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Actual - Entrevista com Rosário Farmhouse, directora do Serviço Jesuíta aos Refugiados, trabalha neste centro há dez anos
2006-10-09 13:54:34

Qual é a missão do Serviço Jesuíta aos Refugiados (Jesuit Refugee Service - JRS)?
O Serviço Jesuíta aos Refugiados tem como missão acompanhar, servir e defender os direitos das pessoas refugiadas, deslocadas ou imigrantes em situação de vulnerabilidade, em qualquer parte do mundo.
Não se destinam, portanto, a atender apenas imigrantes legalizados?
De forma alguma. Qualquer pessoa pode ser apoiada através dos nossos serviços. Mas, atenção, para ter acesso, por exemplo, ao Clube de Emprego, cujo objectivo é ajudar a encontrar emprego, é necessário estar legalizado. Esta é, aliás, a única actividade para a qual é necessário que os imigrantes estejam legalizados. Caso contrário, poderíamos ser acusados de estar a fomentar a imigração ilegal.


, nos casos de ilegalidade, de que forma tentam ajudar?
Temos um serviço de apoio jurídico que pretende sensibilizar os imigrantes para a importância da legalização, tentando ajudá-los a regularizarem a sua situação. Existem diferentes situações: os que chegam a Portugal ilegais, e os já legalizados, embora, por descuido ou impossibilidade, estejam novamente numa situação irregular, por não terem renovado os seus títulos.

O que mais dificulta a legalização de um imigrante?
Cada caso é diferente. O que se passa, na realidade, é que viver num país estrangeiro implica trazer um visto de trabalho ou de estudo do país de origem. Mas são tantas as dificuldades que uma percentagem elevada de imigrantes acaba por vir ilegal, quase sempre com um visto turístico, quando o que querem é trabalhar. Depois de saírem do seu país, tudo se torna mais difícil. Deparam-se com o facto de a nossa lei não permitir que um estrangeiro recém-chegado se possa regularizar, para além de poderem ser explorados por quem se aproveita dessa situação. Dificilmente conseguem alterar o curso dos acontecimentos. Se não vierem com visto de trabalho, não há nada a fazer.

Como actuam nos casos em que parece não haver qualquer hipótese de legalização?
Tentamos que as pessoas se mentalizem e preparem para voltar ao seu país, a fim de obterem um visto de trabalho. Muitos têm a sorte de ter cá um patrão que aprecia e valoriza o seu trabalho, o que pode revelar-se uma preciosa ajuda. Caso contrário, acaba por ser muito difícil proceder à sua legalização.

E será que os imigrantes têm essa noção quando saem do seu pais?
Sim, embora o desespero, a burocracia e a morosidade dos processos contribua para que saiam do seu país de qualquer forma. Arriscam e vão sobrevivendo, pois acabam por encontrar em Portugal uma sociedade que não os acolhe, mas não os expulsa. Arriscam, pois sabem que muitos conseguiram. A mensagem que circula entre os emigrantes acaba por ser distorcida, pois mesmo que tudo corra mal, raramente o admitem.

Quais são as principais dificuldades com que se debatem os emigrantes?
Acho que o principal problema continua a ser, neste momento, o acesso à saúde. Embora a nossa legislação estipule que qualquer pessoa tem direito à saúde independentemente da sua situação no país, nos casos em que não se trata de uma urgência não têm acesso aos médicos (excepto pagando, nos privados). E isto é dramático, porque a falta de recursos económicos leva-os a deixarem agravar situações menores, que se tornam de tal forma graves que deixa de haver solução. Muitas vezes resta apenas ajudá-los a decidir onde morrer, pois não há tratamento que lhes valha. Outras vezes, pelo contrário, acabam por ir às urgências mal sentem uma dor de dente, acabando por ser recambiados para trás.

E qual a melhor forma de contornar essa situação?
Temos um gabinete médico, constituído por médicos voluntários, que dão apoio médico semanal, de clínica geral. Mas mantém-se o problema dos exames de diagnóstico, pois enquanto os imigrantes estiverem ilegais têm de pagar exames particulares, que são, como se sabe, extremamente caros. Este é, de facto, o principal problema dos imigrantes, quase todos os outros acabam por se resolver. Com muito suor, lágrimas e muito trabalho, lá se vão ultrapassando.

Existem, contudo, outros problemas graves na adaptação a um País novo.
Sim, existem inúmeros problemas, desde encontrar trabalho, uma casa, a legalização... Estes são, aliás, os maiores dramas de um imigrante. Sem esquecer a língua, claro, pois é sempre uma barreira à integração para quem chega do estrangeiro. Aliás, mesmo os imigrantes vindos de países de língua oficial portuguesa - guineenses e brasileiros - têm dificuldade em falar e compreender português.

