R. - Tenho a certeza. As coisas estão a mudar. A questão é quão brevemente isso acontecerá.

Fonte Público

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