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Catequese do 3.º Domingo da Quaresma do Cardeal-Patriarca de Lisboa - «O poder criador da Palavra: as obras da Palavra»
2009-03-18 22:19:27

Introdução
1. Nesta Catequese, continuamos a tentar ouvir o Senhor através do principal acontecimento da nossa história, fruto da potência da Palavra de Deus, Jesus Cristo, Verbo de Deus feito Homem. O que nos diz a humanidade de Jesus, que interpelações encerra para a nossa humanidade, para tudo o que é humano em nós? Jesus Cristo tem de ser, para nós, mais do que o primeiro santo da nossa devoção; Ele encerra o nosso segredo, Ele é a nossa solução. Retomaremos a este respeito os riquíssimos ensinamentos, quer do Concílio Vaticano II, quer do Papa João Paulo II na sua primeira Encíclica “Redemptor Hominis”. É aí que o Santo Padre afirma: “Cristo, o Filho de Deus vivo, fala aos homens também como homem: é a Sua própria vida que fala, a Sua humanidade, a Sua fidelidade à verdade e o Seu amor que a todos abraça. Fala ainda a Sua morte na Cruz, isto é, a imperscrutável profundidade do Seu sofrimento e do Seu abandono” . Cristo fala-nos na Sua humanidade, ela é Palavra de Deus para nós. Procuremos escutá-la.


Ao fazer-se Homem, Cristo uniu-se a cada homem

2. O Verbo eterno de Deus feito homem, revestiu-se de uma humanidade concreta, a nossa humanidade, que guarda todas as potencialidades de grandeza e de dignidade, mas que está enfraquecida, ferida pelo pecado, tornada incapaz de fazer frutificar plenamente todas as capacidades com que foi criada. E segundo o Apóstolo Paulo, o homem marcado pelo pecado arrastou a própria criação para essa caducidade: ela foi sujeita à vaidade, porque o homem, no seu pecado a arrastou para isso, e espera ser liberta da escravatura da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus (cf. Rom. 8,20-22). O homem, a quem Deus entregou o mandato de gerir a criação, arrastou-a para a sua própria caducidade. E disso temos sinais contínuos e permanentes no mundo em que vivemos.

Foi esta humanidade que Cristo assumiu, humanidade a precisar de redenção e de libertação. Ele não é pecador, mas assumiu uma humanidade pecadora. E fê-lo porque quis que a Sua humanidade unida à humanidade de cada homem, se tornasse força de superação, isto é, de redenção. Cristo não é apenas mais um homem, une-se a cada homem e a todos os homens, para ser, na nossa dimensão humana, esse desafio de superação e de redenção. Na Sua encarnação, o Verbo de Deus uniu-se a cada homem, para revelar e recuperar a grandeza e a dignidade do homem. Recordemos este texto do Concílio: “Imagem de Deus invisível, Ele é o homem perfeito que restaurou na descendência de Adão a semelhança divina, alterada desde o primeiro pecado. Porque n’Ele a natureza humana foi assumida, não absorvida, por esse facto essa natureza foi elevada também em nós a uma dignidade sem igual. Porque, pela Sua encarnação o Filho de Deus se uniu, de certo modo, a cada homem, trabalhou com mãos de homem, pensou com uma inteligência de homem, agiu com vontade de homem, amou com coração de homem” .

Esta união da humanidade de Jesus à humanidade de cada homem, faz com que, em Cristo, Filho de Deus feito homem, se encerre o segredo do homem, o seu mistério, a sua garantia última de realização plena. Diz o Concílio: “na realidade o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado” .