Refere a falta de acesso à saúde como o principal problema. E a questão da legalização, não é mais grave? Não correm o risco de serem apanhados e eventualmente presos?
A verdade é que raramente são apanhados. Não sabemos ao certo quantos imigrantes existem por legalizar, mas estima-se que talvez mais de 100 mil. Apanhá-los acaba por ser demasiado dispendioso, pois implica repatriá-los para o seu país de origem. Para além disso, muitos dos nossos imigrantes estão integrados, trabalham e têm uma vida completamente organizada. Falta apenas legalizarem-se.

Mesmo assim continuam a existir muitos imigrantes desempregados...
Perante uma crise económica são sempre os primeiros a ser despedidos, pois raramente existe um vínculo laboral, para além de serem, normalmente, os trabalhadores mais recentes. Mas a verdade é que a maior parte dos emigrantes quer trabalhar, ganhar dinheiro e, com muito esforço, lá se vão conseguindo integrar. Mas, claro, continuam a existir ainda muitos que estão desempregados...

Considera que isso pode, de alguma forma, constituir um risco para o país?
São poucos os que ficam dependentes de subsídios, pois todos vêm com um projecto de vida definido, pretendendo, acima de tudo, melhorar as suas condições de vida. São poucos os que ficam numa situação demorada e continuada de desemprego. Por vezes têm cá um familiar ou alguém que os ajuda a reorganizar a sua vida. Nas fases mais difíceis, ou regressam para o seu país de origem ou imigram para outro país. Raramente ficam de braços cruzados.

Muitos vêm à procura de uma vida mais fácil, mas cedo percebem que Portugal não corresponde ao sonho que tinham?
Sim, e por isso, ultimamente, o número de imigrantes tem vindo a decrescer. Muitos retornam ao seu país, pois Portugal deixou de ser o El Dourado dos anos de expansão económica. A economia do país acaba por ser um dos principais factores de atracção ou repulsão de fluxos migratórios. Quando se vão embora, estamos claramente em períodos de retracção económica. Por isso encaro a vinda dos imigrantes como um factor positivo, pois indica que o país está saudável do ponto de vista económico. Quando se vão embora, fico preocupada, pois é sinal de que o país está tão mal que nem os estrangeiros o querem.

Evidenciam-se demasiadas vezes os riscos da imigração. Concorda que a vinda de estrangeiros traz vários benefícios para o país...
É verdade, existe a tendência de olharmos para a imigração de uma forma desconfiada, de a encararmos como um problema. Mas a imigração é, antes de mais, um desafio. Há uma série de vantagens na vinda de imigrantes: repovoam zonas desertas - havia aldeias perdidas que sobreviveram graças à vinda de imigrantes, aldeias onde o café e a mercearia estavam a falir até à sua chegada; ocupam profissões que mais ninguém aceita; rejuvenescem o país; contribuem para o equilíbrio das contas da Segurança Social - trabalham e descontam para a Segurança Social, para além de muitas vezes regressarem aos seus países sem serem reembolsados pelos descontos que fizeram -; aumentam os níveis de consumo; e dão um enorme contributo cultural, por exemplo na gastronomia. Se hoje quisermos ir a um restaurante russo, podemos fazê-lo, e isso é uma enorme riqueza.

Existem, no entanto, alguns riscos no fenómeno das migrações. Ou seja, Portugal continua a ter capacidade para acolher todos os imigrantes que chegam?
De facto, se não houver nenhuma orientação, pode tornar-se um risco. Mas continuo a achar que temos de ver os emigrantes como uma mais-valia, um sinal de riqueza, pois vêm de países onde se vivem situações muito mais dramáticas do que no nosso país...

Embora esta seja uma realidade relativamente recente em Portugal, existe há muitos anos noutros países.
Sim, e talvez por isso estranhemos o facto. Mas os países mais ricos do mundo são aqueles que acolheram mais imigrantes: o Canadá, os Estados Unidos da América, a Austrália foram, entre outros exemplos, desenvolvidos com a ajuda de imigrantes. Não devemos temer os imigrantes, pois aquilo que buscam são melhores condições de vida para si e para as suas famílias.

A maior parte dos imigrantes vem à procura de realizar um sonho...
A maior parte dos imigrantes vem de países onde o trabalho escasseia, onde os salários não são, muitas vezes, pagos, ou são tão baixos que não permitem sobreviver. Outros estão em guerra... Ou seja, vêm sempre à procura de melhores condições de vida.

