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A Bíblia de Almeida, o acontecimento 2006-10-16 22:43:34 Este é um dos acontecimentos editoriais do ano em Portugal - talvez mesmo o acontecimento: esta tradução da Bíblia retoma o labor feito há por João Ferreira Annes de"Almeida, português nascido católico à volta de 1628 que, com as aventuras do império e da fé, se tornaria protestante. Por via da mudança, d"Almeida lança-se (em Batávia, actual Jacarta) na empreitada de traduzir os livros sagrados. A tarefa fica concluída, à data da sua morte (em 1691), na quase totalidade.
Os 60 milhões de exemplares que a sua tradução já vendeu desde há pouco mais de três séculos convertem o seu texto no mais lido e difundido de sempre em língua portuguesa. Para muitas pessoas, ele foi mesmo a cartilha em que se aprendeu a juntar as letras, assumindo um papel ímpar de difusão cultural da língua. Um facto que a coloca "sem paralelo entre nós", mas que é concretizado "numa completa clandestinidade cultural, longe do reconhecimento e do prestígio que lhe são devidos", como observa José Tolentino Mendonça na apresentação da obra. A ignorância mede-se, em Portugal, também pela marginalidade a que uma certa agenda "cultural" remete tudo o que cheire a religioso ou, simplesmente, aos modos de reflectir, pela arte e pela cultura, a condição humana.
As sucessivas edições, correcções e actualizações ortográficas (em Portugal e no Brasil) tinham, entretanto, transformado a original Bíblia d"Almeida (que continua a ser publicada pela editora Sociedade Bíblica Portuguesa). A tradução original era já uma referência por vezes vaga.
José Tolentino Mendonça, biblista, conferiu então as sucessivas edições e fixou-lhe o texto. Tal como no trabalho de Almeida, deixou-o despojado de notas (o protestantismo recusou, até recentemente, os comentários em rodapé, em consequência da livre interpretação do texto). Também não o povoou de títulos de capítulos que já induzem o leitor no tipo de aproximação que se faz ao texto. E deixou-o com a indicação (tradicional até há pouco tempo) de acrescentar ao título dos livros iniciais agora apresentados no volume I (Génesis, Êxodo, Levítico) como "O primeiro/ segundo/ terceiro livro de Moisés".
Finalmente, Ilda David" releu o texto e deixou-se conduzir: viajou entre a criação e o Éden, entre o deserto e a sarça ardente, entre o exílio e a regulamentação da vida comunitária, entre a promessa e a liberdade. O fogo, os anjos, as sombras, a luz ou as trevas, assomam aqui como um novo texto que a ilustradora vai desenhando, em paralelo ao da palavra. "As imagens não fixam, interpretam", escreve Tolentino Mendonça, e tornam-se mesmo uma outra hermenêutica.
Este projecto, que ficará completo em 2007, com os oito volumes previstos, é editado pelo Círculo de Leitores e Assírio & Alvim.
António Marujo
Fonte Público
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