Esta união da humanidade de cada homem à humanidade de Cristo radicaliza-se no cristão, que toma consciência dela, que a assume no baptismo e sabe que tudo o que em si é humano só encontrará a sua verdade plena, por estar enxertada na humanidade de Cristo que é força de redenção e de uma plenitude ainda maior do que aquela que estava anunciada na criação. A redenção não é só correcção do pecado, restituindo o homem à sua capacidade inicial. Esta é potenciada no inaudito da generosidade divina, que Deus não regateia ao Seu próprio Filho. A radicalização da união da nossa humanidade à humanidade de Cristo, realizada no baptismo, adquire conscientemente o ritmo da redenção. Essa é a primeira coisa que aprendemos ao contemplar a humanidade de Jesus: unida à d’Ele a nossa humanidade caminha para a plenitude ao ritmo da redenção. Recordemos como o Apóstolo Paulo fala do baptismo: “Acaso ignorais que, baptizados em Cristo Jesus, foi na Sua morte que fomos baptizados? Assim fomos sepultados com Ele, pelo baptismo, na morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos para a glória do Pai, vivamos também nós uma vida nova” (Rom. 6,3-4).

Que realismo e que profundidade! No baptismo a nossa humanidade foi enxertada na de Cristo, na dimensão que O define como redentor: a oferta sacrificial e a vitória sobre a morte, anunciada na maneira como Ele viveu a Sua morte.

A humanidade de Cristo e a dimensão sacrificial da redenção

3. A humanidade de Cristo introduz na nossa humanidade o dinamismo da redenção. Esta é mais do que um gesto misericordioso de Deus, de que nós beneficiamos. É um dinamismo transformador e recriador, introduzido na nossa humanidade, unida à humanidade de Cristo. Tudo o que é humano em nós pode ser recriado, a partir de Cristo. Como diz João Paulo II, “no mistério da redenção o homem é novamente «reproduzido» e, de certo modo, é novamente criado. Sim, ele é novamente criado” .

A força recriadora da humanidade de Cristo, introduzida em nós quando Ele se une à nossa humanidade, é, antes de mais, a sua dimensão de vítima, a sua imolação voluntária, exprimindo na carne o amor primordial com que Deus criou o homem. Toda a vida humana de Jesus, desde o nascimento até à morte, é marcada por esta dimensão de imolação voluntária. A condenação à morte não é um percalço inesperado; é o ponto de chegada, a “sua hora”, de plena realização duma dimensão permanente. São Paulo, na Carta aos Filipenses, tem essa visão englobante de toda a existência terrena de Jesus: “Ele, de condição divina, não defendeu ciosamente essa situação que O igualava a Deus, mas aniquilou-Se a Si Mesmo tomando a condição de servo e tornando-Se semelhante aos homens” (Fil. 2,6-7). O Apóstolo começa, pois, por atribuir este apagamento da divindade, esta imolação, à própria encarnação do Verbo, que se refere a toda a vida de Jesus até à Cruz. Esta, continua o Apóstolo, é a expressão máxima de uma atitude permanente. “Tendo-Se comportado como um homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte na Cruz” (Fil. 2,8). Não foi só no sofrimento e na morte que Jesus Se ofereceu como vítima de redenção, mas em todas as expressões da Sua vida.

A redenção acontece em nós, na nossa humanidade, adquirindo este ritmo de Jesus Cristo, fazendo de tudo uma oferta, uma imolação, para a nossa redenção e para a redenção do mundo. Sendo o mais radical e decisivo, é o dinamismo mais exigente e mais difícil que a humanidade de Cristo introduz na nossa realidade humana. Exige que tudo o que é humano em nós seja vivido com essa exigência de superação redentora. A nossa humanidade, o amor, a alegria ou a dor, só encontrará a sua plenitude na humanidade de Jesus Cristo, como diz João Paulo II: “O homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente (…), deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. Deve, por assim dizer, entrar n’Ele com tudo o que é em si mesmo, deve apropriar-se e assimilar toda a realidade da encarnação e da redenção para se encontrar a si mesmo. Se no homem se der este processo profundo, então ele produz frutos, não só de adoração de Deus, mas também de profunda maravilha perante si próprio” .

A união à humanidade de Cristo introduz em toda a nossa vida humana uma dimensão pascal. A principal afirmação do desejo de Jesus Cristo de unir a Sua humanidade à nossa é quando disse aos discípulos: “tomai e comei, isto é o Meu Corpo entregue por vós”. Podemos celebrar com Ele a Eucaristia, porque aceitámos viver a nossa vida com a exigência e o sentido da Sua humanidade.