E o pior é que nem sempre corre bem...
Sim e o que se constata, nesses casos, é que os imigrantes têm um enorme pudor em contar a verdade à sua família. Saíram do país na esperança de uma vida melhor, prometendo à mulher e filhos um futuro com segurança. De repente, o sonho desmorona-se. Ou não arranjam trabalho, ou não recebem ordenado, e aí começam os problemas, pois não conseguem pagar a dívida contraída para sair do país de origem. Acumulam dívidas, ficam deprimidos, e mantêm o segredo perante a família. Facilmente entram no consumo do álcool, o que acaba por levá-los a viver situações cada vez mais extremas, de pobreza e exclusão.
O que nunca tinha acontecido nos seus países de origem.
Exactamente, pois muitos têm formação superior e, também por isso, não aguentam o confronto com a realidade. Quanto maior é o desespero, mais se afastam da família, até que estas, anos a fio sem notícias, acabam por imaginá-los mortos.

Como acolhem situações de extrema pobreza? Existem serviços vocacionados para tirar pessoas da rua?
O gabinete social do JRS está preparado para responder a este tipo de casos, mais dramáticos. A desintoxicação do álcool é o primeiro passo, embora muitos não estejam preparados para o fazer. Só depois se tenta uma nova reintegração. Mas, para que isso seja possível, é necessário estarem motivados para recomeçar uma nova vida, estarem legalizados e sem sequelas do consumo excessivo de álcool, sejam deficiências físicas, mentais ou outras patologias.

E quando não existem essas condições? São abandonados?
Tentamos (em conjunto com os programas de retorno da OIM - Organização Internacional de Migrações) que regressem ao seu país de origem. Mas, na verdade, este é um trabalho muito difícil, pois regressar implica assumir o fracasso e o fim de um sonho desfeito. Têm de reconhecer perante a família que não ganharam dinheiro, que perderam tudo, acumularam dívidas e, pior ainda, não estão capazes de trabalhar, pois estão física e psicologicamente doentes... Tornam-se um fardo para a família, que terá, eventualmente, dificuldade em aceitar esta situação, muitas vezes depois de anos a fio sem notícias ou a alimentar falsas expectativas.
Enquanto não voltam para o seu país de origem, o que fazem para tentar uma nova reintegração?
Existe o Centro de Acolhimento Pedro Arrupe, inaugurado em Maio deste ano, destinado a acolher imigrantes em situação de sem-abrigo, proporcionando um local para dormir, acesso à saúde, comida e roupa lavada, ajudando, simultaneamente, a procurar emprego, e tudo o que permita uma nova integração. Os que não conseguem fazê-lo em Portugal, acabam por voltar ao seu país de origem, embora mais preparados física e psicologicamente.

É curioso que o Centro esteja situado numa comunidade cigana...
Tem sido um enorme desafio. Curiosamente, os nossos seguranças são ciganos e, se no início estavam resistentes à ida dos imigrantes para o seu bairro, tornaram-se, neste momento, um exemplo de bom acolhimento de estrangeiros. É louvável.

O Centro tem capacidade para acolher quantas pessoas?
Tem capacidade para receber 25 pessoas (18 homens e 7 mulheres) embora estejamos, neste momento, super lotados. No entanto, esperamos novas vagas em Outubro, uma vez que o Centro proporciona alojamento diário pelo período de 120 dias, ou seja, quatro meses a cada utente. E, embora esteja a funcionar apenas há quatro meses, o balanço é, até agora, muito positivo e encorajador: uns voltam para o seu país, outros acabam por se integrar e, claro, existem ainda muitos casos em que, embora se tenha tentado tudo, nada se conseguiu.

Apesar da rotatividade, a capacidade de atendimento do Centro parece limitada, face aos problemas...
Na verdade, mesmo que o Centro tivesse capacidade para albergar mais pessoas, não se verificaria um aumento substancial, pois estamos apenas vocacionados para receber pessoas interessadas em mudar de vida. Caso contrário haverá outras entidades mais preparadas para ajudar essas pessoas, eventualmente, com outro tipo de serviços, como cuidados de saúde permanentes, etc.

É sempre constrangedor imaginar que não se quer mudar de vida, sair da rua para uma vida digna...
Mas a verdade é que muitos não querem sair da rua e acabam por viver na sarjeta por opção. Embora no início não seja uma escolha, acaba por se tornar, pois a pouco e pouco desistem de lutar e de viver. Nestes casos, não querem nem ser reintegrados, nem voltar ao seu país. Querem deambular pelas ruas.

Talvez por isso persista uma certa imagem deteriorada dos imigrantes, vistos por alguns como ameaça.
Penso que as pessoas que conhecem e contactam com imigrantes apagam essa ideia. Mas reconheço que existe algum preconceito e estereótipo, transmitido por vezes através dos meios de comunicação social (poucos), através da circulação de histórias (falsas), por exemplo na Internet, etc. Criam-se, facilmente, mitos contra os imigrantes de leste, os brasileiros e os africanos. Mas, pela minha experiência, o saldo é positivo. Quem tem oportunidade de conhecê-los fica, geralmente, satisfeito. Não podemos esquecer que ninguém ama o que não conhece!

O Centro de Acolhimento Pedro Arrupe era um dos vossos sonhos mais antigos?
É verdade, era um sonho antigo, desde 2001, altura em que assistimos ao grande fluxo da imigração eslava. Nessa altura sentimos que não existia um local onde se pudessem albergar imigrantes com percursos de vida difíceis. Os eslavos, muito fechados e introvertidos, correm muitas vezes o risco de ficarem sós, de não se integrarem e, sem qualquer tipo de apoio familiar, quando não conseguem superar as dificuldades, podem tornar-se sem-abrigos.

Voltando ao início, que serviços proporciona o JRS?
O Serviço Jesuítas aos Refugiados existe há 14 anos e recebe diariamente cerca de 60 pessoas. Neste momento temos várias respostas: cursos de Português para estrangeiros (quatro níveis); ajuda para procurar casa; clube de emprego; apoio jurídico; apoio médico e medicamentoso; gabinete de apoio social que trabalha com os imigrantes mais fragilizados, que podem ser sem-abrigo, presos, doentes; gabinete de reconhecimento de qualificações; o Centro de Acolhimento Pedro Arrupe, para imigrantes em situação de emergência social; o projecto CLAI - Centro Local de Apoio ao Imigrante -, uma parceria com o Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, que é um serviço de informação aos imigrantes (desde a legalização, às questões de saúde, etc.), e ainda a Unidade Habitacional de Santo António do Porto, que resulta de uma parceria com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a OIM para gestão conjunta de um centro de detenção de imigrantes ilegais, com ordem judicial de afastamento de Portugal.

A ordem de expulsão prende-se sempre com questões ligadas à legalização?
Exactamente, pois nenhum deles cometeu qualquer tipo de crime. O único crime que estas pessoas cometeram foi o de se encontrarem em Portugal em situação irregular, por falta de documentos ou do visto necessário. Embora alguns possam até estar a trabalhar, são apanhados numa rusga e vão presos. Até agora os imigrantes eram enviados para junto de presos de delito comum - o que era extremamente violento - e hoje são encaminhados para a Unidade Habitacional de Santo António do Porto.

Que tipo de ajuda presta a Unidade Habitacional de Santo António do Porto?
Aconselhamento e apoio social, através de um grupo de voluntários que ajuda a manter um conjunto de actividades durante o tempo que frequentem a casa (sessenta dias é o prazo máximo).

A vossa parceria com esta casa gerou alguma polémica.
Esta é a única casa no país que acolhe imigrantes em situação de detenção. De facto, sempre criticámos este tipo de instalações, espalhadas por toda a Europa, embora a polémica gerada esteja ligada ao facto de não concordarmos com a forma como estas casas são geridas no estrangeiro. A nossa política é muito diferente das restantes, sendo que a única semelhança é o facto de acolhermos imigrantes ilegais. De resto, somos um centro acolhedor, familiar e humano.

Quer falar do projecto "Bem vindos à nossa Terra"?
Sim, esse é um dos nossos mais recentes projectos de sensibilização para a temática das migrações, através do qual uma equipa vai às escolas do 2o e 3o ciclo para oferecer uma hora de boa disposição às crianças. Quem estiver interessado pode dirigir-se ao Serviço Jesuíta aos Refugiados, onde poderemos agendar uma visita às escolas.

O que é que ainda vos faz sonhar? Ou seja, o que ainda está por realizar?
Gostaria, por um lado, de assistir a um maior número de imigrantes integrados e, por outro, de ver a questão da saúde resolvida, para que qualquer pessoa, independentemente da sua situação no país - legalizada ou não - pudesse fazer exames de diagnóstico sempre que fosse necessário. Mas tenho consciência de que o nosso serviço é hoje reconhecido pelo Estado e também pelos imigrantes. X

Serviço Jesuíta aos Refugiados | Estrada da Torre, 26 - 1750-296 Lisboa | T. 21 754 16 20 | www.jesuitas.pt/jrs


Inês Menezes

Fonte Público

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