A humanidade gloriosa de Cristo e o desafio da vida eterna

4. Escutar a Palavra do Senhor, contemplando a humanidade de Cristo, é também aceitar o desafio da vida definitiva, anunciada na humanidade gloriosa do Senhor. A humanidade de Cristo a que nos unimos inclui todo o seu itinerário, desde a concepção no seio de Maria até à ressurreição. O Seu corpo ressuscitado, o Seu corpo de glória, faz tanto parte da Sua humanidade como a Sua morte e o Seu amor com coração humano. Ao unir-Se ao nosso corpo, introduz nele a esperança da ressurreição e o dinamismo da vida em plenitude. E esta não é uma nova dimensão a acrescentar à maneira como vivemos a vida neste mundo. A tensão da plenitude da vida está tanto neste mundo como na eternidade. Em cada dinamismo humano, de amor e comunhão, de sofrimento e de dor, vivido unido ao Corpo de Cristo, está presente essa dimensão de plenitude e de eternidade.

Viver o momento presente com a tensão da eternidade exprime toda a densidade e exigência da vida cristã: é isso que celebramos em cada Eucaristia. É mais fácil para nós separar, com uma fronteira clara, a vida neste mundo e a vida eterna. Neste mundo, vivemos os nossos dinamismos humanos o melhor que pudermos, também com a ajuda do Senhor. A vida eterna não sabemos como é, esperamos que seja melhor. Mas não foi a isso que fomos chamados, no nosso baptismo. Unida a nossa humanidade ao corpo morto e ressuscitado de Cristo, somos chamados a viver toda a nossa vida humana ao ritmo da verdade e da fidelidade de Jesus Cristo. Em cada vivência humana experimenta-se e está já presente a plenitude da vida. Para nós, a vida eterna não é só a vida depois da morte; é a vida também na morte. A união da nossa humanidade à de Cristo, leva-nos a vencer a morte como ruptura, afirma a continuidade da vida, em todas as suas expressões, para todo o sempre. É por isso que o nosso amor ganha a pureza da caridade, a nossa inteligência, que busca a verdade, encontra no Verbo de Deus a serenidade da contemplação, o nosso sofrimento é oferecido pela redenção, contemplando a generosidade da Cruz de Cristo.

Esta dimensão pascal da vida humana tende a exprimir-se em toda a nossa existência. É mais fácil compreender, embora seja exigente, que o sofrimento e a morte podem ser oferecidos, com Cristo, para a redenção da humanidade. Mas são também as realidades positivas da vida humana que podem ser vividas, no Corpo de Cristo, com esta tensão de eternidade. A radicalidade da Cruz de Cristo e o surpreendente horizonte de eternidade que nos abre na Sua ressurreição, podem introduzir o dinamismo da imolação, da busca da plenitude na renúncia em dimensões da vida humana a que não teria sentido renunciar na lógica do mundo. Os mártires entregaram a vida, as virgens entregaram a Cristo toda a sua capacidade humana de amor, tantos renunciaram à realização humana e aos triunfos do tempo presente para partirem pelo mundo, peregrinos do Reino de Deus.

Estar unido ao Corpo de Cristo, morto e ressuscitado, introduz no nosso ritmo humano um grande desassossego. Nunca mais poderemos conceber a realização humana apenas como o mundo a concebe. Cristo tornou-nos, já na nossa vida presente, peregrinos do absoluto e da eternidade. “A Igreja, que não cessa de contemplar todo o mistério de Cristo, sabe com a certeza da fé que a redenção que se realizou na Cruz, restituiu definitivamente ao homem a dignidade e o sentido da sua existência no mundo” . Cristo é, verdadeiramente, o caminho da plenitude do homem. Termino com um texto da Redemptor Hominis: “A única orientação do espírito, a única direcção da inteligência, da vontade e do coração para nós é esta: na direcção de Cristo, redentor do homem, na direcção de Cristo, redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque só n’Ele, Filho de Deus, está a salvação” .

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

Fonte Ecclesia

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